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Há 106 anos, Brasil teve um partido feminista para lutar pelo voto da mulher

Saiu no site UOL:

Empunhando um estandarte e usando insígnias ou broches presos às roupas, um grupo de mulheres caminha em direção ao Palácio do Governo. Em seus vestidos longos, elas fazem passeata pelas ruas do Rio de Janeiro, a então capital federal do Brasil. A foto acima, do começo do século 20, foi publicada no semanário “Revista da Semana”, que repercutia fatos políticos e variedades.

São todas alunas da Escola Orsina da Fonseca, comandada pela professora Leolinda de Figueiredo Daltro, e integrantes do partido político fundado por ela em 1910 — o PRF, ou Partido Republicano Feminino.

Ativista e mãe de quatro filhos, Daltro queria igualdade de direitos jurídicos e políticos para as mulheres. Há 106 anos, foi considerada por muitos um disparate, mas chegou a receber apoio dos que já aceitavam que as brasileiras deveriam poder votar.

“Ela defendia a educação das moças para o trabalho, mas não para trabalhar lavando o chão, mas para ser datilógrafa, o que na época era ultramoderno”, diz a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, professora da UnB (Universidade de Brasília).

Pesquisadora da biografia política de brasileiras, a professora explica que o PRF, apesar de ter a fundação e o estatuto registrados no “Diário Oficial da União”, não podia receber votos porque era formado exclusivamente por mulheres.

A agremiação era, na verdade, um antipartido, que funcionava como uma ousada entidade de direito civil.

“Tinha um caráter formal por uma brecha na lei”, diz Marques. “Com isso, a Leolinda solicitava audiências, fazia passeatas com as alunas. Ela copiava o gestual das ‘suffragettes’ [sufragistas] inglesas. As integrantes levavam um broche, marcas distintivas, uma faixa. É a coisa da identidade, do pertencimento ao grupo, à causa, ela gostou disso.”

Treinamento militar

A grande reivindicação do PRF era que as mulheres fossem consideradas cidadãs, nem que para isso fosse preciso pegar em armas. Como a lei, na época, determinava que somente um cidadão pleno podia votar, elas queriam o direito de ser tão cidadãs quanto os homens.

“Você ser alfabetizado, ter interesse pelas coisas públicas e ser cidadão nato, isso fazia de você um eleitor. O que impedia as professoras de votar então? Elas eram responsáveis, inclusive, por educar os meninos que seriam eleitores futuros. E usavam muito desse argumento: ‘Como é que a gente pode ensinar os valores cívicos aos nossos alunos se nós próprias não podemos votar?'”, afirma a historiadora.

Outra exigência para ser considerado um cidadão era defender a coletividade, ter condições de ir à luta armada. Para contornar mais este obstáculo, o PRF convocava suas integrantes para atividades ao ar livre, em áreas de grande circulação.

“Quando chega a Primeira Guerra Mundial, a dona Leolinda chama as alunas para fazerem treinamento militar em plena praça pública. A imprensa caía matando, os meninos ficavam pendurados nas árvores da praça da República, bem no centro do Rio, fazendo chacota, e as meninas lá no chão treinando esgrima, em 1917…”

Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional

Ao centro, o então presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, com integrantes do Partido Republicano Feminino no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro

Poesia erótica e divórcio

Leolinda Daltro era publicamente a favor do divórcio, algo assustador para a época, e ia até a imprensa para escancarar suas opiniões.

Não se sabe exatamente, pelos documentos que restaram, quantas mulheres foram filiadas ao PRF, mas se estima que eram poucas dezenas regulares. Como forma de chamar a atenção para as mudanças que queria provocar, o partido também organizava abaixo-assinados.

“A filha da Leolinda era secretária do partido, a outra filha era tesoureira, e havia uma figura muito interessante que participava das atividades, que se chamava Gilka Machado”, conta a pesquisadora. “Em determinada época da vida, ela resolveu escrever poesias eróticas. Até hoje, nas antologias de literatura brasileira, a Gilka Machado é considerada uma mestra na poesia erótica. Dona Leolinda conseguia reunir mulheres interessantes.”

Uma das últimas ações registradas da ativista à frente do partido ocorreu quase dez anos após a sua criação, quando ela se candidatou, em 1919, mesmo sem poder receber votos, ao cargo de intendente do Distrito Federal (como era chamado o Rio de Janeiro).

Daltro morreu em 1935, vítima de um atropelamento, com cerca de 65 anos de idade. Já não era assunto frequente nos jornais, e o protagonismo na militância acabou ficando com outro grupo de mulheres. Comandada por Bertha Lutz, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino surgiu em 1918 e teve destaque na causa feminista até 1937.

Só em 1932 veio o direito ao voto, com o Código Eleitoral.

Estatuto do PRF

O Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, guarda os registros oficiais da fundação do Partido Republicano Feminino, e a professora Marques também localizou documentos no acervo da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Algumas das demandas do PRF estão citadas no livro “Dicionário das Mulheres do Brasil: De 1500 até a Atualidade”, cuja pesquisa foi realizada em parceria da historiadora com a economista e também professora Hildete Pereira de Melo. Leia três exemplos abaixo:

  • Pugnar pela emancipação da mulher brasileira, despertando-lhe o sentimento de independência e de solidariedade patriótica, exalçando-a pela coragem, pelo talento e pelo trabalho, diante da civilização e do progresso do século;
  • Pugnar para que sejam consideradas extensivas à mulher as disposições constitucionais da República dos Estados Unidos do Brasil, desse modo incorporando-a na sociedade brasileira;
  • Combater, pela tribuna e pela imprensa, a bem do saneamento social procurando, no Brasil, extinguir toda e qualquer exploração relativa ao sexo.

Mais de um século depois da fundação desse partido, a historiadora opina que ainda é preciso “manter e ampliar o sistema de apoio à violência doméstica, conquistar direitos reprodutivos, participar da política e ocupar postos importantes”.

 

Publicação Original: Há 106 anos, Brasil teve um partido feminista para lutar pelo voto da mulher

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