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Quando o discurso de ódio se torna prática de ódio

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A chacina de Campinas promovida pelo assassino misógino Sidnei Ramis de Araújo não é apenas um crime “cometido por um louco”. Corriqueiramente, ao feminicídio é atribuído o nome de crime passional, relativizando e invisibilizando o machismo e o ódio às mulheres construídos cotidianamente em nossa sociedade. A carta divulgada em que Sidnei revela o planejamento de suas ações deixa claro que trata-se de mais um crime resultado de um país construído sobre alicerces machistas e misóginos.

A violência contra as mulheres é estrutural no Brasil e antecede os debates entre esquerda ou direita.

É fruto de uma colonização que traz em seu bojo uma ideologia religiosista de países europeus que mais queimaram mulheres durante a Inquisição. É fruto de instituições que excluem as mulheres dos cargos de poder e representatividade. É fruto de uma sociedade que reduz a mulher ao espaço privado, afetivo e ausente de autonomia. É fruto de uma sociedade que ensina desde cedo os meninos a serem agressivos e as meninas a se calarem diante das violências sofridas e ainda culpa as vítimas de estupro pelas suas roupas ou lugares frequentados, taxando-as de vadias. É fruto de uma medicina que enxerga as mulheres apenas como reprodutoras e de um mundo do trabalho que remunera mal e desigualmente. A violência contra as mulheres no Brasil é fruto de uma sociedade autoritária, vertical, perversa, excludente, brutal, que transforma diferenças em desigualdades e as naturaliza.

Sidnei não cometeu um crime passional. Comprou uma arma da esposa de um policial. Raspou o número de série para não “prejudicar” a prática ilegal, corrupta do policial. Sidnei calculou seus atos, escreveu cartas e enviou a amigos. Declarou odiar as mulheres “vadias”, como a mãe de seu filho e as mulheres da família, que iriam “pagar o preço”. Sidnei proferia discursos de ódio, desses que abundam na sociedade e, ultimamente, em comentários de internet. Sidnei não é um indivíduo apenas, mas a expressão de muitos homens que são produto e se ancoram na estrutura misógina da sociedade para legitimar suas violências. A cultura do estupro, tão arraigada, é a expressão da ideia de que as mulheres devem se submeter às vontades dos homens, que seus corpos podem ser subjugados a qualquer instante, que suas vidas estão sujeitas ao deleite masculino. Há, portanto, uma raiz de dominação e um discurso que a reproduz em vários níveis.

Até novelas que reforçam estereótipos femininos e masculinos, que legitimam estupros, agressões, violências psicológicas em nome da audiência

A mídia corporativa lucra vultuosas verbas com o sangue da população e, principalmente, das mulheres. Desde programas policialescos comandados por brutamontes que desrespeitam diariamente a Constituição Federal (CF) até novelas que reforçam estereótipos femininos e masculinos, que legitimam estupros, agressões, violências psicológicas em nome da audiência. Esta mesma mídia que, além de ganhar nas duas pontas, tanto ao estimular a violência como ao noticiá-la como algo surpreendente, descontextualizado, sensacionalista, ótimo para manchetes, defende o uso da força contra a população. Uma mídia que despolitiza, que desinforma e ataca diariamente os Direitos Humanos, que foram construídos após a barbárie da Segunda Guerra Mundial.

Cabe à sociedade, guiada pelas mulheres, tomar a frente, de forma organizada, e exigir a regulamentação dos artigos 220, 221 e 222 da CF e democratizar os meios de comunicação e assim tirar o oligopólio da informação da meia dúzia de famílias que lucram com a violência estrutural. É necessário que os meios de comunicação sejam plurais e diversos para que as mulheres possam discutir a estrutura da sociedade, debater a sociedade que queremos, produzir conteúdo e outro tipo de propagandas (que estão nas mãos de poucas empresas de marketing comandadas por homens). É necessário que tenhamos uma mídia que não coloque a culpa nas mulheres, as vítimas, alegando “infidelidade” da mulher para a “perturbação da mente masculina” enquanto justifica a infidelidade dos homens como algo natural. A mídia, como todos sabem, mesmo que nada saibam, vulgariza, hipersexualiza e submete as mulheres a condições degradantes pela própria condição de ser mulher.

Cabe a instituições públicas, como Ministério Público, Defensorias, Polícia Federal entre outras investigar as pessoas que disseminam discursos de ódio pelo mundo virtual – e não apenas esperar para tomar alguma atitude quando o discurso de ódio se torna prática de ódio.

Cabe às escolas discutirem Gênero e sexualidade para que outros Sidneis não sejam formados diariamente, que a tal da “Escola sem Partido”, cujo partido é o que está aí, defendendo uma ideologia de gênero sexista, machista e misógina, não encontre mais espaço e que nossas crianças e jovens cresçam de modo saudável, buscando a igualdade e o respeito para uma sociedade sem violência.

Cabe também a empresas privadas, como Facebook e Twitter, assumirem suas responsabilidades pela plataforma que comandam. É inacreditável e inaceitável que existam páginas e pessoas fomentando e disseminando discursos de ódio sem que façam nada, apesar de toda a tecnologia e capital que possuem para desenvolver meios de brecar a barbárie. Que ao menos respeitem e façam respeitar a Constituição.

Até quando iremos aceitar como natural aquilo que foi construído para violentar nossos corpos, nossas famílias e nossa sociedade?

Os discursos de ódio que agora reverberam refletem apenas a estrutura de uma sociedade machista, misógina, racista, LGBTfóbica, patrimonialista e falsamente meritocrática. A mídia corporativa não conseguindo mais controlar e esconder a verdadeira face da sociedade brasileira, vê pela internet a recusa e a mobilização dessa violência. Está mais do que na hora de enfrentarmos, cara a cara, essa sociedade que não tem coragem de encarar seus esqueletos: a escravidão, o colonialismo, as ditaduras, as forças militares repressoras, a concentração de terras, as instituições que não permitem o acesso das minorias (minoria não se refere a quantidade, mas aos grupos mais vulneráveis da sociedade, mulheres, negros, LGBT, portanto, à maioria da população), a entrega das riquezas nacionais aos estrangeiros (que irá pauperizar ainda mais a população, especialmente as mulheres e negros) e a misoginia e o machismo que estupra uma mulher a cada dez minutos e mata 13 por dia.

A prática de ódio, tão comum na nossa história, tem no governo golpista uma de suas maiores exposições: um governo de homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais, ricos e de meia-idade. A mesma sociedade que aceita um governo violento desses é a que aceita crimes como o de Sidnei e naturaliza tudo: todo político é corrupto, toda mulher é vadia, todo estupro é instinto, todo feminicídio é passional.

Até quando iremos aceitar como natural aquilo que foi construído para violentar nossos corpos, nossas famílias e nossa sociedade?

 

Publicação Original: Quando o discurso de ódio se torna prática de ódio

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