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Veja publicação original: ‘Ele não me batia, mas deixou cicatrizes’: atriz, vítima de abuso emocional, narra sua história
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Quando Anna*, que é atriz, se apaixonou por um ator mais velho e mais bem sucedido, ele pareceria ser o homem perfeito. O noivado foi selado rapidamente – foi então que ele começou a mudar. Demorou um tempo para ela perceber que o romance que, no princípio, parecia um conto de fadas, havia se transformado numa relação abusiva.
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Leia o depoimento de Anna à BBC News.
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Por Natasha Lipman
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“Muita gente pensa que abuso emocional não é tão ruim quanto abuso físico, mas eu posso te dizer que deixa cicatrizes.
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Meu relacionamento com Tom* parecia um conto de fadas, daqueles que você só vê em filmes. Nos encontramos pouco antes do meu aniversário de 30 anos, quando eu estava cheia de dúvidas sobre o que fazer na vida: ainda estava solteira, sem filhos e sem uma casa para chamar de minha.
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Estava trabalhando numa peça e uma das outras atrizes me disse que Tom viria assistir à nossa apresentação naquela noite. Ela o conhecia há 14 anos, e tinha trabalhado com ele antes.
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Eu tinha acabado de terminar um relacionamento.
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Minha amiga tinha dito que Tom talvez fosse bom para esse meu momento pós-término.
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Trocamos números de telefone logo de cara. Ele já me seguia no Twitter, depois de ter me visto num show – descobri depois que esse é a primeira jogada dele quando se sente atraído por alguém e quer se aproximar.
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Poucos dias depois, nos encontramos para um café e ele foi encantador. Lembro-me de ter pensado “uau, isso é tão incrível”. E então, começamos a trocar mensagens. Olhando para trás, isso deveria ter sido um grande alerta vermelho. Eu recebia de 50 a 100 mensagens por dia, mensagens longas. Em determinado momento, ele me disse: “Te mandei um textão e só recebo uma frase como resposta”.
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Eu estava muito ocupada com minha peça e outras coisas, e pensei que qualquer pessoa teria dificuldade em manter esse volume de mensagens.
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Ele costumava dizer ter percebido que estava apaixonado por mim após nosso segundo almoço. Tom assistia minhas apresentações, me levava para jantar e demonstrava um enorme interesse sobre minha vida, minha infância e minha família.
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Pensei que ele era diferente dos outros caras com quem tinha saído antes.
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Duas semanas depois do dia em que nos conhecemos, era meu aniversário. Eu o convidei, mas ele disse que não iria e que eu deveria passar tempo com meus amigos. Ele parecia respeitar meu espaço pessoal.
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Num curto período de tempo, sabia que ele tinha todas as qualidades que eu sempre quis numa pessoa. Ele era gentil e atencioso, sem eu pedir – fazia coisas que eu sempre fiz para os meus ex-namorados, mas que nunca tinham sido retribuídas.
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Como resultado, ele foi me atraindo, criando um mundo do qual não queria sair.
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É como quando você tem uma primeira experiência com drogas maravilhosa e depois segue tomando a mesma droga sempre perseguindo os efeitos da primeira vez – mas nunca é a mesma coisa. Com ele era isso. No final, me sentia uma viciada, esperando que nossa relação voltasse a ser como era no começo, quando tudo era divertido e bom demais para ser verdade.
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Dois dias depois do meu aniversário, passei a noite na casa dele e dormirmos juntos pela primeira vez. Tivemos outras chances antes, mas ele não me pressionou – isso foi algo que me fez pensar como ele era bom.
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Ele me pediu para ser a namorada dele na manhã seguinte. Eu disse sim. No mesmo dia, ele fez uma espécie de discurso dizendo que, como eu estava com ele, a imprensa ficaria interessada e que as pessoas diriam coisas ruins sobre ele para mim por causa de quem ele era.
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Tom me perguntou se eu tinha lido o que a Wikipedia dizia sobre ele, porque eu ainda não conhecia o trabalho dele e deveria saber o que ele já tinha feito. Eu disse: “Você está sentado bem na minha frente, vou saber tudo isso de você mesmo”.
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Dias depois, ele me disse que estava ficando com ciúmes dos meus ex-namorados e do meu passado. Me disse que precisava de tempo para trabalhar isso e que gostaria que eu não falasse sobre o assunto.
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Parecia que estava tentando ser aberto e honesto, então concordei.
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Sentada num parque no dia seguinte, antes de ir ao trabalho, ele disse o quanto desejava que eu fosse para a casa dele naquela noite. Eu disse que sentia o mesmo. Ele, então, me chamou para morar com ele. Isso aconteceu três semanas depois que nos conhecemos.
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Eu disse sim.
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No começo, ele me levava café na cama com comidinhas e flores. Deixava recados antes de sair para o trabalho. Ia me ver quando estávamos próximos, mesmo que por cinco minutos, só para dar um “oi”. Para mim, ele se mostrava um homem perfeito.
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Mas uma pessoa me disse, que, anos antes, Tom tinha mandado emails abusivos para uma amiga dele. Essa pessoa me advertiu para ser cautelosa, dizendo que tinha ouvido que Tom era problemático.
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Lembro-me de ter pensando que não parecia ser coisa da pessoa que eu conhecia.
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Quando perguntei a Tom sobre isso, ele soltou um xingamento e mudou de assunto rapidamente. Começou a me culpar por fazer com que negligenciasse sua própria família. Me disse que, por estar concentrando toda energia em nosso relacionamento, sentia falta de coisas realmente importantes em casa. Entrei em pânico e me desculpei. Mas, olhando para trás, está claro que isso era apenas uma maneira de desviar a atenção do assunto dos emails abusivos.
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Ele me dava muitos presentes, apesar de me dar coisas que não queria – coisas que ele queria que eu usasse, algumas delas muito caras.
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Era quase como se ele quisesse por em prática a ideia que fazia de como a namorada deveria ser.
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Havia tantos alertas, mas acabei deixando passar no momento.
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Ele não tinha ciúmes apenas de meus ex-namorados. Se eu falava sobre alguma experiência que tinha me feito feliz, ele me dizia que estava com ciúme porque não esteve lá comigo. Estava o tempo todo tentando controlar o que eu dizia.
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Quando não estávamos juntos, o contato era opressivo. Tinha que responder as mensagens dele muito rápido.
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Era como se ele não quisesse deixar espaço para eu pensar em outra coisa senão ele.
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As discussões começaram meses depois do início do relacionamento. Tudo tinha sido tão perfeito até ali que brigar foi completamente inesperado. Mas, de repente, parecia que, se estivesse de bom humor ou se as coisas estivessem bem entre nós, ele instigava uma briga – duas ou três vezes por semana. Foi realmente horrível e desgastante, fiquei em estado de choque.
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Apesar disso, três meses depois do primeiro encontro, ele se ajoelhou na minha frente e me pediu em casamento. Fiquei superfeliz. Falávamos sobre nosso futuro, sobre filhos, e tudo parecia tão natural, maravilhoso e certo.
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Foi nesse momento, contudo, quando prometi me casar com ele e já estava morando com ele, que nosso mundo perfeito começou a se desintegrar.
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O anel de noivado foi inspirado em uma joia que ele tinha visto cinco anos antes, antes mesmo de a gente ter se encontrado. Eu odiei. O anel tinha a pedra favorita dele. Eu me senti como se estivesse me encaixando no anel, na imagem idealizada na cabeça dele, ao invés de ele ter escolhido algo para mim.
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Eu estava tendo problemas em conseguir trabalho e me irritava com o paternalismo e a indiferença dele em relação a minha carreira. Ele falava comigo como se eu não soubesse o que estava fazendo. Mas eu estava há anos no mercado e ia bem – só não tinha tido o mesmo sucesso comercial que ele.
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Na noite da nossa festa de noivado, ele não fez o mínimo esforço para conhecer meus amigos. Depois que todo mundo já tinha embora e estávamos abrindo os cartões, eu disse: “Obrigada por não ter esquentado pela presença do Robbie”. Robbie era um amigo com quem tive uma breve aventura no passado.
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Nesse dia, ele estava com uma taça de champanhe na mão. Foi a primeira vez em que ele realmente bebeu álcool perto de mim, e ficou bêbado. Pegou um livro e jogou em minha direção no quarto. Jogou um enfeite de mármore da sacada e começou a gritar e a me xingar. Ele me chamou de vagabunda e me disse para tirar o anel e sair da casa dele.
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Devia ter saído, mas não pude. Não queria acreditar que aquele era ele – achava que era o álcool ou outra coisa. Não fazia sentido abandoná-lo quando estávamos justamente celebrando a decisão de nos casar, de ficar juntos para sempre.
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Sinais de abuso emocional
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Adina Claire, Co-Chefe Executiva da ONG Women’s Aid, diz ser “crucial que todos nós aprendamos os primeiros sinais de alerta e identifiquemos o comportamento controlador e coercivo quando o vemos”. Os sinais clássicos de alerta incluem:
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· ‘Bombardeio de amor’ (quando seu novo parceiro está excessivamente atento e ansioso para se apressar nos estágios iniciais de um novo relacionamento)
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· Ciúme extremo;
· Comentários depreciativos e insultos;
· Destruir objetos da casa;
· Culpar o parceiro/a por coisas que ele/a não fez
· Depreciar as conquistas do/a parceiro/a
· Manipular psicologicamente
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“Se você se sente como se estivesse andando em ovos ou mudando o próprio comportamento (por exemplo, isolando-se da família e amigos) para manter o parceiro feliz, então você pode estar em um relacionamento abusivo. Relacionamentos saudáveis são construídos em confiança e respeito mútuos, não em poder e controle.”
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Na semana seguinte, ele chegou em casa do trabalho e disse que eu tinha feito com que ele tivesse vontade de se matar. Falou em ir ao hospital, mas não foi porque teria de trabalhar no dia seguinte. Àquela altura, isso já não foi exatamente uma surpresa. Toda vez que a gente tinha uma discussão, ele ficava agressivo e abusivo, ia me destruindo aos poucos e, então, ficava aos prantos. Aos olhos dele, ele era sempre a vítima.
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Eu não estava pronta para deixá-lo, mas comecei a ficar com medo dele. Isso começou a me afetar psicologicamente e eu parei de comer. Contei a uma pessoa o que tinha acontecido, mas estava com vergonha de falar com mais gente. Tom era meu noivo e eu não queria que ninguém criasse uma imagem negativa dele.
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Mas ele começou a beber muito e as brigas, o controle excessivo e os abusos continuaram. Ele usava tudo o que tinha descoberto sobre minha família contra mim. Disse que meu irmão era um viciado em drogas, que meu pai tinha me abandonado, que minha mãe não era boa. Falou coisas que, mais tarde, afirmou jamais ter dito.
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Dizia para mim mesma que todo casal tem discussões, que nenhum relacionamento é perfeito. Mas não é qualquer um namorado que te chama de vagabunda e manda você sair de casa.
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Se eu tinha uma visita, ficava muito nervosa pensando na hora que ele ia chegar em casa. Não sabia o que poderia acontecer, não queria que os outros vissem os momentos de raiva, e não queria irritar Tom por ter recebido um amigo em casa. Isso se transformou num problema diário. O que ele vai fazer hoje? Quais “campos minados”‘ preciso evitar? É como se eu tivesse uma “bola” de ansiedade no estômago.
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Se a intenção dele era me isolar dos meus amigos, estava funcionando. Por alguma razão, comecei a não querer a presença da minha família no casamento. Ainda não sei como ele conseguiu fazer com que me sentisse dessa forma.
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Fiz com que minha carreira girasse em torno da dele e arrumava trabalhos próximos da agenda dele para ir visitá-lo se estivesse fora. Depois que ficamos noivos, ele me disse para sair de um bico que eu fazia – do qual gostava pelo lado social.
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Ele disse que colocaria 2 mil libras (o equivalente a R$ 9,5 mil ) em minha conta bancária. Mandei uma mensagem de texto para uma amiga sobre isso e ela me disse pra não aceitar porque eu precisava da minha independência.
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Não aceitei na hora, mas, dois meses depois, acabei aceitando a oferta – ele passou o tempo todo me dizendo argumentos para aceitar, e foi o que fiz. Olhando para trás, isso me faz sentir muito louca.
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Durante uma briga feia, disse a ele que me sentia como se estivesse numa prisão e que tinha perdido minha noção de individualidade. Ele quis saber o que poderia ser feito para corrigir isso, e eu disse que precisava passar um tempo com uma amiga por alguns dias. Ele estava com tanta raiva que disse: “Não posso acreditar que você vai abandonar esse relacionamento”.
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Até hoje, na cabeça do Tom, eu não o deixei porque ele estava abusando de mim. Para ele, eu o abandonei.
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Semanas depois, ouvi de um amigo que Tom tinha mandado um email abusivo para uma ex-namorada. Liguei pra ele e perguntei sobre isso. Ele me disse: “Disse a ela que era uma f*lha da p*ta porque ela precisava saber”. Perguntei se ele ia me contar que tinha entrado em contato com ela e ele falou que não porque achou que eu não ia descobrir. Perguntei se ele me pediria desculpas; ele disse que não tinha que se desculpar por nada.
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Vê-lo abusar de outra pessoa me fez perceber que o que ele estava fazendo comigo era errado. Foi quando disse: “Você me perdeu. Chega. Não posso fazer isso mais. Você precisa de ajuda”. Eu acho que foi a única vez em que o peitei.
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Sabia que tinha que sair de casa antes de ele voltar porque, se ficássemos cara a cara, ele me convenceria a ficar. Ele teria me dito que podíamos tentar de novo fazer a coisa dar certo.
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Não acho que ele pensou que eu fosse embora. Do dia em que nos conhecemos até o dia que o deixei, não haviam passado nem seis meses. Por sorte tenho pessoas incríveis ao meu redor que me fizeram ver o que estava acontecendo e me tiraram daquilo, apesar de não ter sido fácil sair.
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A coisa mais difícil era tentar diferenciar o Tom verdadeiro do falso – questionava se esse cara que eu conheci era apenas um personagem que ele interpretava para me atrair. Eu também tinha que aceitar o fato de que estava em um relacionamento abusivo.
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No final, nada mais parecia ser meu, nem mesmo meus pensamentos. Desde o dia que o conheci, passava um bom tempo pensando nele, meus pensamentos voltavam para ele o tempo todo, até mesmo agora. Eu odeio que ele tenha tido esse poder sobre mim.
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Muitas pessoas não queriam acreditar que alguém pudesse se comportar dessa forma, principalmente alguém que elas achavam conhecer. Até mesmo meu irmão me disse: “É normal o jeito como ele trata você – você só tem que aguentar – é apenas um relacionamento”.
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Isso é uma coisa sobre a qual é preciso falar. Lembro-me de ter procurado no Google “estou num relacionamento abusivo?”, de ler uma lista com as características disso e pensar “sim, aconteceu comigo”.
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Mas muitas pessoas acham que abuso é apenas algo físico. Algumas vezes, quando ainda estava no relacionamento com Tom, quis ligar para o Women’s Aid (ONG de ajuda para mulheres) para entender o que estava acontecendo comigo. Mas não sentia que havia justificativa. O abuso não parecia “ruim o suficiente” porque Tom não me batia.
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Mas é por isso que foi criada, no Reino Unido, a lei sobre comportamento coercitivo ou controlador – porque abuso emocional é abuso.
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Com raiva e com o calor do momento, eu queria expô-lo publicamente, para que as pessoas soubessem que ele é capaz de machucar mulheres de maneira calculada e proposital. Pra mim, é difícil vê-lo sendo celebrado na mídia, sabendo quem ele realmente é.
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Mas não sinto que possa vir a público sobre isso. Eu tenho que pensar na minha carreira. Se eu o expusesse, as pessoas me associariam a ele para sempre – e a culpa é minha, porque abri nosso relacionamento nas redes sociais, porque estava feliz.
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Por fim, sinto-me triste por ele. Não consigo imaginar como seja dentro da cabeça dele, viver a vida dele. Mas, independentemente disso, isso não é desculpa para tratar alguém do jeito que me tratou, as mulheres antes de mim e, tenho certeza, as mulheres que ainda virão.
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*Nomes fictícios.
Depoimento a Natasha Lipman
Ilustrações Freya Lowy Clark
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