Saiu no site CARTA MAIOR
Veja publicação original: Mulheres em situação de risco
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Duas meninas no Quênia e três operárias na França mostram formas distintas de enfrentar a masculinidade tóxica em seus entornos
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Por Carlos Alberto Mattos
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Julieta e Julieta
Rafiki é um filme ao mesmo tempo ousado e ingênuo. Sua ousadia está em articular – e filmar lá mesmo – uma história romântica entre duas garotas do Quênia, país onde a homossexualidade é crime punido com até 14 anos de prisão. A ingenuidade vem da forma quase casta com que Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) se relacionam, bem como da imprudência adolescente com que se portam naquele contexto.
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Mesmo assim, o longa foi temporariamente censurado em seu país e colocou em risco a liberdade da diretora Wanuri Kahiu, a ponto de ela pedir aos seus concidadãos que não tentassem assisti-lo para não prejudicá-la (vejam nessa matéria de El País). Pelos meses que durou, o banimento acirrou os debates pela descriminalização das relações LGBT no Quênia. Aqui cabe uma observação: o termo “rafiki” significa “amigx” em swahili, termo sem gênero usado para se referir eufemisticamente a um namorado ou namorada do mesmo sexo.
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Baseado em conto da ugandense Monica Arac de Nyeko, Rafiki põe em cena um “Julieta e Julieta” entre duas famílias politicamente rivais. Kena, filha de pais separados, pertence a uma classe mais humilde e seu pai, um comerciante, concorre a um cargo público. Ziki é filha do candidato adversário, ligado às elites locais. A atração que rapidamente inflama as duas representa um duplo perigo, político e de costumes.
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O desenvolvimento do entrecho não prima pela originalidade, nem pela sutileza. A balança do esquematismo pesa bastante no retrato sem nuances da masculinidade tóxica que cerca as meninas, assim como na oposição entre a brutalidade do pai rico e a magnanimidade do pai pobre. A direção tem certa dificuldade em conduzir a reação arrevesada de Ziki após o clímax dramático. Os diálogos com frequencia soam empostados, e a montagem não consegue disfarçar que Samantha Mugatsia não sabe andar de skate.
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Mas o filme mantém sua cota de simpatia pela boa química entre as duas atrizes e a atmosfera de leve sensualidade criada em torno delas com o uso de contraluzes e sugestões táteis. A cena jovem e moderna de Nairóbi é representada de maneira sugestiva, com destaque para os figurinos e a forte presença das cores por todo o cenário. Essa vivacidade da garotada queniana contrasta amargamente com as pulsões de uma sociedade refém da homofobia, do fundamentalismo religioso e da intolerância violenta.
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Mulheres Armadas, Homens na Lata (Divulgação)
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A saída da fábrica
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A solidariedade feminina operária é ferozmente posta à prova na comédia policial Mulheres Armadas, Homens na Lata (Rebelles). Nesse despretensioso, mas divertido filme de Allan Mauduit, ninguém ganharia nota máxima num teste de caráter – nem amigos, nem pais e filhos, nem chefes, nem policiais. Não são dignas de confiança nem mesmo as latas de sardinha da fábrica onde Sandra, Nadine e Marilyn trabalham.
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Depois que Sandra (Cécile de France), ex-miss de província e ex-dançarina erótica, reage ao assédio do chefe e acidentalmente o mata, encontrando com ele uma mala cheia de dinheiro, ela e as duas colegas são mordidas pela tentação e entram na rota de uma transação do tráfico. O que se segue é uma ciranda de humor negro, emboscadas e confrontações violentas, com ênfase em tapas na cara e golpes contra a genitália masculina. Leia-se aí um pouco de política de gênero num filme em que os homens levam a pior sistematicamente – quando não são literalmente castrados. É o ar do tempo.
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A vulgaridade das personagens acaba fornecendo também a sua dose de simpatia e humanidade, numa espécie de reação selvagem do proletariado de saias. O ótimo elenco e a direção bem ritmada garantem um entretenimento não muito refinado, mas com tempero convidativo.
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