Saiu no PORTAL GELEDÉS.
Veja a Publicação Original.
Se alguém imagina um texto carregado de formalidades acadêmicas e de discussões metodológicas de planos de aula com receitas pedagógicas, sugiro que não o leia, pois a frustração será companheira da primeira à última linha. Aqui me permito a liberdade de escrever em primeira pessoa com toda a carga de subjetividade não sonegada, afinal não cruzei com intelectuais do nível (altíssimo) de minha avó, Conceição, xará de outra, a Evaristo, minha mãe Alice, Carolina Maria de Jesus, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento entre tantas referências que me ensinaram a não ter receio de me implicar e bordar com linhas autobiográficas a escrita que busco validar dentro das regras científicas. Sou grata ao feminismo negro e a epistemologia decolonial por me fazerem enxergar em todas elas intelectuais, agentes do conhecimento, portadoras de talento e criatividade ancestrais. Dessa fonte beberei independente das credenciais acadêmicas que venha a colecionar. Dispostes?
O ano era 2001.Especial e marcante, ele me trouxe duas conquistas pessoais radicalmente transformadoras : a experiência da maternagem, ainda que não planejada, num contexto de conclusão da graduação e de conflito familiar efervescente , além da efetivação, três meses após a formatura, como professora da rede pública estadual, resultado da aprovação em 2º lugar num concurso realizado quase dois anos antes apenas para testar conhecimentos, uma vez que, como estudante, estava ciente de estar fora do critério elementar para convocação. Receber uma ligação da antiga Direc solicitando minha presença com todos os documentos para homologação e publicação da minha convocação para além do significado pessoal da conquista da independência financeira, do fim das preocupações com a provisão daquele ser de três meses que eu amava com todas as minhas forças, esta ligação representou o início de um compromisso social transgressor pela força propulsora empreendida. Ao assinar o termo de assunção pactuei comigo mesma em não ser como a maioria das professoras que marcaram minha trajetória como estudante negra da rede pública nas décadas de 1980 e 1990, fazendo com que as memórias sobre a escola fossem prementemente marcadas pelas dores da solidão e do preterimento.
Faço parte de uma geração que cresceu tendo ódio e vergonha da imagem diante do espelho e grande parte desses sentimentos foram adquiridos no cotidiano da escola, nas relações interpessoais ali construídas. Foi na escola o primeiro lugar em que ouvi que meu cabelo era duro e feio, que minhas tranças eram engraçadas porque não balançavam, que meu nariz iria explodir de tão grande, ouvi também as negativas dos colegas para formar par na quadrilha junina e que eu não poderia integrar o grupo de meninas que iriam performar as Paquitas da Xuxa porque, sendo “escurinha”, despertaria o riso da plateia no pátio da escola. Esta última fala foi proferida pela minha professora da antiga 4ª série, que preparava o encerramento do Fundamental 1, mas não conseguia “me encaixar” em nada do que tinha planejado. Disse assim sem qualquer cerimônia diante da minha mãe, que foi tomar satisfações por sua única filha ter chegado em casa aos prantos alegando não participar de nenhum dos ensaios que estavam a todo vapor nas últimas semanas de novembro. Estávamos na sala da Direção na presença da gestora, uma freira da congregação Pobres Servas do Preciosíssimo Sangue, a professora, minha mãe e eu. Com torço na cabeça, por também ter vergonha do cabelo crespo, de chinelo gasto mas, ao mesmo tempo, dona de uma altivez arrebatadora, mainha, a manicure mais requisitada do bairro, decidiu:- ela será a Paquita. Já mandei fazer a roupa igual. Não terá Paquita mais bonita e mais completa do que minha filha, viu Irmã? E saímos de mãos dadas de volta para casa.