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“Estatísticas mostram que o lar é o lugar mais perigoso para as mulheres”

Saiu no GALILEU.

Veja a Publicação original.

Nice se lembra até hoje da paixão que sentia por Carlos, “um lance de pele”. Ela tinha 39 anos quando ele faleceu, mais de uma década atrás. Soraia amava tanto Geílson que largou o emprego para morar com ele em outra cidade, onde ficou até ele falecer, no dia 8 de fevereiro de 2011. Doralice ainda se arrepia e suspira quando fala de Zé e, mesmo após a morte dele, via o parceiro acompanhando-a. Deise se apaixonou por Fábio à primeira vista, aos 13 anos, teve uma filha com ele aos 15 anos, que ainda era pequena quando o pai morreu dias antes do Natal.

Nice, Soraia, Doralice e Deise mataram seus ex-companheiros. E fizeram isso para não morrerem: toda eram vítimas de agressões constantes, inclusive no momento dos crimes que cometeram, que na realidade se enquadraram no Artigo 25 do Código Penal, que trata sobre a legítima defesa: “Entende-se por legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

As histórias delas e de outras duas mulheres estão no e-book Elas em Legítima Defesa – Elas Sobreviveram Para Contar, da jornalista Sara Stopazzolli, lançado pela editora DarkSide em setembro. Ao longo de quatro anos, a catarinense investigou a trajetória de mulheres vítimas de violência doméstica que mataram seus parceiros para preservar a própria vida. Além do livro, a pesquisa de Stopazzolli já havia sido o ponto de partida para o documentário Legítima Defesa, lançado em 2017 na mostra do Festival Mujeres en Foco em Buenos Aires, na Argentina, de onde saiu premiado.

Na entrevista a seguir, Stopazzolli fala sobre o triste cenário da violência doméstica e do feminicídio no Brasil e o que podemos fazer para mudar isso, ainda que estejamos bem longe dessa conquista.

No livro, você divide as histórias entre os casos marcados por amor, seguidos pelos de violência, ou violência desde o início do relacionamento. Por que optou por fazer essa distinção?

Na verdade, todos foram marcados pelo amor e depois pela violência, mas o que eu trabalho é a memória delas. Não é que não tenha existido [amor], mas fui fiel ao relato, e no [de algumas] delas sobressaía mais a questão da violência. […] Elas falavam que havia partes boas, só não tinham tantas memórias como as outras [da primeira parte do livro, “amor”]. Acho que todas as relações começam com amor, com a idealização do amor, e depois as violências vão aparecendo, algumas antes, outras depois, e aí quando acaba, quando a pessoa está tentando reestruturar a vida, às vezes as memórias do amor se apagam, porque a violência se sobressai, mas não é que ele não existiu. Acho que ninguém entra numa relação já sabendo que vai ser violento de cara. Tem que ter primeiro um encantamento, a parte boa da relação, às vezes muito rapidamente ela vira violenta e noutras demora um pouco, mas no início ninguém acha que vai passar por isso.

De tudo o que você pesquisou, o que considerou mais chocante ou cruel?

Mais chocantes são as violências vivenciadas, como as pessoas viviam coisas muito violentas e não conseguiam falar, às vezes nem para a melhor amiga ou para a família. Às vezes alguém até sabia, mas fechava os olhos, com medo ou por causa da cultura de não se meter. O que é complexo nessas relações e pode tornar o lar um lugar perigoso é a intimidade e o afeto, porque não são crimes nos quais uma pessoa desconhecida fez algo contigo. Existe toda essa questão da cultura do estupro e do silenciamento das mulheres, mas nas relações íntimas, quando se conhece a pessoa, a complexidade é muito maior. A mulher tenta achar que não falar é melhor, até porque ela mesma acredita que o cara vai mudar, então espera para ver se ele muda. Mas chama a atenção que a sociedade permita que isso aconteça em uma relação que é pra ser de amor, de construção, de parceria. Acho que não é uma questão individual, não é porque a mulher permite, é porque a sociedade permite.

Pelo que você observou, o que essas mulheres que agiram em legítima defesa tinham em comum para chegarem a esse ponto?

Acho que tinham em comum um histórico de agressão forte, e aí, em um momento de sobrevivência, é como um bicho que solta toda aquela violência acumulada. Em alguns casos tem a questão dos filhos, talvez se não fossem mães teriam sido mortas sem essa força de revidar. Em outros, em que não há filhos, penso que seja esse acúmulo de experiências que às vezes nem ela sentiu, mas está ali acumulado e a ponto de explodir. E também o fato de elas não terem tido outra opção. Tanto o Estado quanto a sociedade não estiveram presentes para evitar essa tragédia antes que elas chegassem a ponto de pensarem que eram elas ou eles.

“Acho que não é uma questão individual, não é porque a mulher permite, é porque a sociedade permite”

Sara Stopazzolli, sobre os casos de violência contra mulheres no ambiente familiar

O que nós, mulheres, podemos fazer em nossa defesa, para não termos que chegar a ponto de literalmente agir em legítima defesa?

O primeiro passo é a educação e a prevenção. Eu falo muito que essa nossa cultura punitivista não vai mudar a realidade, podemos punir um agressor aqui, outro ali, mas o que vai de fato mudar a situação é a educação. É preciso de informação sobre o que é um relacionamento abusivo, o que é o ciclo da violência, para evitar que o homem se comporte dessa maneira e que a mulher entre em uma situação que possa chegar a esse ponto. Então a educação é tanto para os homens quanto para as mulheres.

Nos últimos anos, temos visto um relativo fortalecimento do movimento feminista, e talvez isso tenha se refletido no aumento de mulheres relatando casos de violência, por se sentirem seguras em denunciar. Você tem observado avanços nesse sentido?

O assunto de fato começou a ser mais falado, saiu do tabu, houve também avanços em termos de legislação. A própria lei do feminicídio é um avanço, porque antes era um crime passional. O mesmo crime que antes era encarado como crime passional, hoje em dia tem um nome: feminicídio, pela questão de gênero. O sistema penal já avançou nesse aspecto de nomear. Só que o crime em si não diminuiu, e por quê? Porque a cultura ainda não mudou. Os homens continuam agindo achando que as mulheres são propriedades deles. Enquanto não mudar isso, não adianta dar um nome. Por mais que seja positivo, não vai mudar.

E parece um assunto meio unânime, as pessoas em geral são contra a violência contra mulher. Só que a maneira de se comportar politicamente sobre esse tema é diferente, porque tem gente que fala “ah, tem castração química, tem pena de morte”, mas quer que tudo continue igual, que a cultura continue a mesma, as mulheres sendo desprezadas, submissas, objetificadas. Acham que só punindo o agressor as coisas vão mudar, mas enquanto não mudar a cultura, não adianta. Mulheres vão continuar morrendo enquanto forem encaradas como objeto do homem, propriedade do homem.

E, apesar disso, a situação não tem estado muito boa para as mulheres…

Todo avanço tem seu retrocesso. Tudo isso também gerou um movimento antifeminista, e aí o que é na verdade uma pauta que deveria ser para todos, virou um mimimi, politizou de novo o assunto. Porque agora virou coisa de esquerda, de mulheres que estão exagerando, e começaram a surgir pessoas que não legitimam o movimento. Os avanços são importantes, tanto que considero que meu livro e filme estão sendo mais acolhidos agora do que se fosse dez anos atrás, por exemplo. As pessoas estão querendo ler mais e se informar mais sobre isso. Mas não todos, não engloba a sociedade como deveria. Ainda tem muita gente que acha que é um assunto menor, que gênero é um palavrão.

Por que você acha que algumas mulheres têm uma reação antifeminista?

Nunca pesquisei a fundo sobre isso, mas o que vejo é que para muitas mulheres é confortável. Talvez as mulheres que têm essa opinião estejam reproduzindo o discurso do homem sem perceber. Mas algumas não sofrem tanto com isso, porque são privilegiadas, não sofrem na pele o que outras mulheres que não têm tanto privilégio sofrem, então para elas não parece tão grave. Mas até entre mulheres não tão privilegiadas vejo que existe esse discurso antifeminista. Às vezes elas nem sabem o que é feminismo. Acreditam que há um lugar para a mulher, muito influenciadas pelos dogmas da Igreja, que Deus quis assim.

A questão religiosa é muito forte, de achar que Deus quis assim, que não é uma cultura que foi construída, e sim algo natural. Enquanto ela achar que Deus quis assim, fica difícil de mudar. Com todo o respeito às igrejas, porque acho que elas têm um papel importante também nas comunidades onde o Estado não chega. Mas acredito que deveria ter essa mudança cultural dentro das igrejas, esse olhar político sobre os papéis de gênero, para tentar não chegar a esse ponto das violências.

Uma das grandes preocupações trazidas pela pandemia e a quarentena foi o risco de aumento nos casos de violência doméstica. O que você observou no período?

As estatísticas mostram que o lar é o lugar mais perigoso para as mulheres. O próprio lar, imagina. E aí na quarentena as pessoas estão mais em casa, é inevitável que exploda. Os feminicídios aumentaram muito. O que tem que acontecer, independentemente de a gente estar em uma pandemia ou não, é mudar essa frase de que o lar é o local mais perigoso para mulheres. Porque não adianta ficar querendo fortalecer o discurso da família dentro de um ambiente hipócrita, onde existem essas violências e esse machismo.

Estudo muito processo judicial e a maioria dos casos de estupro, violência, assassinatos, ocorrem dentro da família. Não exatamente dentro de casa enquanto espaço físico, mas dentro de uma estrutura familiar, de intimidade. Então é difícil fortalecer essa família sem mudar essa estrutura do homem que manda no lar, que é o que a Igreja prega, e que a sociedade ainda prega. É um desafio. Como fortalecer essa família com uma equidade de gênero?

Ao mesmo tempo que falamos mais sobre violência contra mulher, há casos como o da menina de 10 anos do Espírito Santo, estuprada por um familiar: os grupos extremistas que se posicionaram contra o aborto viraram o foco das notícias. Como você avalia isso?

Acho que a gente sempre esteve desviando do discurso. Em todas essas notícias que aparecem e que ganham repercussão, a vítima não é humanizada, a questão social não é discutida. Quem fala é o crime, é o criminoso. Há esses debates, como no caso dela, sobre o direito à vida, mas vida de quem? Acho que não houve nada de novo nesse caso. É mais do mesmo, é o que sempre foi feito e a gente ainda não conseguiu mudar isso. Não conseguimos acolher, dar protagonismo e humanizar a vítima. Inclusive, eu comecei um projeto agora, de um podcast para falar de feminicídio com uma abordagem mais humana, de falar das vítimas e do contexto social que levou ao crime, da relação e tudo o mais. Nessa primeira temporada falo mais sobre feminicídios, e procuro trazer essa complexidade social de humanizar as vítimas, o que a gente não costuma fazer.

Que é o que você faz no livro.

Sim, exatamente. É criar empatia. Quando a gente fica só nos números, ou só no discurso do crime em si, as pessoas não têm empatia, continuam com a ideia do punitivismo. Porque todo mundo fica revoltado com a história. “Ah, é revoltante, tem que matar esse tio”. Só que aí isso vai continuar acontecendo em outros lugares, porque a sociedade está propiciando que uma pessoa dessas exista e aja.

“Mulheres vão continuar morrendo enquanto forem encaradas como objeto do homem”

Sara Stopazzolli

E como jornalista, como você observa o papel da mídia na cobertura desse assunto?

Temos um ou outro veículo mais humano, digamos, mais feminista. Isso surgiu nos últimos anos, pois quando eu era mais jovem não existia. Agora há abertura, só que eles falam para uma bolha. E aí infelizmente eu não sei de uma solução para isso, para que eles saiam da bolha. Até meu próprio livro, não sei se ele vai sair da bolha. O documentário saiu um pouco, deu uma circulada por pessoas que não são exatamente o público de esquerda, progressista, ele alcançou alguns lugares onde pessoas ou a política não eram desse espectro. Foi um tema que chamou atenção e sensibilizou porque são histórias que geraram empatia na maioria das pessoas.

Com a pandemia, nós vimos que os países governados por mulheres foram os que se saíram melhor na gestão da crise. Você já parou para imaginar como o mundo seria se fosse governado por mulheres ou dominado por mulheres?

Lógico que seria bem melhor, né? Porque a gente sabe que a questão da masculinidade tóxica é muito presente no homem. Bolsonaro, Trump, eles têm essa masculinidade tóxica que considero nociva. Mas é claro que não é só uma questão de gênero, porque assim como há homens que não têm essa masculinidade tóxica e são bons governantes, há mulheres que reproduzem o machismo. Então não é só uma questão de “ah tem que ter mulher na política”. Tem que ter, lógico. Mas existem várias mulheres que governam para homens, para preservar privilégios masculinos, o que até confunde as pessoas.

Você é otimista em relação ao nosso futuro?

Acho muito difícil essa pergunta, porque minha essência não é muito otimista, não. Quer dizer, sempre fui mais para otimista, até rolar esse governo [de Bolsonaro]. Quando começou com o antifeminismo bombando, mulheres antifeministas, comecei realmente a me preocupar. Acho que as perspectivas não são nada boas para os próximos anos. Mas creio que isso também incentiva quem discorda do discurso a lutar contra. E as novas gerações estão ligadas. As adolescentes hoje já estão mais corajosas, informadas. Minha esperança está aí, não a curto prazo, mas a longo prazo. A galera jovem está a mil anos-luz, mas ainda é a minoria da sociedade. Tem muita coisa para mudar, então para virar totalmente o jogo vai demorar um pouco.

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