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Veja publicação original: JOÃO DE DEUS: ROTEIRISTAS FALAM SOBRE SÉRIE EM NOME DE DEUS
Em 2018, a jornalista Camila Appel foi a responsável por investigar e revelar a aterrorizante história dos abusos sexuais cometidos por João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus. A primeira mulher a topar falar publicamente sobre os crimes cometidos pelo médium foi a holandesa Zahira Mous, que detalhou os abusos que sofreu na Casa Dom Inácio de Loyola, onde ele atendia em Abadiânia, no programa da TV Globo Conversa com Bial. Além dela, outras vítimas deram seus depoimentos ao programa sem se identificar. A revelação feita por Zahira desencadeou a quebra do silêncio de mais de 300 vítimas do médium e as investigações levaram à condenação de João de Deus a mais de 40 anos de prisão.
Depois que descobriu o caso, Camila passou o último ano mergulhada na história de João de Deus e da Casa Dom Inácio. Junto com o jornalista Ricardo Calil, ela assina o roteiro de Em Nome de Deus, série da Globoplay que revela os crimes sexuais que levaram à condenação do suposto curandeiro, mas também a força e a coragem necessária para as vítimas irem a público e revelarem suas histórias. Em conversa com a Trip, os roteiristas contam os bastidores desse trabalho e a potência que ele carrega: “Não é só uma história feia e triste, é uma história bonita, de força, de união”, afirma Camila.
No play abaixo ou no Spotify do Trip FM, você pode conferir o papo que batemos com Camila e Calil.
Camila Appel. Foi muito chocante que, quando nós chegamos nessa história, ela já estava tentando ser contada a muito tempo. A Zahira foi, para nós, o começo, mas depois descobrimos que outras mulheres já tinham ido a público e denunciado o João de Deus em 2008, e depois de 2016, e nunca foram ouvidas, nem as denúncias foram levadas adiante. A gente chegou nessa história porque o Pedro Bial queria entrevistar o João Teixeira de Faria para o programa, e ele assistiu um documentário, leu alguns livros e decidiu cancelar a entrevista. Quando ele cancelou eu já tinha começado uma pesquisa para o programa e conversado com uma amiga minha que tinha passado meses em Abadiânia. E essa minha amiga falou: “Eu quero te contar uma coisa”. Ela nem queria falar pelo telefone, morrendo de medo do que ia expor. E o que ela contou é que ouvia rumores de que o João de Deus era um abusador, e me mostrou o post publicado pela Zahira no Facebook descrevendo o abuso em detalhes. Essa amiga também me levou à mulher que tinha um diário escrito há 20 anos, no qual ela descrevia um abuso que tinha sofrido, similar àquele que a gente estava lendo na internet, e foi muito chocante.
Ricardo Calil. De uns anos para cá, a gente vem notando um longo processo de extinção desse tipo de jornalismo investigativo, que tem muitas causas: a crise do papel no jornalismo, a crise econômica. A gente se sente muito privilegiado de ter tido a chance de fazer um trabalho de mais de ano investigando um único tema. Entendo o quanto é incomum e o quanto é luxuoso isso hoje em dia. Ao mesmo tempo acho que a gente está vivendo um momento tão extremo em vários pontos do mundo e no Brasil, especificamente, que eu começo a ver alguns sinais de renascimento desse jornalismo. A gente volta a todo dia assistir ao telejornal esperando o que vai ser aquela edição, o que vai nos dizer, analisar e refletir. E eu espero que o mundo volte para um lugar melhor, o Brasil volte para um lugar melhor, mas que o jornalismo mantenha essa vitalidade que voltou a ganhar por conta desse momento.
Muitas vítimas relatam uma paralisia, uma trava no momento do abuso que as fazia incapazes de ter qualquer reação. Em mais de 300 mulheres, teve alguma que conseguiu reagir de imediato a essa situação?
Camila. Existem reações diversas. Uma delas é a da mulher ficar em choque, paralisada naquele momento. Até porque o tipo de ameaça que o João fazia é muito cruel, perversa. “Se você não fizer isso você não vai se curar. Sua mãe, seu filho, não vão se curar”. E a ideia que, do outro lado da porta, tinham mil pessoas rezando e acreditando naquele homem, contribuía para a paralisia. Mas muitas mulheres chegaram neste momento e agiram. Tem até um depoimento de que as mulheres que saiam gritando e xingando eram tidas como histéricas e colocadas de lado. Eles tentavam normalizar qualquer tipo de reação, inserindo naquele contexto simbólico e espiritual de cura. A gente entrevistou a Marina, uma fisioterapeuta, que o confrontou logo no dia seguinte. Ela sofreu o abuso, foi para a pousada e lá contou para uma colega, que a ajudou a entender que ela realmente tinha sido vítima de um abuso. Ela voltou à Casa Dom Inácio no dia seguinte e confrontou o João e seu braço direito, um homem chamado Chico Lobo. Foi em 2016 e ela gravou essas conversas. Depois ela foi na delegacia de Abadiânia, fez um B.O. e ouviu da delegada que ela não era a primeira nem a última, e que ela não podia fazer nada. De volta a São Paulo, Marina fez uma denúncia no site do Ministério Público.
Além dela, entrevistamos a Camila, que foi abusada em 2008, com 16 anos, na frente do pai. O pai dela estava na sala também, mas o João mandou ele fechar os olhos e rezar. Ele abusava da menina nesse momento e ela acabou contando para o pai uns dias depois. Eles processaram o João, que foi inocentado. A juíza foi entrevistada na série, é a mesma juíza dos outros processos. Ou seja, tudo isso mostra que também tem vários casos de mulheres que não se calaram, que, na hora que perceberam, agiram, mas elas encontraram uma impossibilidade de justiça. Muitas falam ainda em medo de retaliação espiritual. São pessoas que acreditam naquilo, elas estão lá por uma situação de grande vulnerabilidade e porque acreditavam nele.
Que poder é esse que ele tinha de imobilizar a justiça em várias instâncias e em vários locais, de forma que essas acusações anteriores não tenham resultado em nada?
Ricardo. O João Teixeira de Faria era um cara que podemos de certa forma associar à figura do típico coronel brasileiro: um cara que conseguiu dominar a região dele, não só pela espiritualidade, mas também através de ameaças e violência. Havia uma dependência econômica de uma grande parte da cidade em relação a ele. E ele soube se associar com o poder de uma maneira muito perspicaz. Muitos empresários frequentavam e investiam na Casa Dom Inácio, de certa forma à espera de um certo status espiritual, de estar próximo do João de Deus. Havia também muitos políticos, muitos juristas renomados e muitas celebridade que frequentavam a Casa e se orgulhavam de posar ao lado dele, ou se tratavam com ele. Essa soma da fama de um líder espiritual que curava com esse aspecto de um coronel local, com relações muito íntimas com o poder, ajuda a explicar o silêncio de tanto tempo sobre os abusos e os outros crimes que ele cometia.