Saiu no site SENADO
Veja publicação no site original: Nas escolas do Império, menino estudava geometria e menina aprendia corte e costura
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Por Ricardo Westin
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A primeira grande lei educacional do Brasil, datada de 1827, cinco anos após a Independência, determinava que, nas “escolas de primeiras letras” do Império, meninos e meninas estudassem separados e tivessem currículos diferentes. Nas aulas de matemática, enquanto eles aprendiam adição, subtração, multiplicação, divisão, números decimais, frações, proporções e geometria, elas viam as quatro operações básicas e nada mais. Nas aulas de português e religião, por outro lado, o conteúdo era o mesmo para meninos e meninas.
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Antes de ser assinada pelo imperador dom Pedro I e virar lei, a proposta educacional foi discutida e votada no Senado e na Câmara dos Deputados. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que os senadores travaram acalorados debates sobre qual seria, nesse Brasil oitocentista, o currículo mais apropriado para as crianças do sexo feminino.
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O senador Visconde de Cayru (BA) foi um dos defensores de que, para as meninas, o currículo de matemática fosse o mais enxuto possível. Nas palavras dele, o “belo sexo” não tinha capacidade intelectual para ir muito longe:
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— A questão é se as meninas precisam de igual grau de ensino que os meninos. Tal não creio. Não sejamos excêntricos e singulares. Deus deu barbas ao homem, não à mulher. Acho suficiente a nossa antiga regra: ler, escrever e contar. Sobre as contas, são bastantes as quatro espécies, que não estão fora do seu alcance e lhes podem ser de constante uso na vida. O seu uso de razão é mui pouco desenvolvido para poderem entender e praticar operações ulteriores e mais difíceis de aritmética e geometria. Estou convencido de que é vão lutar contra a natureza.
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O senador Marquês de Caravelas (BA) fez uma argumentação semelhante:
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— Em geral, as meninas não têm um desenvolvimento de raciocínio tão grande quanto os meninos, não prestam tanta atenção ao ensino como estes. Parece que a sua mesma natureza repugna o trabalho árido e difícil e só abraça o deleitoso. Se querem dar-lhes algumas prendas mais, ensinem-lhes a cantar e tocar, prendas que vão aumentar a sua beleza. O objetivo principal é que se eduquem de maneira que venham a ser boas mães de família. Para que elas sejam bem instruídas na economia da casa e o marido não seja obrigado a entrar nos arranjos domésticos, distraindo-se dos seus negócios, basta-lhes o saber ler, escrever e as quatro primeiras operações da aritmética.
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Concordando com os colegas, o senador Marquês de Maricá (RJ) chegou a ser irônico:
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— Sou também da opinião que se devem reduzir os estudos das meninas a ler, escrever, contar e gramática portuguesa, porque não sei de que lhes possa servir o aprender a prática de frações, decimais e outras operações que não são usuais. Se querem que isso passe, então acrescentem [no projeto de lei] que as mestras lhes ensinem a escrituração de partidas dobradas e singelas [métodos de contabilidade]. A mulher é um ente mui diverso do homem. O que ela deve saber é o governo doméstico da casa e os serviços a ele inerentes, para que se façam boas mães de família.
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A lei de 1827 também previa que as escolas femininas oferecessem aulas de corte, costura e bordado na escola. Esse, porém, foi um ponto pacífico durante a análise do projeto de lei no Parlamento.
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No Senado, o único a defender publicamente que as meninas tivessem, em matemática, um currículo idêntico ao dos meninos foi o Marquês de Santo Amaro. Ele argumentou:
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— Não me parece conforme as luzes do tempo em que vivemos deixarmos de facilitar às brasileiras a aquisição desses conhecimentos [mais aprofundados de matemática]. A oposição que se manifesta não pode nascer senão do arraigado e péssimo costume em que estavam os antigos, os quais nem queriam que suas filhas aprendessem a ler. Em todas as nações cultas se dá às meninas essa instrução e parece-me que devemos adotar essa mesma prática.
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O argumento não convenceu. O Marquês de Caravelas reagiu dizendo que as “nações cultas” não podiam servir de exemplo para o Brasil:
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— Diz o ilustre senador que as mulheres são dotadas dos mesmos talentos que os homens. Deve-se dar a isso algum desconto. Essa frívola mania de mulheres se aplicarem a estudos para os quais parece que a natureza não as formou, desviando-se dos verdadeiros fins para que foram criadas, é que deu motivo à comédia Les Femmes Savantes [de 1672], em que o célebre Molière ridiculariza, com sua graça costumada, essa fútil vaidade que naqueles países tem grassado entre elas.
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Procurando provocar medo nos colegas, o Visconde de Cayru insinuou que os estudos poderiam até mesmo corromper as mulheres:
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— Não nego que tem havido mulheres de capacidade varonil. A história tem aplaudido as Aspásias, Cleópatras, Isabéis e Catarinas, mas são raridades da espécie. Todavia, não foram famosas em moral. Modernamente têm aparecido mulheres distintas na matemática. Torno a dizer, são raridades da espécie. Tem havido mulheres que até se lançaram ao mar da política, especialmente depois da revolução da França [em 1789]. Não se têm visto bons resultados. Bastará nomear a famosa inglesa Mary Wollstonecraft, que fez a obra Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher. Ela, por acusação do marido, foi condenada em Londres por adúltera. Se formos nesse andar, não causará admiração que também se requeira que as mulheres possam ir estudar nas universidades os estudos maiores, para termos grande número de doutoras.
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Ao perceber que o exemplo das “nações cultas” não estava sendo convincente, o Marquês de Santo Amaro pediu novamente a palavra e recorreu a outro raciocínio para tentar dissuadir os colegas:
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— Diz-se que esses conhecimentos [de matemática] são desnecessários em uma mulher e que o essencial é que ela se forme boa mãe de família. Perguntarei agora: uma mulher nunca terá ocasião de fazer a conta de duas terças de pano que mandar comprar? Nunca terá ocasião de mandar fazer uma obra no interior da sua casa para maior comodidade ou ornato dela? E, se tiver essa ocasião, não lhe aproveitará o haver adquirido esses conhecimentos de geometria prática? Esses conhecimentos são gerais, servem para todas as mulheres, qualquer que seja o estado e a classe a que venham a pertencer. A lei fica contraditória e injusta quando concede aos meninos o que nega às meninas.
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O senador José Ignácio Borges (PE) mudou os rumos do debate. Sem fazer avaliações estereotipadas e machistas a respeito das mulheres, ele apresentou um argumento de ordem prática que enterrou de vez as pretensões de quem pretendia a igualdade entre os sexos nas escolas de primeiras letras do Império.
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— Onde é que se hão de buscar mestras que ensinem a prática de quebrados [frações], decimais, proporções e geometria às meninas? Tenho visto o Brasil quase todo e ainda não encontrei mulher nenhuma nessas circunstâncias. Se acaso há alguma, é decerto pessoa de classe mais elevada e que não está nas circunstâncias de sujeitar-se a esse serviço. Querer imitar as nações cultas equivale a não querer que a lei se execute. Legislar assim é legislar em vão.
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Borges tinha razão. Pela lei, as meninas só poderiam ter professoras; e os meninos, professores. Por questões morais e religiosas, não se admitia que homens tivessem proximidade com garotas, nem mesmo na sala de aula. Como as meninas historicamente recebiam menos educação escolar do que os meninos, praticamente não havia no Brasil mulheres qualificadas para ensinar aritmética e geometria nas escolas femininas.
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— Não temos mestras mulheres que possam dar essa instrução — concordou o Marquês de Caravelas. — Apareceria talvez alguma inglesa ou irlandesa, mas já passou nesta Casa o artigo que determina que só brasileiras possam ocupar esses lugares.
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Os debates, então, se encerraram e a lei foi aprovada estabelecendo um currículo menor para as meninas. O historiador André Paulo Castanha, professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e autor de estudos sobre a educação no Império, explica:
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— Hoje podemos considerar essa lei um absurdo, mas não podemos condenar os legisladores que a aprovaram. Eles foram coerentes com a realidade da época. De fato, não existiam professoras preparadas para ensinar matemática. A solução que o Parlamento deu foi a adequada para o momento. Não podemos cobrar de pessoas que viveram há quase 200 anos que pensassem como nós. Estaríamos negando a evolução histórica.
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Segundo Castanha, a lei de 1827 foi inovadora em vários pontos. Além de ter fixado um currículo mínimo para todo o país — algo que existe até hoje —, ela marcou a entrada da mulher no mercado de trabalho e estabeleceu que professores e professoras, uma vez aprovados em concurso público, receberiam o mesmo salário. A lei foi sancionada por dom Pedro I em 15 de outubro — data que em 1963 se tornaria o Dia do Professor.
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