O isolamento social adotado para conter a disseminação do novo coronavírus acentuou a desigualdade na divisão do trabalho doméstico e impôs uma sobrecarga às mulheres que, em muitos casos, estão fazendo home office e historicamente são responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos.
Dados do IBGE divulgados em 2019, apontam que as mulheres dedicam 21,3 horas por semana com tarefas domésticas – lavar, passar, limpar, cozinhar e cuidar das crianças – enquanto os homens gastam 10,9 horas. Além disso, elas ainda precisam lidar com a carga do trabalho invisível que implica pensar a gestão da casa e atender as necessidades de todos os membros da família.
A pandemia do COVID-19 mudou a vida de todos, o globo será outro após a tempestade e esse pode ser o momento para repensar os modelos que estruturam a sociedade. “O mundo mudou, e aquele mundo (de antes do coronavírus) não existe mais. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente, e alguém que tenta manter o status quo de 2019 é alguém que ainda não aceitou essa nova realidade”, afirmou Atila Iamarino, biólogo e especialista em virologia em entrevista à BBC Brasil.
No âmbito das tarefas de casa, a antropóloga Mariane da Silva Pisani sugere a divisão justa do trabalho doméstico entre o companheiro e as outras pessoas que moram na casa, incluindo as crianças maiores.
“Tentar pensar em uma configuração que cada um arrume a sua própria cama, se sujou, limpou, não deixar roupas, calçados e brinquedos espalhados pela casa e que pessoa tenha uma parcela de participação nas tarefas domésticas durante a quarentena da COVID-19 e que permaneça depois desse período”, diz.
O isolamento social pode mudar a divisão das tarefas domésticas?
Antes da pandemia, as mulheres já tinham que conciliar o trabalho remunerado com as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos praticamente sem ajuda do companheiro. Com o home office, a rotina ficou mais intensa e o estresse aumentou.
Apesar do esgotamento, no longo prazo as relações domésticas podem mudar segundo o estudo The Impact of COVID-19 on Gender Equality – O impacto do COVID-19 na igualdade de gênero em tradução livre – realizado pela National Bureau of Economic.
De acordo com o documento, a pandemia tem potencial para reduzir a desigualdade de gênero no mercado de trabalho e na divisão das tarefas domésticas. Entre as razões que podem mudar esse cenário, está o fato que de que as escolas fecharam e as empresas estão mais conscientes sobre a necessidade do cuidado infantil e, portanto, estão flexibilizando os horários e permitindo o home office.
“Eu acho que é uma possibilidade dentro das várias alternativas que nós temos nesse tempo de confinamento para repensar a estrutura familiar. Tentar conversar para que as coisas sejam mais igualitárias e justas dentro do ambiente doméstico”, afirma Pisani.
De acordo com a antropóloga, a conscientização acontece aos poucos e compreendendo que a casa não é uma obrigação das mulheres. Outro ponto destacado por Pisani, é que muitas mulheres têm receio de delegar o cuidado dos filhos e da casa para o companheiro por achar que ele não fará tão bem quanto ela.
“Nós somos ensinadas (a fazer o trabalho doméstico) desde criança e os homens acabam não sendo inseridos nas atividades domésticas, então tenha paciência de pensar “não ficou do jeito que eu gosto, mas pelo menos foi feito”. Também precisa aprender a confiar na capacidade da outra pessoa que divide o lar e relaxar um pouco, não se sentir na obrigatoriedade de fazer tudo perfeito e aceitar a contribuição. E eu não digo ajuda porque quando a gente mora junto com alguém e divide as tarefas, é responsabilidade dele também”, explica.
Crescem denúncias de violência doméstica durante o isolamento social
Mesmo que o isolamento provoque uma mudança na forma como pensamos a divisão do trabalho doméstico, ainda temos outro fator preocupante para as mulheres e um longo caminho a percorrer. Entre fevereiro e março, período que surgiram os casos de COVID-19 no Brasil, houve um aumento de 29% de medidas protetivas para situações de violência contra a mulher, segundo Núcleo de Gênero e o Centro de Apoio Operacional Criminal (CAOCrim) do Ministério Público de São Paulo (MPSP).
De acordo com o levantamento, foram decretadas 2.500 medidas protetivas – mecanismos adotados para garantir a segurança da vítima – em caráter de urgência, enquanto no mês anterior foram 1.934.
“Eu acho muito significativo ter um aumento no número de denúncias sabendo de todas as barreiras que enfrentamos para conseguir levar adiante esse tipo de situação. Se as mulheres que estão em isolamento social conseguem acionar os equipamentos públicos, me parece que a violência está gritante e elas sentem que o risco é maior”, afirma Marina Ruzzi, advogada do escritório Braga e Ruzzi.
Segundo Ruzzi, na prática, as agressões fazem parte de um ciclo de violência e acontecem porque a mulher acaba perdoando o companheiro sob a promessa de melhora no comportamento, mas a agressão acontece novamente.
“No geral, esse ciclo não é tão rápido e vai se agravando. Essas violências mais graves costumam acontecer depois que esse ciclo está constituído e, normalmente, elas são dependentes emocionalmente dos agressores”, diz.
Como denunciar?
Existem muitos fatores que podem contribuir com o aumento da violência doméstica no isolamento social, como o estresse causado pelo confinamento, as incertezas econômicas, desemprego e as tensões sociais provocadas pela pandemia. Por isso, no dia 6 de abril a ONU recomendou que os países aumentassem os investimentos em serviços online para atender as vítimas de violência doméstica.
“Se a mulher está sofrendo violência naquele exato momento, ela pode ligar para o 190 e chamar uma viatura para a sua residência. Eles podem, dependendo do que estiver acontecendo, levar o agressor em flagrante ou ajudá-la e encaminhá-la para uma delegacia”, orienta Ruzzi.
Caso a mulher perceba que há risco de violência por conviver com alguém que tem histórico de agressão, a recomendação é ligar no 180 – canal de atendimento à mulher do governo federal.
As delegacias fazem parte do grupo de serviços essenciais e estão funcionando normalmente. Portanto, em caso de violência doméstica, procure a Casa da Mulher Brasileira e as Delegacias de Defesa da Mulher.
No Estado de São Paulo é possível registrar o boletim de ocorrência pela internet através da Delegacia Eletrônica. Casos de estupros ainda precisam ser registrados presencialmente.
Após o registro do boletim de ocorrência, a mulher pode solicitar a medida protetiva na Defensoria Pública ou procurar atendimento de alguma advogada particular. Também no Estado de São Paulo, o órgão está realizando atendimento remoto dos casos mais urgentes. Leia mais aqui ou envie um WhatsApp para o número (11) 94220-9995.
De acordo com Ruzzi, o depoimento da vítima tem muita relevância, mas para solicitar a medida protetiva, é fundamental reunir provas, como testemunhas, fotos, vídeos e prints de ameaça. Compartilhe o material com uma amiga e peça para ela guardar.
“O mais importante é empoderar a mulher que está sofrendo violência doméstica, entender quais são os seus direitos, buscar informações e apoio de uma amiga, vizinha, familiar e claro, registrar as provas mesmo que ele não faça nada há um tempo. É importante não destruir as evidências que você tem porque elas podem ser de muita ajuda”, diz Ruzzi.
Outra forma de buscar apoio é enviar mensagem para o projeto Justiceiras, lançado pela promotora de Justiça de São Paulo Gabriela Manssur em parceria com os institutos Bem Querer Mulher e Nelson Willians. O canal oferece orientação jurídica, psicológica, assistencial, médica e acolhimentos as mulheres que sofreram violência dentro de casa. O número de WhatsApp é: (11) 996391212
Como ajudar uma mulher que sofre violência doméstica?
A mulher em situação de violência doméstica vive um momento muito delicado e é nosso dever intervir e salvar a vida dela. Contudo, é necessário ter cuidado para não complicar ainda mais a condição da vítima, afastá-la ou causar retaliações por parte do agressor.
“Eu recomendo ligar para o 190 se você ouvir gritos e achar que sua vizinha está em risco. Informe o local e, mesmo que você não saiba exatamente qual andar ou casa, a polícia vai identificar. Mas se você desconfia e sabe que tem brigas, o ideal é tentar estabelecer algum tipo de contato com a vítima, mostrar que você está atenta, próxima e quer ajudar”, conclui.