Saiu no site R7:
Goretti Busollo conta que a família também não lhe deu apoio para lidar com o trauma vivido
“Qual roupa você estava usando”? A pergunta é comum em relatos de mulheres que já denunciaram abusos sexuais a autoridades policiais.
Dados da pesquisa “Violência Sexual — Percepções e comportamentos sobre violência sexual no Brasil” mostram que 54% da população acreditam que as mulheres não são levadas a sério quando fazem denúncia de que sofreram violência sexual. O levantamento, divulgado na última segunda-feira (12), foi feito pelo Instituto Patrícia Galvão e empresa Locomotiva e entrevistou 1.000 pessoas (homens e mulheres).
Essa foi exatamente a realidade vivida por Goretti Bussollo, presidente da ONG Todas Marias. Goretti, assim como milhares de meninas brasileiras, foi abusada sexualmente. Por duas vezes.
Hoje com 50 anos de idade, Goretti conta que sofreu o primeiro abuso quando tinha 11, praticado pelo patrão da casa em que trabalhava como empregada doméstica. Na época, a menina foi estuprada pelo homem e por outros três amigos dele. Durante um ano, sofreu diferentes violências sexuais dentro do local de trabalho.
Pela pouca idade e pelo medo, Goretti não denunciou o abuso. Alguns anos depois, a presidente da ONG se viu novamente numa situação vulnerável: foi estuprada mais uma vez. Diferentemente da primeira ocorrência, a jovem tomou coragem e denunciou o agressor, mas diz que não teve o amparo que precisava para superar o trauma.
— Anos depois, quando eu tentei denunciar o primeiro estupro, o delegado me perguntava: “Você gostava, né”?, já que sofri por um ano.
Na segunda denúncia, Goretti procurou a delegacia em busca de Justiça pelo que tinha acontecido. Ela afirma que o sistema de leis é arcaico e que as decisões são tomadas por homens, o que faz com que elas não se enquadrem dentro das necessidades femininas.
— Eu denunciei o agressor e nada aconteceu. Foi feito um exame, tudo certinho. O estupro foi comprovado, mas nunca houve nem investigação. Isso é muito comum de acontecer.
Família
Além do constrangimento de ir à delegacia realizar o B.O. (boletim de ocorrência), Goretti conta que a família teve um peso fundamental para aprofundar a dor que sente sobre os acontecimentos. Assim como o caso de muitas meninas e mulheres, nem mesmo os parentes próximos acreditaram na versão contada pela menina abusada. Na época, a mãe dela dizia para que não falasse sobre o abuso com ninguém.
— Minha família tem vergonha de mim até hoje por eu ter contado o que aconteceu. Muitos ainda me perguntam se eu não estou inventando minhas histórias. A dúvida é muito difícil, é um dos motivos que desencorajam as pessoas a denunciarem.
Goretti pensou em não denunciar o caso por vergonha, culpa — que ela diz ser algo imposto pela sociedade — e o medo do juízo que as pessoas fariam do caso. No entanto, não se arrepende de ter dado o passo da denúncia, porque diz que “deixou de ser refém da violência” no momento em que registrou o boletim de ocorrência. Hoje, a única vontade é de que os familiares buscassem entender o que ela passou.
— Eu queria que alguém sentasse comigo e falasse para eu contar tudo o que aconteceu. Isso nunca aconteceu e não sei se aconteceria.
De dentro da justiça
Assim como Goretti, outras meninas e mulheres procuram a Justiça para denunciar casos de violência sexual todos os dias. Segundo a promotora Gabriela Manssur, as vítimas acabam sendo desmotivadas quando não recebem atendimento humanitário.
— As mulheres tendem a ser culpabilizadas dentro de todo o sistema de justiça. As pessoas vêm de uma sociedade machista, que sempre coloca em dúvida a palavra da mulher. No entanto, a partir do momento em que a vítima bate na porta da justiça, esta deve estar aberta, com pessoas dispostas a dar um atendimento sem culpá-la.
A procuradora afirma que a mulher chega muito abalada à delegacia para registrar a denúncia. Além de terem o apoio da justiça, precisam do amparo familiar, o que Goretti não teve. Segundo ela, o trauma deixou reflexos ao longo do tempo: compulsão por comida, por compras e por remédios, por exemplo.
— Acredito que as vítimas estão rompendo a barreira do silencio, porque estão tendo mais apoio. No entanto, os mesmos problemas ainda persistem: a vergonha, o medo do agressor e a falta de credibilidade no sistema de justiça.
Hoje, Goretti conta o caso sem chorar — o que considera um avanço proporcionado pelo tratamento que realiza ao longo dos anos. No entanto, diz ser julgada pelas roupas que usa — peças vermelhas, curtas, saltos altos e vestidos. Embora o processo de aceitação dos abusos que sofreu seja constante, diz que as marcas sempre serão presentes.
— Eu sou uma mulher em transformação. Eu nunca vou sarar: vejo minha história todos os dias.
Publicação Original: Mulher estuprada por duas vezes relata descaso policial: “Você gostava, né”?