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Veja publicação original. Não vamos sair disso de um dia para o outro’ com a vacina, diz epidemiologista da OMS
Após 5 meses de epidemia do novo coronavírus no Brasil, com mais de 100 mil vítimas e um platô de mil mortes diárias, a vacina é vista como a esperança mais promissora para saída da crise. O caminho para algum tipo de normalidade, no entanto, é longo, avisa a epidemiologista Cristiana Toscano, única brasileira no Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização da OMS (Organização Mundial da Saúde).
Na perspectiva mais otimista, as primeiras doses podem estar disponíveis em março, na estimativa da especialista. Isso se tudo der certo nas etapas anteriores, que incluem desde resultados dos ensaios clínicos até procedimentos de registro e produção do imunizante em escala.
Depois que as primeiras doses estiverem prontas, ainda há outros passos até um cenário em que seja seguro circular pelas ruas. “Tem um período até de fato atingir coberturas vacinais para conseguir reduzir a transmissibilidade de qualquer doença”, afirma Toscano. Por isso, o distanciamento social vai continuar sendo importante ao longo de 2021.
Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro assinou a medida provisória (MP) que libera R$ 1,9 bilhão para viabilizar o acesso a 100 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford. O valor inclui um pagamento à AstraZeneca, farmacêutica detentora dos direitos de comercialização do imunizante, assim como despesas para o processamento final da vacina no Instituto Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e investimentos necessários para absorção da tecnologia de produção pela instituição.
O acordo do governo brasileiro com a empresa britânica prevê o acesso a 30 milhões de doses entre dezembro deste ano e janeiro de 2021 e outras 70 milhões ao longo do primeiro semestre do próximo ano.
O Ministério da Saúde não anunciou uma data para que a vacina esteja disponível nos postos de saúde. Está em curso um ensaio clínico com 5 mil brasileiros, e a expectativa é que, até o fim do ano, sejam publicados resultados preliminares que poderiam acelerar o processo de registro do produto pela Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária) e de incorporação no SUS (sistema único de saúde). É possível que sejam necessárias duas doses da vacina.
Nesta segunda-feira (10), a Anvisa autorizou alterações no protocolo de pesquisa para que possa ser aplicada uma dose de reforço e também para ampliar a faixa etária dos voluntários, cuja idade máxima passou de 55 para 69 anos.
No momento, o plano de imunização do Ministério da Saúde não inclui outras iniciativas, como a desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo. O imunizante também está sendo testado em brasileiros em um ensaio clínico e a previsão do governo de São Paulo é de acesso a 120 milhões de doses, caso ela se prove segura e eficaz.
Para a epidemiologista envolvida nas discussões da OMS, é importante que países apoiem a estratégia multilateral, ainda que estejam viabilizando parcerias bilaterais. “Qualquer estratégia que trabalha com um país só, abordando somente a proteção da própria população, não funciona numa pandemia, porque o vírus é global”, afirmou.
No campo das estratégias multilaterais está o ACT (Access to Covid-19 Tools – ou “acesso às ferramentas para covid-19”) Accelerator, iniciativa coordenada pela OMS que envolve parcerias entre governos e farmacêuticas. Um dos pilares é o COVAX, um fundo coordenado pela Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), em colaboração com a OMS e com o Cepi (Coalizão Para Inovações em Preparação para Epidemias).
Em meio à rotina de trabalho que muitas vezes começa às 7h e termina as 22h, a professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás (UFG) explicou ao HuffPost Brasil o trabalho do grupo que acompanha a corrida global da vacina.
Leia os principais trechos da entrevista.
HuffPost Brasil: O Grupo da OMS que acompanha as iniciativas de vacinas para covid-19 da OMS se reuniu virtualmente pela primeira vez em 5 de junho e discute estratégias e prioridades de vacinação. Na prática, como a sua atuação deve impactar nas decisões dos países?
Cristiana Toscano: O comitê mais amplo existe há muito tempo, e o papel desse comitê e dos seus respectivos subgrupos, para cada vacina, é, de fato, com base em evidências, propor – porque é um comitê consultivo, então ele não estabelece, ele propõe – estratégias e políticas de vacinação, incluindo grupos prioritários e tudo mais. Tem subgrupos para as vacina de febre amarela, coqueluche, sarampo, pneumococo… para todas as vacinas.
Geralmente existe um reconhecimento internacional muito grande pelo que é proposto por esse comitê. Claro que cada país tem seu comitê técnico assessor de vacinação, cada região também, mas geralmente esses comitês regionais e nacionais seguem as recomendações do comitê da OMS, porque ele é todo estruturado em evidências. É um trabalho muito reconhecido, amplo, e embasado em avaliação de níveis de evidências.
E como está a atuação do comitê para a vacina da covid-19?
Geralmente esses comitês são estruturados especificamente para vacinas prontas, que já tenham finalizados todos os testes. O que foi feito, excepcionalmente em função da covid, foi antecipar a criação desse comitê para que ele trabalhasse em paralelo ao desenvolvimento e geração de evidências dos ensaios clínicos das vacinas candidatas para tentar agilizar esse processo de formulação de políticas.
Ele foi constituído no final de maio. No início de junho a gente começou a trabalhar e, de fato, nosso trabalho é acompanhar periodicamente. A gente tem várias reuniões por semana. A gente tem uma interação sob regras de confidencialidade com os pesquisadores e grupos produtores de vacinas pré-candidatas ,que também nos apresentam os resultados dos estudos em andamento, especificamente para os estudos nas fases 2 e 3 – que são nosso foco principal por estarem em fase mais avançada.
É necessário esperar os ensaios clínicos avançarem para propor grupos prioritários e algum tipo de calendário de vacinação?
Não dá para recomendar porque os ensaios clínicos não terminaram. O que a gente tem feito é acompanhado todos os ensaios clínicos do ponto de vista do que está sendo avaliado, quais grupos estão sendo submetidos, em quais grupos de idade ou grupos específicos populacionais os estudos estão sendo desenvolvidos. E, além das perguntas relacionadas aos ensaios clínicos, existe uma série de perguntas epidemiológicas relevantes para formulação de políticas.
Diante do fracasso do isolamento social no Brasil, a vacina acabou se tornando uma esperança para muita gente. Neste mês, uma declaração do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesusm, foi vista como um balde de água fria ao dizer que pode não haver uma “bala de prata” contra a covid-19. A resposta para o fim da crise está mesmo em uma vacina?
Eu fui ouvir a declaração inteira e foi uma frase ao final que, de fato, foi infeliz. Eu entendo o que ele estava querendo dizer, porque acho que é exatamente no contexto desse sensacionalismo, dessa especulação. Foi na mesma semana em que a Rússia sinalizou uma possibilidade absolutamente infactível de uma vacina agora em agosto. E uma série de gestores de estados e de países indicando que não tem muito o que fazer, vamos esperar a vacina. Meio que: ‘vamos sentar e esperar, e tudo bem essa escalada de casos e eventual segunda onda; a vacina vai ser a solução’. E a fala dele foi nesse sentido. O caminho não é esse. As medidas de prevenção e de controle são um combo. É um combinado e não tem uma só estratégia que vai resolver tudo.
Mesmo se a vacina for aprovada – uma ou mais nos ensaios clínicos de fase 3 –, a gente tem uma série de questões de escala de produção. Não vai ser em abril que todas as milhões doses vão estar disponíveis de uma vez só. Vai ser em etapas. Tem um período até, de fato, atingir coberturas vacinais para conseguir reduzir a transmissibilidade de qualquer doença.
Não é ‘amanhã a vacina tá aqui, depois de amanhã, tá tudo resolvido’. Não é. Distanciamento social ainda vai ser importante. Todo processo de vigilância, de testagem e identificação de casos, isolamento desses casos, rastreamento dos contatos, quarentena desses contatos, todas medidas de higienização, uso de máscaras vão ter de continuar de alguma forma, com maior ou menor flexibilidade em relação ao distanciamento social, em função do momento epidemiológico. A gente não vai sair disso de um dia para o outro quando e se uma vacina chegar. Vai ser um processo.
A gente poderia ter as primeiras vacinas para grupos prioritários no início do ano, uma distribuição para o restante da população ao longo do primeiro semestre e uma situação mais normalizada ao longo do segundo semestre?
Início do ano, tipo janeiro, eu acho otimista demais. Na melhor das hipóteses, eu falaria algo em torno de março ou abril. Mesmo assim, condicionada a uma série de etapas anteriores que devem ter sucesso sucessivamente.
Março ou abril para esse grupo prioritário?
Não estou nem falando de grupos, mas de ter o número inicial de doses disponíveis para uso de fato. Já passadas as etapas de registro, distribuição, incorporação, controle de qualidade, tudo isso.
Em relação à priorização, tem uma série de questões intuitivas. Grupos que estão na linha de frente, portanto, necessários para manutenção das atividades essenciais das sociedade, não só nessa pandemia, mas na pandemia de influenza, em todas as epidemias passadas, são sempre intuitivamente identificados como grupos prioritários profissionais de saúde, das forças de segurança.
Outros grupos prioritários estão sendo discutidos, mas depende da vacina. Se a gente for falar de idosos, porque têm maior risco de adoecimento e de complicações e óbitos, do ponto de vista epidemiológico faz sentido, mas temos estudos de fase 3 realizados nesse grupo de idade que demonstrem eficácia e segurança nesse grupo de idade?
Se não tiver, a gente não pode recomendar vacina para esse grupo de idade. Por isso, todas essas perguntas têm de se encaixar e têm de ter respostas positivas e evidências subsidiando essa recomendação de todos os ângulos. É o trabalho que a gente faz no comitê.
No Brasil, admite-se acelerar o trâmite de registro pela Anvisa para que uma vacina possa ser incorporada pelo SUS se for considerada eficaz e segura. Há uma expectativa de que, em novembro, sejam divulgados resultados preliminares no ensaio clínico da vacina de Oxford, que daria aval para o registro e para o calendário previsto pelo Ministério da Saúde, de 30 milhões de doses entre dezembro deste ano e janeiro de 2021, e outras 70 milhões ao longo do primeiro semestre. Na sua avaliação, esses prazos são factíveis?
O tempo do ensaio clínico depende prioritariamente de duas coisas. Primeiro, do número de pessoas a serem incluídas. Você precisa de 10 mil ou 20 mil participantes, então demora a conseguir acompanhar essa pessoas. Estão sendo feitos estudos em vários países simultaneamente, o que minimiza esse tempo.
A outra questão é que esses estudos pressupõem a exposição dos participantes ao vírus naturalmente. Por isso estão sendo realizados em lugares em que há transmissão importante do vírus, que é Brasil, África do Sul, Chile, Emirados Árabes, Arábia Saudita, vários países em que o vírus ainda está circulando de maneira relevante. Isso também é importante, porque, se o vírus parar de circular – o que nós esperamos que aconteça logo –, do ponto de vista do calendário da vacina, vai atrasar.
É o que aconteceu, por exemplo, com os estudos da vacina da SARS. Havia muitas candidatas sendo testadas e a SARS foi embora. Deixa de ser uma prioridade e fica difícil de completar esses calendários previstos para os ensaios clínicos.
Se esse calendário é factível, tudo depende do resultado do ensaio clínico de fase 3. Estamos todos bastante otimistas em função do número grande de pré-candidatas que estão sendo estudadas, que chegaram à fase 3 com resultados promissores nas fases 1 e 2, mas a observação de que de fato essa imunidade – ou por anticorpos ou mediada por células – de fato protege contra a doença, só é observada na fase 3.
Se essas duas coisas acontecem – o ensaio terminar até o final do ano e o resultado for positivo – para as duas vacinas, não só para a de Oxford, mas para a da Sinovac, que está sendo testada pelo Instituto Butantan – existe sim a perspectiva de termos para o primeiro semestre do ano que vem um suprimento inicial de doses para o primeiro grupo de pessoas a serem vacinadas.
E sobre as etapas após o resultado do ensaio clínico?
Tem todas essas etapas de registro, licenciamento, ampliação da escala de produção, que já está sendo feita, com um investimento de risco prévio para tentar minimizar esse tempo, porque geralmente você termina o ensaio clínico para fazer toda a ampliação da escala de produção.
Agora você está tendo esse investimento de risco apostando que uma dessas vacinas vá dar certo. E depois tem o processo de distribuição, treinamento de profissionais, estruturação de cadeia de frio, questões operacionais para que o programa de fato incorpore a vacina e possa administrá-la. Tem uns meses para isso acontecer no ano que vem.
Tanto profissionais do Butantan quanto de Bio-Manguinhos têm dito que essa parcerias com a Sinovac e com a AstraZeneca, respectivamente, fazem sentido porque a tecnologia usada nessas vacinas é compatível com a estrutura dessas duas instituições brasileiras…
Faz sentido. Inclusive foi feita uma prospecção tanto pelo Butantan quanto por Bio-Manguinhos de todas as potenciais parcerias que poderiam ser feitas das vacinas candidatas em fase 3 e um dos critérios foi: a gente tem essa capacidade de produção instalada? Não em termos de quantitativo, porque claro que isso teria de ser ampliado, mas em termos de conhecer a tecnologia, porque isso não é do zero que você gera.
Por exemplo, as vacinas de RNA. Nenhum lugar do mundo tem vacina usando essa tecnologia ainda, então seria algo um pouco mais complexo pensar em incorporar essa tecnologia para fazer uma parceria ou compra de risco nesse momento. Não que não seja possível, mas são outros graus de complexidade.
A capacidade nacional de produção de vacina pelo Butantan e por Bio-Manguinhos é vista como um ponto forte do Brasil e ambos têm investido em aumentar essa capacidade com a construção de fábricas e novos turnos de trabalho. Isso é um indicativo de que o Brasil pode ter mais sucesso nessa etapa da pandemia?
O mundo inteiro está fazendo isso e é uma aposta de risco. Está se tentando ganhar tempo na eventualidade e na possibilidade – que é real, mas não é certeza – de que o ensaio clínico de fase 3 dê certo. Coalizões internacionais de financiamento estão fazendo isso, como Covax, Gavi – porque senão você perde mais 6 meses até ampliar essa capacidade de produção. Isso não quer dizer que tem mais chance de dar certo. A chance de dar certo está lá. Esse investimento de risco antecipado é em função da situação emergencial da pandemia, então se faz um investimento que vale a pena em função dessa situação. A sociedade acredita que vale a pena, então é o que está sendo feito.
No início da pandemia, uma corrida global por insumos como EPIs, respiradores e medicamentos prejudicou a resposta do Brasil. Para produção e distribuição em escala das vacinas, profissionais do setor têm alertado para uma possível repetição desse cenário, como um possível gargalo na produção de frasquinhos usados no envase. Há um esforço global para evitar que isso aconteça?
Muito. Existe uma preocupação muito grande em relação a todos os insumos, porque a cadeia produtiva de vacinas é muito complexa e envolve muitos insumos, equipamentos e suprimentos que têm de ser pensados, desde a tampinha de borracha do frasco de vidro à seringa de administração, tudo isso. A gente está falando de bilhões, então de fato está sendo trabalhado isso para tentar minimizar esses gargalos.
Até agora, o Ministério da Saúde trabalha com o quantitativo de 100 milhões de doses da vacina de Oxford. Estabeleceu-se uma espécie de disputa política ao se falar da incorporação da vacina desenvolvida pelo Butantan com a Sinovac. Ao mesmo tempo, ex-integrantes da pasta têm dito que o mais provável é que mais de uma vacina seja incorporada para dar conta da população brasileira. A senhora concorda com essa avaliação?
Essa batalha política é absolutamente não bem vinda tanto na área da vacina quanto em qualquer área de combate à pandemia, como a gente tem observado. As questões têm de ser técnicas, científicas e baseadas em evidências. Do ponto de vista técnico e científico, o que o mundo está apostando – e por isso temo tantas vacinas candidatas – é que quantas mais vacinas possíveis, melhor. As coalizões internacionais de financiamento têm investido em portfólio de vacinas e não em uma só.
Pensando exatamente que, se investir em mais de uma, a gente tem possibilidade de termos quantidade suficiente de vacinas, inclusive com mais de um produtor e com tecnologias diferentes, que o mundo precisa. Essa deve ser também a perspectiva do SUS. As instâncias responsáveis pela incorporação no SUS passam no Ministério da Saúde pela Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS], que vai fazer essa avaliação com base em evidência e com bases técnicas. Se tivermos os estudos de fase 3 positivos para as duas vacinas, espero que de fato, como deveria ser, tenhamos mais de uma vacina no Brasil.
Integrantes do governo de Jair Bolsonaro fazem reiteradas críticas a instituiçòes ligadas ao sistema das Nações Unidas e o presidente já ameaçou deixa a OMS na pandemia. O quanto essa postura pode impactar nessa articulação global de acesso à vacina?
Qualquer discurso nesse sentido globalmente é muito ruim. Qualquer estratégia que trabalha com um país só, abordando somente a proteção da própria população, numa pandemia não funciona, porque o vírus é global. Existe esse entendimento, que não é dessa pandemia, de que mecanismos internacionais e multilaterais para prevenção, controle, monitoramento de possíveis pandemias são fundamentais. Tanto que já existe compartilhamento de informações através da OMS, monitoramento de dados. Tudo isso já é definido através do regulamento sanitário internacional, do qual os países que participam da ONU são signatários.
Isso ajudou muito. Duas semanas após o início dessa pandemia, a gente já tinha informação, e o mundo inteiro começou a mapear casos. Isso é inédito, se você avaliar retrospectivamente a velocidade de detecção e compartilhamento de informação. Claro que sempre tem alguns problemas, mas o mecanismo está implementado.
Além do monitoramento, da detecção precoce, do compartilhamento de informações – que já avançou muito –, teve uma série de outras atividades em relação à prevenção, controle, mitigação. Aí entram também, por exemplo, fundos para vacinas, tecnologias, que são fundamentais e têm de ser trabalhados de maneira multilateral. Isso é importante porque pandemias novas vão acontecer. Essa não é a primeira e não vai ser a última.
O ACT [Access to Covid-19 Tools] Accelerator, coordenada pela OMS, trabalha para promover o acesso equitativo da vacina. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos fecharam um acordo de compra de todas 100 milhões de doses que as farmacêuticas Pfizer e BioNtech devem produzir este ano. De que modo essa equidade pode ser assegurada diante dessas negociações prévias entre governos e farmacêuticas?
O ACT, essa iniciativa da OMS, uma parceria com governos e farmacêuticas, se deu em função da preocupação de garantir o acesso a tecnologias para covid, envolvendo diagnóstico, terapêuticas, preventivas. Em função do avanço das vacinas candidatas, um dos pilares do ACT é o COVAX. Esse fundo está sendo coordenado pela Aliança Global de Vacina, a Gavi, em uma colaboração com a OMS e o Cepi [Coalizão Para Inovações em Preparação para Epidemias].
Como em todas as negociações entre países, a gente tem estratégias bilaterais e multilaterais. Bio-Manguinhos com Oxford é bilateral. Sinovac com Butantan é bilateral. E existe a estratégia multilateral, que é uma coalizão entre países. São complementares. Acho importante que os países que estejam viabilizando estratégias bilaterais também apoiem a estratégia multilateral. Se o país optar por ficar só na bilateral, do ponto de vista global, é um problema. Principalmente países desenvolvidos.
O COVAX teve uma reunião em 31 de julho para definir, de fato, o interesse de participar dos países, e a gente teve 92 países de baixa e média renda que vão ser passíveis de acesso a vacinas através do fundo COVAX – e a gente tem, se não me engano, 78 países autofinanciáveis. Eles estão no COVAX, mas não acessaram vacinas através desse fundo. Eles colaboram com o fundo e podem acessar vacinas com financiamento próprio. E o Brasil é um deles, porque o limiar para definir quem acessa com financiamento próprio ou pelo fundo é PIB per capita de US$ 4 mil.
Por que é importante o Brasil fazer parte dessa iniciativa?
Existe uma capitalização do COVAX estimada em US$ 18 bilhões. Parte desse recurso é para investir em um portfólio de vacinas pré-candidatas, e isso permitiria que países participantes tenham acesso a essas vacinas caso alguma delas demonstre ser positiva. Outra parte do fundo iria para esse mecanismo de financiamento que sechama advanced market commitment, ou compromisso antecipado de mercado, que já foi usado pela Gavi no passado para permitir o acesso de países pobres a vacinas mais caras e inovadoras do ponto de vista tecnológico. Por exemplo, a vacina contra o rotavírus, contra HPV, contra pneumococo. Isso foi usado nas últimas duas décadas.
Então, através desse mecanismo, você tem um compromisso de mercado junto aos produtores dessas candidatas a vacinas de que, caso aprovada, segura e eficaz, vai existir esse mercado que o fundo vai financiar, para compra dessas vacinas. Primeiro você dilui o risco dos países participantes, porque ele está investindo em um portfólio de vacinas e não em uma ou outra, e, segundo, você melhora o ambiente do mercado. Você dá mais segurança de mercado para as vacinas ampliarem essa capacidade de produção, dado que você vai ter demanda. Esse mecanismo de financiamento junta as duas pontas.
Quais vacinas estão incluídas no COVAX?
O COVAX está nessas semanas fazendo a negociação com as empresas das vacinas candidatas e também com os países. Na semana passada, a primeira que assinou o memorando de entendimento com o mecanismo de financiamento do COVAX foi a AstraZeneca. Não tem uma lista fechada, mas estão sendo priorizadas as que estão na fase 3 dos ensaios clínicos.
Enquanto pesquisadores de vacinas como a de Oxford, CanSino e da BioNtech-Pfizer têm informado resultados preliminares, a Rússia não divulgou esse tipo de informação e anunciou que iniciaria um projeto de vacinação em massa em outubro [nesta terça, o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou que o país registrou a primeira vacina do mundo contra o novo coronavírus]. Essa iniciativa também está sendo monitorada pela OMS? Qual a credibilidade desse anúncio?
Isso é uma especulação. Não é falta de transparência ou de comunicação. É especulação pura e simples. Existe um monitoramento global de todas vacinas candidatas sendo avaliadas, tanto estudo pré-clínico quanto clínico. Esse monitoramento é atualizado semanalmente. Essa vacina russa está lá. Inclusive é necessário um registo do ensaio clínico globalmente antes de ele iniciar, e ela está finalizando a fase 1.
Do ponto de vista do nosso grupo de trabalho, a gente absolutamente desconsidera qualquer uma dessas afirmações, porque a gente sabe que é impossível se realizar um estudo de fase 3 em um mês. Essa especulação traz insegurança, as pessoas ficam em dúvida. Isso é muito negativo. Ela gera uma incerteza especulativa e nós, que entendemos e acompanhamos do assunto, absolutamente desconsideramos porque sabemos que é um absurdo. Mas para a população que não está próxima, acompanhando, e não é especialista, gera uma dúvida – o que é negativo e coloca em risco a confiança do processo. Essa vacina foi testada em 18 participantes. Claro que não vai ser registrada e usada em outubro. Nunca.