Saiu no site AZMINA
Veja publicação no site original: Casa, um espaço para o feminicídio
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Sinônimo de aconchego e proteção, o lar também é um lugar perigoso para as mulheres: 39% dos homicídios delas acontecem dentro de casa
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Por Carolina Vicentin
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Foram duas décadas até que Dora*, 48 anos, conseguisse ficar forte o bastante para deixar a casa onde quase foi vítima de feminicídio. Moradora de uma comunidade rural no interior de Pernambuco, ela se casou jovem, aos 18, com um dos homens mais bonitos do lugar. A família não aprovava o enlace, mas Dora achou que estaria amparada por aquele rapaz, sete anos mais velho, e viu nele a oportunidade de fugir das agressões que sofria desde a infância, pelas mãos do pai.
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O encanto acabou algumas semanas depois, quando ouviu do marido que ele não a amava: havia se casado apenas por conveniência, pois Dora era virgem e prendada. A moça, então, passou a viver um suplício quase diário. “Ele saía para beber, ficava o fim de semana todo fora. Quando voltava, me acusava de ter outros homens e me espancava. Por muitas vezes, colocou uma faca no meu pescoço”, conta.
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Não satisfeito, depois de agredi-la, o marido a amarrava na cama para estuprá-la. Foi assim que Dora engravidou da primeira filha. “Quando eu estava com sete meses, já dormindo do lado de fora, com medo, ele sacudiu a rede com força e eu caí de barriga no chão. Achei que perderia o bebê”, lembra, com a voz embargada. A menina nasceu um mês depois, quando o homem partiu para cima de Dora com uma estaca pontuda na mão. O susto fez com que a bolsa estourasse e ela entrasse em trabalho de parto antes da hora.
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Depois disso, Dora engravidou outras quatro vezes, mas as agressões físicas e psicológicas fizeram com que perdesse todos os bebês – ainda na barriga ou depois de partos prematuros. A jovem vivia isolada e sem esperança. “Não podia procurar o meu povo, pois havia me casado contra a vontade deles. Como é que eu ia pedir socorro? Achava que eu era a responsável pela minha situação.”
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Dora é uma sobrevivente. Em 2009, depois de anos se fortalecendo junto a outras mulheres, integrantes do movimento de trabalhadoras rurais, conseguiu terminar o casamento. Contrariou os costumes e a religião para deixar o lugar que deveria ser de proteção mas também é arriscado para se ser mulher nos dias de hoje: a própria casa.
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Números levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para o Atlas da Violência 2019 revelam uma realidade alarmante a esse respeito: as mulheres estão em perigo na própria casa. Entre 2007 e 2017, 39,2% dos homicídios de mulheres no Brasil aconteceram dentro de casa. Entre os homens, o índice é de 15,9% – os assassinatos de homens acontecem mais fora de casa (68,2%). A pesquisa mostra que as mulheres não estão seguras em nenhum local, mas a trajetória da violência é pior em casa: enquanto a taxa de homicídios de mulheres fora do domicílio subiu 28% em 10 anos, as ocorrências registradas em casa subiram 38%.
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Há uma diferença entre os conceitos de homicídio e feminicídio. Homicídio é um conceito mais amplo e envolve assassinatos, independentemente do motivo. Já feminicídio é um tipo específico de homicídio, que é o praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher, o que pode envolver misoginia ou discriminação de gênero. Os homicídios de mulheres que acontecem dentro de casa por conhecidos normalmente são considerados feminicídios.
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“Historicamente, a violência contra os homens se dá no espaço público. Desde cedo, há incentivo para que meninos brinquem na rua, busquem trabalho, enquanto a condição feminina é mais voltada para o espaço doméstico”, analisa a professora Elen Geraldes, da Universidade de Brasília (UnB). “Mesmo com todas as mudanças recentes, há muitas mulheres donas de casa, cuidando dos filhos. Nas novas gerações, é comum as que nem estudam nem trabalham fora sendo mães muito jovens e, assim, permanecendo muito tempo em casa”, completa.
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Por trás dessas histórias, está o machismo estrutural. “Gênero faz toda diferença na violência contra a mulher. O homem que agride uma mulher em casa geralmente não vai ser agressivo na rua. Ele tem esse comportamento porque a sua forma de ser homem é legitimada na nossa cultura”, explica a psicóloga Renata Beviláqua, do Núcleo Judiciário da Mulher do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
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Risco constante
O risco de feminicídio se agrava pelo fato de serem companheiros ou ex-companheiros os principais algozes das mulheres. No Distrito Federal, de janeiro a outubro de 2019, foram registrados 27 feminicídios – 70% deles cometidos por maridos, namorados ou ex-companheiros. O índice sobe para 82% se forem incluídos os filhos, sobrinhos e cunhados. Assim, o lar – sinônimo de aconchego e proteção, especialmente em uma sociedade marcada pela violência urbana – acaba por se tornar um local de grande ameaça para as mulheres, vistas como propriedade pelos homens.
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“O patriarcado é o responsável pelo inferno na vida das mulheres”, diz a procuradora aposentada do Ministério Público de São Paulo Luiza Eluf. “A Constituição do Brasil assegura a igualdade, mas os conservadores, os homens autoritários, opressores, não querem aceitar essa igualdade. E o Estado brasileiro não tem tomado as medidas necessárias para coibir o extermínio de mulheres no país”, indigna-se.
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Em abril do ano passado, a consultora de vendas Cácia Regina da Silva, 47 anos, foi atacada dentro de casa, em Sobradinho, a cerca de 35 quilômetros do centro de Brasília, pelo ex-marido, de quem já estava separada há mais de 10 anos. A “arma” utilizada foi ácido sulfúrico, lançado principalmente no rosto de Cácia. As lesões atingiram 45% do corpo e ela faleceu nove dias depois, devido a uma infecção generalizada.
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Antes de morrer, porém, ela contou à polícia o que ouviu do ex-companheiro, com quem fora casada por 15 anos: “Não falei que ia te matar? Se você não é minha, não vai ser de mais ninguém.” A investigação, revelada pela imprensa, apontou que o crime foi premeditado. O homem se matou em seguida.
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“O agressor está sofrendo, devido à sua frustração amorosa, e, muitas vezes, quer deixar a própria vida, mas quer que a mulher faça isso também, porque pensa que o corpo dela é seu”, observa a professora Elen. “As mulheres rompem ou tentam romper relacionamentos, mas veem sua decisão não assimilada pelos homens. É algo a ser estudado: a construção de uma masculinidade tóxica, que não aceita os rompimentos”, observa.
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Por conta disso, causa preocupação a flexibilização em curso da posse e porte de armas de fogo no Brasil. “Considerando os altíssimos índices de violência doméstica que assolam o Brasil, a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência”, diz o relatório do Atlas da Violência 2019.
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Sem amparo
O crescente número de feminicídios também tem a ver com a falta de uma rede estruturada de acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica – uma vez que, antes do assassinato, elas quase invariavelmente já sofreram outro tipo de agressão. “A Lei Maria da Penha foi uma grande conquista, porque mostrou o problema e apontou soluções [indicando ações de intervenção, educação e prevenção]. Mas ainda há muitas dificuldades, como a falta de locais para receber as mulheres, o despreparo da polícia”, enumera a antropóloga Guita Grin Debert, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade de Campinas (Unicamp). “E isso se torna ainda mais grave para mulheres pobres ou que vivem longe dos centros urbanos.”
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No DF, por exemplo, há apenas uma delegacia especializada, no Plano Piloto, e três centros de atendimento à mulher (Ceam’s): um também no Plano Piloto, um em Ceilândia e o terceiro em Planaltina. “O ideal era que houvesse um em cada região administrativa, porque o serviço de apoio ajuda a identificar as situações de risco. Muitas vezes, nem mesmo a mulher percebe o quanto está ameaçada”, diz a promotora de Justiça Mariana Távora, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
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Outro problema é a dependência econômica, que faz com que muitas permaneçam como reféns de seus companheiros provedores. Essa situação se torna ainda mais grave em um momento de crise econômica, porque são as elas as que mais sofrem com desemprego e informalidade. Segundo o IBGE, a taxa de desocupação no primeiro trimestre de 2019 foi de 14,1% entre as mulheres, superior em relação à dos homens, de 10,3%.
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Além disso, há o papel das religiões, que, muitas vezes, colaboram para uma visão reducionista da mulher na sociedade – e justamente por isso elegem o feminismo como um inimigo a ser combatido. “Infelizmente, algumas religiões estabelecem que a mulher precisa viver subjulgada pelo marido. Com isso, justificam violência doméstica, estupro marital e outras práticas abomináveis”, comenta a professora Elen Geraldes.
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Rede de apoio
Esse cenário faz da história de Dora, que sobreviveu à violência doméstica, ainda mais atípica. Vivendo a quilômetros de qualquer serviço de assistência contra violência doméstica, ela contou apenas com o empenho de outras mulheres para sair da teia em que vivia. Duas trabalhadoras rurais perceberam a situação de Dora e passaram a chamá-la para reuniões sindicais femininas, nas quais também eram expostos casos de violência doméstica.
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“Até então, tudo que eu ouvia era: ‘Pobrezinha! Mas paciência, isso é assim mesmo, Deus quis assim.’ Depois dos encontros, eu passei a enfrentá-lo. Ele me batia e eu revidava”, lembra Dora. “As mulheres me tiraram do fundo do poço, porque eu estava quase me suicidando.”
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O ex-marido continuou a ameaçá-la, até que ela, já uma liderança entre as trabalhadoras rurais, deixou o povoado – também por conta de ameaças de fazendeiros, incomodados com o seu ativismo. Mudou-se para São Paulo, cursou uma graduação em Serviço Social e, mais tarde, fez um mestrado. “Eu só desejo que a minha história possa, de alguma forma, ajudar outras mulheres, porque foram as mulheres que me salvaram.”
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“Uma das maiores dificuldades de quem vive em situação de violência doméstica é superar o isolamento. O lar é muito bom, muito bonito, mas é solitário. A ‘rainha do lar’ não reina para ninguém”, frisa a procuradora Luiza Eluf.
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Violência naturalizada
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A “rainha do lar” não reina e tampouco tem os seus gritos ouvidos pela sociedade. Em janeiro, Veiguima Martins, 56 anos, funcionária da Secretaria de Educação do Distrito Federal, foi morta a facadas pelo companheiro, com quem vivia há quase uma década, em um prédio na área nobre de Brasília. Antes do golpe final, ela gritou por socorro. Uma das vizinhas admitiu ter ouvido os gritos, mas voltou a dormir. O homem, de 82 anos, tentou acobertar o feminicídio, simulando um incêndio no apartamento onde viviam, mas acabou inalando fumaça e morrendo no local, poucas horas depois.
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“Esses são crimes sociais, pois envolvem a aceitação das pessoas. Estão institucionalmente arraigados na sociedade, por seus valores e visões de mundo”, destaca Elen. “O feminicídio é a mais visível recusa à igualdade e seu aumento tem a ver com o fato de mais mulheres estarem reivindicando isso”, completa a antropóloga Guita, da Unicamp.
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Todas as especialistas ouvidas nesta reportagem apontaram a necessidade de investir na educação a respeito das relações de gênero e em estratégias que promovam a reflexão por parte dos homens agressores. Essa medida está prevista na Lei Maria da Penha (que estabelece uma série de ações para o combate à violência contra a mulher), mas a execução ainda é incipiente. No DF, por exemplo, somente em 2019 foram registrados 14.130 casos de violência doméstica. Já os grupos reflexivos realizados pelo TJDFT reuniram 2.276 homens.
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Além disso, é preciso retomar a prevenção primária, ainda na escola e de maneira transversal. “Há pouco investimento do Estado antes de a violência ocorrer”, resume a promotora de Justiça Mariana Távora. “Somos uma sociedade machista e misógina. Se não tratarmos disso na base, com uma educação para a equidade de gênero, não haverá mudança.”
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