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Definitivamente, 2020 não foi um ano fácil para as mulheres. Da perda de trabalho e de renda ao aumento da violência doméstica, a pandemia de Covid-19 causou estragos em todo o mundo e, agora, os progressos recentes em igualdade de gênero estão ameaçados. A ONU estima que a desigualdade de gênero será ainda maior em 2021 por causa da crise econômica global instalada pelo novo coronavírus.
Foram muitos os reveses para as mulheres, assim como são muitas as reações de grupos em defesa dos direitos de meninas e mulheres. Aqui estão dez temas que preocupam mulheres e autoridades em todo o mundo. Quando 2021 chegar, será preciso estarmos atentas e fortes.
1.Trabalho de cuidado não remunerado
Mesmo antes da Covid-19, as mulheres já eram responsáveis por três vezes mais trabalho doméstico e de cuidado não remunerado do que os homens, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2020, essa diferença disparou: foram elas as responsáveis por praticamente todo o cuidado com familiares mais velhos e com os doentes, além das crianças, que, sem aulas presenciais, passaram quase todo o ano em casa com suas famílias.
Uma pesquisa feita com famílias em cinco países desenvolvidos mostrou que o trabalho não remunerado das mães chegou a 65 horas por semana — um terço a mais do que o dos pais.
Um grupo que faz campanha pela igualdade de gênero no Reino Unido afirmou que há sinais “de uma volta aos anos 1950” quando o assunto é a divisão do trabalho. Na Turquia, uma pesquisa descobriu que mulheres fizeram quatro vezes mais trabalho doméstico e de cuidado do que os homens durante o lockdown.
2. Perda de emprego
A Covid-19 afetou de forma desproporcional setores da economia em que as mulheres formam grande parte da força de trabalho, incluindo a hospitalidade, o comércio e o turismo.
Algumas mulheres também passaram a trabalhar menos para se dedicarem aos cuidados extra com a casa e a família. Um relatório mostra que, na Inglaterra, as mães tinham 47% mais chance de perder ou deixar seus empregos do que os pais.
Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, as mulheres são a maioria dos trabalhadores informais, portanto, estão menos protegidas nas crises. A pandemia fez 7 milhões de brasileiras deixarem o mercado de trabalho.
No Quênia, 20% das mulheres perderam seus empregos ou sua renda em comparação com 12% dos homens, de acordo com o governo do país.
A pandemia teve ainda um impacto terrível em trabalhadoras migrantes. No Libano, muitas trabalhadoras domésticas foram colocadas na rua por seus patrões que não podiam mais arcar com seus salários.
3. Violência doméstica
Uma realidade muitas vezes varrida para debaixo do tapete, a violência doméstica virou notícia em 2020, ano em que o isolamento social deixou muitas mulheres trancadas em casa com seus agressores.
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A ONU alertou que a crise trazida pela Covid-19 levaria a um aumento de 20% dos casos de violência doméstica e descreveu os abusos como a “pandemia das sombras”. Horrorizado com a explosão de violência, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu um “cessar-fogo em casa”.
Serviços de ajuda a essas mulheres receberam mais ligações, mas a realidade é que lockdowns e isolamento social tornaram mais difícil para as vítimas conseguir socorro. Alguns países converteram hotéis e albergues em refúgios para mulheres vítimas de violência e criaram iniciativas para encorajar essas mulheres e buscar ajuda em suas idas ao supermercado ou à farmácia.
O número de feminicídios cresceu em todo o mundo. No Brasil, de março a junho de 2020, o aumento foi de 16% em comparação com o mesmo período de 2019.
4. Educação de meninas
A Covid-19 obrigou muitas escolas a fecharem as portas para conter o avanço da pandemia, o que impactou a educação de milhões de meninas.
Em países do continente africano, grupos de defesa dos direitos das crianças temem que muitas meninas não voltem às escolas, prejudicando décadas de trabalho para reverter as desigualdades de gênero.
O fechamento de escolas colocou meninas em maior risco de sofrerem violência sexual e também de serem levadas a um casamento precoce, já que a pobreza tornada ainda mais grave pelo isolamento social forçou muitas famílias a “negociarem” suas filhas para comprar itens básicos.
Muitos países já relatam um aumento no número de adolescentes grávidas e de casamentos precoces, aumentando a preocupação sobre a continuação da educação das meninas.
5. Casamento infantil
A ONU previu que a pandemia levaria a 13 milhões de casamentos infantis a mais na próxima década, anulando anos de trabalho para exterminar esta prática. O aumento da pobreza faz com que muitas famílias casem suas filhas mais cedo.
Esse risco cresceu com o fechamento das escolas. Autoridades na Etiópia salvaram centenas de meninas dessa situação depois do encerramento das aulas. No Malawi, uma organização humanitária relatou um aumento de 350% nas ligações sobre casamento infantil ou forçado durante o segundo trimestre.
Não custa lembrar: o Brasil é o quarto país no mundo em número de casamentos infantis.
6. Mutilação genital feminina
Segundo a ONU, na próxima década, cerca de 2 milhões de meninas deverão sofrer a mutilação genital por causa da interrupção dos programas dedicados a exterminar a prática. Durante os meses da pandemia, um aumento no número de mutilações genitais em meninas foi relatado em países do Leste e do Oeste da África.
A pobreza intensificada pela Covid-19 é em parte responsável por isso. Familiares acreditam que podem conseguir “melhores preços” por uma filha que tenha sofrido a mutilação. Na Somália, circuncisadores iam de porta em porta oferecendo a prática durante os meses de isolamento social.
No Quênia, país que se comprometeu a eliminar a mutilação genital feminina até 2022, ativistas afirmam ter havido mutilações em massa, com desfiles de meninas nos centros das cidades e muitos presentes para elas.
No Egito, a imprensa internacional noticiou que um homem foi preso por permitir que um médico mutilasse suas três filhas, depois de enganá-las dizendo que elas receberiam a vacina para a Covid-19.
7. Aborto
A Polônia impôs a proibição quase total da interrupção da gravidez, levando a protestos em massa nas ruas do país.
Nos EUA, grupos que defendem o direito de escolha das mulheres temem que a chegada da juíza ultra conservadora Amy Coney Barret à Suprema Corte possa levar a um retrocesso nos direitos conquistados pelas mulheres com a legislação de 1973, que legalizou a interrupção voluntária da gravidez em todo o país.
No Malawi, grupos religiosos poderosos se opôem a um projeto de lei que aliviaria as restrições aos aborto.
Em todo o mundo, as restrições à livre circulação, o fechamento de clínicas e serviços de saúde congestionados por pacientes com Covid-19 tornaram ainda maiores as barreiras ao aborto para muitas mulheres.
No Brasil, grupos religiosos ultra conservadores e políticos de extrema direita tentaram impedir uma menor de idade vítima de violência sexual de realizar um aborto previsto na legislação do país.
8. Saúde materna
Desde o ano 2000, o número de mulheres mortas no parto e de crianças natimortas caiu mais de um terço. Mas profissionais de saúde afirmam que esses ganhos serão perdidos se as mulheres não tiverem acesso a métodos contraceptivos e à saúde reprodutiva.
O Instituto Guttmacher, uma organização americana que pesquisa saúde reprodutiva, estima que mesmo pequenas interrupções nos serviços de saúde poderiam levar a 15 milhões de gravidezes não desejadas, 28 mil mortes maternas e 3,3 milhões de abortos inseguros.
Em todo o mundo, a pandemia fechou clínicas e programas de saúde reprodutiva para que suas equipes fossem deslocadas para unidades de saúde dedicadas à Covid-19. Além disso, o fechamento de fábricas e o atraso no transporte levou a escassez de contraceptivos e de pílulas abortivas em muitos países.
Apenas na América Latina, a ONU estima que 18 milhões de mulheres e adolescentes podem ter ficado sem contraceptivos, o que potencialmente pode levar a 600 mil gravidezes indesejadas.
9. Tráfico de mulheres
A pobreza e o fechamento de escolas deixaram muitas meninas e mulheres mais vulneráveis ao tráfico de pessoas, incluindo a exploração sexual online, de acordo com a ONU.
A crise econômica e a perda de trabalho devem aumentar o tráfico de meninas e mulheres de países onde os efeitos do desemprego se prolonguem. Esse padrão já foi visto durante a crise de 2008. Ativistas afirmam que o tráfico de “noivas” do Camboja para China já aumentou.
Em todo o mundo, já houve um aumento no sexo online forçado, no qual meninas e crianças são obrigadas a atos sexuais transmitidos ao vivo para clientes na web. Nas Filipinas, considerado o epicentro desse tipo de crime, o abuso online de menores triplicou durante a pandemia.
10. Pornografia de vingança
As mulheres relatam um aumento na pornografia de vingança — o compartilhamento de imagens íntimas, geralmente feito por um parceiro ou ex-parceiro abusivo — durante períodos de lockdown.
No Reino Unido, os casos dobraram em abril. Na França, uma ativista começou a campanha #stopfisha para ajudar as vítimas a denunciar os abusos depois de perceber um aumento no número de fotos e vídeos de jovens nuas com seus nomes.
No Marrocos, uma campanha nas redes sociais encorajou centenas de vítimas da pornografia de vingança a lutar contra esse crime que fez muitas considerarem o suicídio. Mulheres tiveram suas identidades expostas por parceiros, mas outras foram escolhidas por estranhos que hackearam suas contas nas redes sociais e roubaram fotos e informações.
O abuso sexual digital se tornou um aspecto da violência doméstica com parceiros ameaçando compartilhar imagens íntimas explícitas como uma maneira de exercer o controle sobre as mulheres.