Saiu no site O GLOBO
Veja a publicação original: Adelante: documentário acompanha a luta das mulheres venezuelanas refugiadas no Brasil
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Coprodução da cineasta Luiza Trindade e da plataforma CELINA apresenta o cotidiano de um grupo de mulheres que deixaram país em crise econômica e caos institucional para reconstruírem suas vidas
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Por Luiza Trindade
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Foi ainda no curso de Jornalismo que entendi que o meu caminho profissional a pela imagem. Me graduei com a urgência de produzir um projeto autoral, mas foi um dia na praia que definiu tudo. Um grupo de mulheres, sentadas na areia com seus filhos, classificava as latinhas que tinha catado durante o dia. Toda a conversa era em espanhol. Me aproximei e descobri que eram refugiadas venezuelanas e que estavam no Rio em um abrigo da PARES Cáritas, ONG que recebe e dá assistência a pessoas em situação de refúgio. Fiz uma foto do grupo e decidi que documentaria a vida daquelas mulheres.
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A realidade da Venezuela não é fácil. O cenário político conturbado e a economia baseada em um único produto, o petróleo, originaram a crise que fez muitos se refugiarem em países vizinhos. O Brasil foi um deles, pelo fácil acesso territorial. Documentar um grupo de mulheres refugiadas da Venezuela é também retratar as consequências de um país inteiro. É esse emaranhado que está retratado em “Adelante: a luta das refugiadas venezuelanas no Brasil”, documentário coproduzido por mim e pela plataforma Celina, com roteiro meu e de Hugo de Araújo, que será lançado hoje, Dia Mundial dos Refugiados, no site do GLOBO.
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ASSISTA AQUI O DOCUMENTÁRIO:
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A Cáritas concordou em me receber. É uma daquelas casas antigas, com um quintal grande, de terra batida. Na entrada, uma árvore, no meio do terreno, que dá vontade de escalar. Esse lugar é o abrigo temporário das venezuelanas que chegam por Roraima. Além da casa, são oferecidos aulas de português, cursos de capacitação, apoio de advogados e atendimento social e psicológico.
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E lá fomos eu e o meu portunhol ouvir a história de todas as venezuelanas que quisessem falar comigo. Eu tinha o prazo de seis meses para concluir, o tempo que elas ficariam no abrigo. A primeira com quem eu conversei foi a Juling. Ela chegou sorridente e me oferecendo café. Respondi a todas as perguntas que me fez. Depois, foi a minha vez de perguntar. Quando Juling me contou tudo o que tinha passado, eu entendi que estava diante de algo muito mais forte e significativo do que tinha imaginado.
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Pouco a pouco elas sentaram ao meu lado. Algumas quase não falavam, uma tentativa de encerrar logo a conversa. Outras aproveitavam para desabafar em busca de conforto. Me emocionei com todos os depoimentos nesse dia, mesmo os curtos.
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Entendo a necessidade de distância entre entrevistador e entrevistado. Mas acredito que tenha feito exatamente o oposto. Aos poucos, fui absorvida pela casa, por elas, pelos filhos delas e, até mesmo, pela árvore do quintal da entrada. Consegui o que queria, fazer parte da rotina dessas mulheres. Cozinhávamos, íamos ao mercado, passeávamos, brincávamos com as crianças, entre outras atividades que surgiam, espontaneamente. Tanto a câmera, quanto a minha presença já não incomodavam mais.
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É estranho pensar que elas viviam normalmente, com suas famílias, empregos fixos, planos para o futuro e amores. Mas, por conta de fatores externos e internos da Venezuela, se depararam com o desemprego, com a falta de alimentos, remédios e itens básicos. E logo começaram a ter de escolher se almoçavam ou jantavam, ou quem da família não comeria uma refeição.
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O tempo na casa da Cáritas passa devagar. Umas poucas tinham a sorte de sair para trabalhar, outras ficavam em casa e ajudavam a cuidar das crianças e da limpeza. Há sempre, ao fundo, música cantada em espanhol e o som de conversas com a família no celular. Essas mulheres não se conheciam até o momento em que entraram no abrigo. Mas viveram trajetórias parecidas, se entendiam e se ajudavam em todos os momentos.
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O dia em que elas foram ao estúdio na redação de O GLOBO foi particular. Ficaram assustadas com o tamanho da sala, com as luzes e as câmeras. Porém, quando começaram a responder, as histórias ficaram mais longas e detalhadas. Os depoimentos vieram carregados de emoção e de tudo que elas precisavam colocar para fora. Foi possível notar o desespero de cada uma com a aproximação do dia de saírem do abrigo. Estavam sem saber o que fazer, para onde iriam.
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Ao sair da casa, elas receberam o valor de um aluguel, o que é quase nada. E foi aí que a sororidade apareceu. Elas se juntaram em pequenos grupos e dividiram um apartamento em uma comunidade no Recreio dos Bandeirantes, amparando umas às outras, principalmente as que não tinham trabalho. Testemunhar esse movimento foi emocionante.
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Yuleima e Maritza, mãe e filha, se arriscaram e foram tentar uma oportunidade em São Paulo, porque não conseguiram emprego no Rio. A necessidade de dinheiro ia além da sobrevivência. Elas sonham em voltar para Roraima e reencontrar a outra parte da família que ficou por lá.
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Fizemos um grupo no WhatsApp para não perder contato. De vez em quando, falamos ao telefone ou vou visitá-las na comunidade onde algumas estão morando. Meu principal objetivo era deixar um legado para elas e para as próximas venezuelanas que chegarão na casa, de seis em seis meses. Ainda não consegui. Mas tenho certeza de que o documentário foi importante para mostrar que precisamos olhar com especial atenção para a situação dos refugiados. Este documentário será, sempre, um ponto de partida e referência para os meus próximos trabalhos. Quero fazer um jornalismo humano e próximo de quem eu estiver documentando.
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Acho que posso dizer que eu aprendi com elas, muito mais, sobre a força e a potência do que é ser uma mulher, do que em qualquer outro ambiente. Juling Rodriguez, Maritza Josefina Graffe, Yuleima Margarita Orocopey, Nairobis Martinez, Daynelis Del Valle, Ruth Delgado, Jennifer Veracierta e Yaisy Carrasquel, meus mais sinceros obrigada. Esse documentário é para vocês, para que suas histórias não sejam esquecidas, para que vocês sejam escutadas e compreendidas.
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À medida que a pandemia de Covid-19 avança em todo o mundo, as incertezas e instabilidades só aumentam. Sem planos de saúde, desempregadas, contas atrasadas, longe das famílias e com os documentos vencidos, é assim que as venezuelanas têm vivido os últimos meses. Muitas trabalhavam em hotéis, que, no momento, se encontram fechados. A perspectiva de um futuro, de uma vida estável e confortável, só se distancia. Com intuito de promover um amparo, a PARES Cáritas lançou uma campanha de financiamento coletivo. O objetivo é arrecadar R$ 55 mil e atender a cem famílias de refugiados. Além disto, já existe a distribuição de cestas básicas.