Saiu no O GLOBO.
Veja a Publicação Original.
LONDRES. O namorado de Priya postou uma foto dela nua, dizendo que isso a deixaria mais confiante, afinal, ela se tornaria objeto de desejo de outros homens. Priya, é claro, não se sentiu confiante. Ao contrário, sentiu-se mal ao saber que o homem que amava tinha compartilhado sua nudez sem o seu consentimento.
“Ele chegou a dizer que todos sonhariam em me ter, mas que só ele teria”, contou Priya (nome fictício para preservar a identidade da vítima), que vive em Mumbai, na Índia, mas foi vítima de um crime cometido contra meninas e mulheres em todo o mundo. Infelizmente, sua história é comum.
Durante 2020, ano em que o isolamento social foi exigido em muitos países para conter o novo coronavírus, o assédio online a meninas e mulheres cresceu, na maioria das vezes praticado por parceiros ou ex-parceiros trancados em casa em frente ao computador ou smartphone. Esse dado é da ONU Mulheres.
Depois de compartilhar um nude de Priya, o namorado dela passou a controlar sua presença nas redes.
“Eu pisava em ovos constantemente. Não é uma violência física, mas eu passei a sofrer slutshaming ou tinha que me preocupar se o meu comportamento online serviria como um gatilho para ele”, diz Priya.
As restrições impostas pela pandemia de Covid-19 levaram mais pessoas em todo o mundo a se conectar ou a aumentar o tempo de conexão. A internet tornou-se uma necessidade incontornável, tornando mais grave o abuso online relacionado ao gênero, como explica Azmina Dhrodia, pesquisadora da Fundação World Wide Web.
“O modo como usamos a internet mudou. Não é mais um luxo, é o que nos conecta ao mundo e à vida. Mas com isso chegam os riscos, especialmente para as mulheres”, diz Azmina, que pesquisa os direitos digitais de meninas e mulheres.
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Mesmo antes da Covid-19, mais de metade das meninas e das jovens mulheres no mundo já tinham sofrido abuso online, de acordo com uma pesquisa global realizada pela Fundação World Wide Web, que tem entre seus fundadores, Tim Berners-Lee, o criador da internet.
O compartilhamento de imagens, vídeos ou informação privada sem consentimento, prática conhecida como doxxing (em inglês), foi o motivo de maior preocupação das mais de 8 mil pessoas ouvidas pela pesquisa.
Azmina diz que a violência online é uma manifestação da discriminação já existente contra as mulheres, então não é surpresa que tenha crescido com o isolamento social.
“É um espaço hostil e está se tornando mais hostil porque todos estamos ainda mais online”, diz a pesquisadora.
Meninas, algumas delas tão jovens quando 8 anos, também têm sido vítimas de abuso online. Uma em cada cinco deixou ou reduziu o uso das redes sociais, de acordo com uma pesquisa realizada em outubro pela organização Plan International.
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Cerca de metade das meninas que sofreram abuso online foram ameaçadas com violência física ou sexual, segundo a pesquisa. Muitas das entrevistadas disseram que o abuso afetou sua saúde mental e um quarto delas afirmou sentir-se fisicamente insegura.
A União Internacional da Telecomunicação, uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que, embora as mulheres estejam mais conectadas do que nunca, hoje há 17% menos mulheres do que homens entre os usuários da internet.
“As mulheres se esforçaram para ter acesso à internet, agora estão online e sofrem uma violência que faz com que elas deixem a internet. No fundo, esse é o objetivo: silenciar as mulheres”, afirma Neema Iyer, diretora do grupo Pollicy, que trabalha com direitos digitais em Uganda.
Muitas das mulheres vítimas de abuso online sofrem a violência de seus parceiros ou ex-parceiros, mas algumas são alvos de estranhos que hackeiam suas contas nas redes sociais em busca de fotos e informações. O uso de softwares de monitoramento cresceu durante a pandemia, como explica a advogada Akhila Kolisetty, baseada em Nova York e fundadora da organização End Cyber Abuse.
“Com as pessoas trabalhando em casa, os abusadores estão coagindo os usuários a entregar senhas e imagens íntimas, além de rastrear a vida online de suas vítimas.”
Ativistas dizem que é difícil legislar sobre o abuso online, que, em muitos países, é coberto apenas parcialmente. Países como Índia, Canadá, Inglaterra, Paquistão e Alemanha já criminalizam o compartilhamento de fotos íntimas, que é considerado um abuso sexual baseado em imagens.
No Brasil, a lei 12.737, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 2012, dispõe sobre a tipificação de crimes de informática. Conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, por conta do vazamento de imagens vítimas da atriz por um estranho, prevê detenção de 1 a 3 anos para quem invadir dispositivo de terceiros sem autorização. A obtenção de informação priva por esses meios vai de 6 meses a 2 anos de prisão, mas, caso haja compartilhamento ou venda desse conteúdo, a pena pode aumentar em dois terços.
Mas, como a tecnologia avança rapidamente, os países precisam correr para legislar novas formas de abuso, como as “deepfakes”, em que o rosto de uma mulher é colocado em um vídeo pornô e compartilhado em aplicativos de mensagens como o WhatsApp ou o Telegram.
Plataformas digitais como o Facebook, que é dono do WhatsApp e do Instagram, o Twitter, o TikTok e o Zoom afirmam que estão comprometidos em erradicar o assédio online.
O aplicativo Zoom, que, com a pandemia, passou de 10 milhões a 200 milhões de usuários no mundo, recebe reclamações do que ficou conhecido como “zoombombing”, que é quando estranhos entram em ligações privadas. Os abusadores também se infiltram em conferências e reuniões para assediar mulheres com conteúdo sexual, sexista e ofensas raciais. O Zoom afirma que reforçou suas ferramentas de seguranças e trabalha com legisladores.
“O Zoom condena fortemente comportamentos dessa natureza”, afirmou um porta-voz da emprea.
O Twitter afirma que reforçou sua segurança, permitindo que as pessoas controlem quem pode responder suas mensagens, e também age proativamente para identificar tuítes e contas de abusadores.
Cerca de dois terços, ou 64% das mulheres, afirmam terem sido assediadas, a maioria delas por estranhos, no Twitter. Já um quarto delas diz que sofreu abuso no Facebook, segundo um estudo da organização End Violence Against Women.
O Facebook afirma que automaticamente “esconde” conteúdo ofensivo ou que represente bullying e que os usuários podem facilmente bloquear ou ignorar mensagens.
Apesar disso, quase todas as mulheres que responderam ao estudo da organização End Violence Against Women afirmaram que as gigantes da tecnologia não trataram corretamente de suas experiências de abuso online.
Caroline Sinders, que pesquisa a internet no Instituto Weizenbaum de Berlim, afirma que os sistemas e as ferramentas online não facilitam a proteção das vítimas. Segundo ela, as vítimas de abuso deveriam conseguir acesso fácil a todas as mensagens abusivas que recebem para construírem um relatório para a polícia ou para levar o caso à Justiça:
“Permitir que as pessoas consigam construir um relatório robusto é chave, assim como facilitar o acesso a relatórios que foram submetidos aos moderadores de conteúdo, caso a vítimas precise levar o caso aos tribunais.”