Saiu no site AzMina:
Levantamente feito pela revista AzMina mostra que culpabilização da vítima, despreparo dos atendentes, ausência de plantões noturnos e aos finais de semana e falta de infraestrutura são os maiores gargalos
Dez da manhã, Delegacia da Mulher de Belo Horizonte, no centro da cidade. Na parede, cartazes anunciam uma greve da polícia civil por melhores condições de trabalho. Nas cadeiras da recepção, cinco mulheres aguardam sentadas: uma senhora negra, com sua filha de vinte e poucos anos; um casal, também de negras, e uma moça morena, com o olho roxo e um corte na bochecha. Na mesa do atendimento, ninguém. Estão ali há mais de uma hora e ainda não foram atendidas. Em alguns minutos, um homem mal humorado aparece e começa a atendê-las. Anota os nomes, RGs e o porquê de estarem ali. Pede para que aguardem.
Essa espera significará pelo menos três horas até a primeira conversa com o escrivão e mais outras horas até falar com a delegada. A moça com o olho roxo só vai sair dali depois das sete da noite. Precisará encontrar alguém para buscar o filho na escola por ela, porque está decidida a fazer o B.O. contra o ex-marido que a agrediu na véspera.
Infelizmente, muitas outras mulheres que chegam depois dela não têm a mesma disponibilidade: uma senhora foi à delegacia no intervalo do almoço e precisa voltar para o trabalho; outra está com remédios que precisam ser guardados na geladeira e, se esperar muitas horas, eles vão estragar; outra não tem quem fique com o filho.
Denunciar a violência doméstica e pedir uma medida protetiva parece ser algo que somente as mais pacientes, com disponibilidade de tempo, patrões compreensivos e dispostas a passar dez horas esperando, conseguem.
Mas não é só a demora que recebe as mulheres que procuram ajuda nas delegacias da mulher, não. Descaso, ironia, grosseria e desrespeito são também frequentes no atendimento dessas que deveriam ser as delegacias acolhedoras para as mulheres. Existe ainda a questão de que muitas delas funcionam apenas em horário comercial e não se conectam com o restante da rede de atendimento.
A revitimização no atendimento
Durante esta reportagem, realizamos uma pesquisa com 99 mulheres de diferentes regiões do país. 70% delas responderam que não se sentiram acolhidas nas delegacias especializadas e que suas denúncias não foram levadas a sério. Apesar de ser uma pesquisa informal, ela demonstra uma questão ainda muito importante quando se fala dessas delegacias: o atendimento. O problema não é novo, já em 2012 foi realizada uma CPMI da Violência contra a Mulher que visitou as delegacias de todos os estados e constatou o mesmo.
Como explica a promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian, “não adianta apenas conscientizar a mulher em situação de violência a romper o silêncio, buscar ajuda, se não há um atendimento preparado para recebê-la”.
“Essa primeira resposta pode ser determinante para essa mulher nunca mais buscar ajuda”, completa.
Foi o que aconteceu com Camila Caringe, 29. Havia três anos, ela estava em umrelacionamento abusivo cujo grau de violência foi aumentando com o passar do tempo – as ameaças e ofensas foram virando puxões de cabelos e empurrões. Até que, em 2014, a situação chegou ao limite com agressões graves, como chutes, socos ou pancadas na cabeçae ela decidiu se separar e procurar a delegacia da mulher, em São Paulo. Ouviu:
– Você já está separada, pra que fazer B.O.? Conversa com ele, vai ficar tudo bem.
Ela saiu envergonhada de lá, sem fazer a denúncia. Sete dias depois, por necessidade, ela precisou voltar para a casa do marido e a situação de agressão voltou. Ela ligou para seu pai pedindo ajuda e, quando percebeu isso, o ex marido começou a chutá-la, deslocando três dedos da sua mão direita. Mesmo assim, ela não voltou à delegacia, por vergonha.
Somente 10 meses depois, quando as ameaças de morte começaram a ficar frequentes e assustadoras demais, e já munida do conhecimento de que tinha direito a uma medida protetiva, é que ela foi à DEAM outra vez. O tratamento, mais uma vez, foi ruim. “Mas eu exigi que fosse atendida, que o boletim fosse feito e a medida solicitada”, conta ela. E 20 dias depois ela recebeu a medida que proibiu o ex de se aproximar em 300 metros dela.
Mesmo com isso, um ano e meio depois, o inquérito policial segue arquivado e o processo ainda não foi aberto.
A origem do problema do mau atendimento, segundo Silvia Chakian, está na falta de treinamento dos policiais que atuam nas delegacias da mulher. Nenhum estado do paíspossui um curso específico de gênero e preparo para este trabalho, apenas uma disciplina sobre direitos humanos dentro das próprias academias de polícia. Eventualmente, governos dos estados, órgãos públicos ou o governo federal oferecem cursos para os policiais, mas um treinamento sistematizado ainda não existe.
Sem esse preparo, os policiais reproduzem no trabalho preconceitos e atitudes com as quais convivem no dia a dia. “Eu vejo isso como um reflexo da própria visão machista da sociedade”, diz a delegada Laura de Castro Teixeira, da primeira DEAM de Goiânia.
Entre os comportamentos problemáticos do atendimento mais mencionados entre as entrevistadas estão a culpabilização da vítima, que ocorre quando os policiais dão a entender que a violência aconteceu por culpa de alguma atitude da mulher, como a sua roupa ou não ter terminado com o agressor antes; a tentativa de desestimular a denúncias,diminuindo a importância do ocorrido ou ressaltando as consequências ruins de levar a queixa adiante; e a descrença na palavra da mulher, que surge através de questionamentos excessivos, dúvidas e até descaso com o que é dito.
Entre as orientações para o atendimento da norma técnica para as delegacias da mulher de 2010 consta o atendimento humanizado, sem preconceito ou discriminação, levando sempre em conta a palavra da mulher.
Além da falta de treinamento em gênero, falta aos profissionais também um preparo específico para lidar com as questões étnicas e raciais, o que torna a revitimização de mulheres negras e indígenas ainda maior.
A CPMI da violência doméstica relata, por exemplo, que em Manaus, Belém, Roraima e Mato Grosso do Sul a ausência de tradutor faz com que mulheres indígenas que não falam português tenham dificuldade para registrar suas queixas.
Sem conexão com a rede de atendimento
Uma outra questão problemática destacada pela CPMI de 2012 e notada pela reportagem foi que as delegacias especializadas falham bastante em sua função de encaminhar a mulher para atendimento legal, psicológico e médico, abrigos e outros tipos de centros de acolhimento para vítimas de violência. 67% das mulheres ouvidas pela reportagem afirmam não ter sido encaminhadas para outros serviços.
Isso se deve à falta de comunicação entre a rede, quando ela existe, e também à localização das delegacias, longe dos demais serviço.
A localização, inclusive, é um outro problema das DEAMS que, na maioria dos casos, ficam em regiões centrais ou mais nobres das cidades, longe das áreas mais periféricas, onde há maior concentração populacional e maior incidência de violência. Em Brasília, por exemplo, a delegacia fica no Plano Piloto, o que faz com que as mulheres das Cidades Satélite precisem de um grande deslocamento para fazer a denúncia.
Falta pessoal e estrutura
Todas as delegadas e policiais questionados pela reportagem acreditam que o principal problema das delegacias da mulher no país é a falta de estrutura e de pessoal para atender, o que explicaria também as denúncias de mal atendimento. “Nós temos um problema de efetivo. As delegacias contam com efetivo emprestado de outras estações, porque não temos pessoal suficiente”, conta a delegada Natália Tenório, que atua no plantão especializado da mulher em Vitória, ES. Essa delegacia atua com os flagrantes de violência contra a mulher e é a única que funciona aos finais de semana e durante a noite na cidade.
Para as denúncias sem flagrante, as mulheres devem procurar a DEAM da cidade, onde a delegada Arminda Rosa atua com três investigadoras e dois escrivães (um homem e uma mulher). “Falta pessoal para atender toda a demanda da cidade e também espaço”, diz ela. A delegacia fica em uma casa pequena no bairro de Santa Luiza, que conta com umarecepção onde também são colhidos depoimentos, duas salas dos escrivães, a sala da delegada que é dividida com a pessoa que cuida do administrativo, um banheiro que também serve de arquivo, com pastas empilhadas em uma das paredes, e uma sala da assistente social improvisada no corredor que leva para a pequena cozinha.
O problema não é exclusivo do Espírito Santo. Em várias cidades ao redor do país, asDelegacias da Mulher funcionam em prédios de delegacias comuns. Maria* contou que, na cidade de São Paulo, quando procurou a segunda Delegacia da Mulher Sul, nem sequer conseguiu ser atendida: “Como a delegacia fica nos fundos ou no primeiro andar de uma DP normal, quando cheguei havia investigadores da DP normal que não me deixaram subir. Perguntaram meu caso e disseram que não podia ir lá, que não era caso de Delegacia da Mulher”.
“Eu estava sendo perseguida por um homem e tive de ouvir deles que eram só ‘elogios’. O delegado quis ouvir minha história e tentou a todo custo me impedir de fazer o BO”, acrescenta.
Mesmo quando a delegacia fica em um prédio com boa estrutura, como é o caso de Goiânia, Belo Horizonte ou algumas das unidades de São Paulo, a questão da falta de pessoal ainda permanece. Uma delegada, que não quis se identificar, contou que, em São Paulo, o plantão 24 horas ficou fechado por anos porque não havia efetivo policial para cobrir os turnos. O plantão foi retomado em setembro de 2016 devido à pressão popular e funciona apenas da unidade da Sé.
A maior parte das delegacias só funciona de dia
Delegacias da mulher funcionando 24 horas, como agora acontece na primeira Delegacia da Mulher de São Paulo, são exceção. O caso da capital paulista, inclusive, é bem parecido com o de outros estados: uma delegacia fica aberta aos finais de semana e durante a noite para receber toda a demanda das capitais e região metropolitana, e no interior o horário é apenas comercial. É assim em Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Acre. Somente no Rio de Janeiro todas as DEAMs funcionam 24 horas. No Mato Grosso, a polícia civil nos informou que “a Polícia Civil, por questão de efetivo reduzido, não tem condições de manter atendimento 24 horas nessas unidades”.
Quando não há atendimento nas delegacias especializadas, as mulheres devem buscar as delegacias comuns e seus casos, posteriormente, são encaminhados às especializadas. No entanto, nas comuns o atendimento a mulheres é ainda mais problemático.
Para Maria da Penha, a farmacêutica cuja luta deu nome à lei de combate à violência doméstica, isso é uma falha muito grande.
“Na maioria das nossas cidades as delegacias da mulher não funcionam no período da noite nem nos finais de semana. E esse período é justo quando a violência é maior”, explica.
“Porque o companheiro está em casa, ali em constante atrito com a mulher, além de ter ainda a bebida, que muitos consomem no fim de semana e se tornam mais violentos por causa disso”.
O tipo de atendimento e a sobrecarga
Em julho, ganhou visibilidade o caso da baiana Aiace Félix. Ela foi agredida por um taxista após exigir respeito quando ele assediou sua irmã e foi à delegacia da mulher fazer denúncia. “Ao chegar por lá, fomos atendidas por uma senhora super mal humorada e sem muito trato pra acolher uma vítima de agressão. Ela nos informou que lá só poderiam ser acolhidos casos em que a vítima tivesse alguma relação com seu agressor”.
“Então, quer dizer: eu sou mulher, sofro uma agressão por ser mulher, mas não posso ser acolhida na delegacia da mulher?!!”, postou a cantora em seu Facebook.
O caso ganhou visibilidade e a polícia civil da Bahia informou que houve um erro da atendente. No entanto, a verdade é que em muitos estados o atendimento nas delegacias da mulher é sim focado somente na Lei Maria da Penha, ou seja, casos em que haja alguma relação afetiva entre a vítima e o agressor.
Em São Paulo não é assim, mas segundo Rosemary Correa, a primeira delegada da mulher do país e atual presidenta do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, deveria ser. “A delegacia está com muitas atribuições. Deveria se focar especificamente na lei Maria da Penha, para que não perdesse o foco para o qual a delegacia da mulher foi criada, que é atender a violência física e sexual”.
A delegada Samira Fares Negrini concorda que a delegacia da mulher deveria focar no atendimento de casos de violência de gênero pois, muitas vezes, elas se vêem sobrecarregadas, atendendo denúncias de brigas de vizinhos ou roubos – casos que não têm relação com a violência contra a mulher. No entanto, ela acredita que, para além do vínculo com o agressor, o atendimento devia se estender a todos os casos em que a violência tenha uma relação como fato de a vítima ser mulher – o que significa que Aiace seria atendida.
Existe solução?
Os problemas das delegacias especializadas são muitos e não são simples e como resolvê-los é um debate complexo. A CPMI da violência contra a mulher sugere diversas ações, como criar Coordenadorias da Mulher na Polícia Civil, para uniformizar e monitorar as delegacias. Outras ações sugeridas são: o aumento do orçamento destinado ao enfrentamento à violência contra a mulher, a criação de um Sistema Nacional de Informação sobre a Violência Contra a Mulher, a exigência dos governos para que aspolícias civis concluam as investigações no prazo e adotem, ao menos nas capitas, oplantão 24 horas das delegacias.
No entanto, poucas delas foram acatadas nos quatro anos que se passaram desde o relatório. O principal movimento que existe nesse sentido é o Projeto de Lei 07/2016, que altera alguns pontos da lei Maria da Penha. Ele determina, por exemplo, que o agressor nunca poderá ficar no mesmo espaço que a vítima na delegacia e que deve-se evitar a revitimização da mulher com sucessivos interrogatórios.
O projeto também prevê que os governos dos estados devem dar preferência à criação de Delegacias da Mulher. No entanto, o projeto tem sido bastante questionado por ter sido feito sem participação da sociedade e porque passaria a permitir que delegados e delegadas pudessem emitir (e negar) medidas protetivas, teoricamente acelerando a proteção da mulher. Entenda melhor o tema neste artigo.
Publicação Original: Quando a delegacia é uma nova violência