Saiu no site R7
Veja publicação original: ‘Fui viciada em drogas, agora, sou viciada em corrida’, os relatos de quem adotou a ultramaratona como esporte
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Por Hannah Price e Sophie Haydock
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Quando você pensa em correr, que tipo de imagem vem à sua cabeça? Uma figura ofegante de calça de lycra dando a volta no quarteirão ou os finalistas cruzando a linha de chegada de uma maratona?
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As pernas doloridas após encarar a esteira pela primeira vez em semanas, ou a sensação de vitória quando o contador de passos do celular passa de 10 mil em um dia?
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Provavemente essas são as imagens que corredores amadores tendem a relacionar com sua atividade esportiva de fim de semana. Mas para os adeptos de ultramaratonas – que percorrem distâncias superiores aos 42 km de uma maratona – a corrida possui significados bem mais extremos.
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Longas distâncias
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Estes atletas de alta resistência levam seus corpos ao limite físico e mental, correndo com frequência 160 km ou mais.
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É um esporte praticado globalmente – há competições em lugares como o Deserto do Saara (Marathon des Sables, de 254 km), na África do Sul (Comrades Marathon, de 87 km) e no Reino Unido (The Wall, de 111 km ao longo da Muralha de Adriano) – e que, por incrível que pareça – tem se tornado cada vez mais popular. Houve um aumento de 1.000% no número de corridas de longa distância na última década ao redor do mundo, segundo contou ao jornal britânico The Guardian o administrador de um site agregador de ultramaratonas.
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Algumas pessoas atribuem esse aumento à geração millennial – os ultramaratonistas postam fotos nas redes sociais de seus triunfos, o que incentiva, por sua vez, seus amigos e seguidores a pensar que podem fazer o mesmo.
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A BBC conversou com seis corredores de ultramaratona sobre o que os motiva a percorrer essas distâncias – da mulher que literalmente fugiu do vício em drogas ao jovem empreendedor que busca isolamento, passando por aqueles que correm para superar um trauma e quebrar barreiras de gênero.
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‘Fui viciada em drogas, agora, sou viciada em corrida’
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Catra, 54 anos, Califórnia (EUA)
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“Aos 27 anos, fui presa e passei a noite atrás das grades. Foi a pior experiência da minha vida e me assustou ficar de cara limpa.
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Comecei a andar em má companhia na escola e só queria saber de festa. Logo engatei em um relacionamento com um cara que usava metanfetamina e fiquei viciada rapidamente. Por fim, fomos presos. Fui colocada em um programa de reabilitação de seis meses, em que precisava frequentar uma reunião dos Narcóticos Anônimos todos os dias. Depois de seis meses, eu estava desintoxicada.
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Hoje estou sóbria há 25 anos. Comecei a correr porque estava procurando algo para substituir as drogas. Corri 10 quilômetros por impulso após receber um panfleto de corrida e, três meses depois, corri minha primeira maratona. As ultramaratonas vieram logo na sequência.
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Participei de corridas de 161, 322 e 483 km. Quando você finalmente termina de percorrer essas distâncias, a sensação é maravilhosa. Você realizou algo grandioso: ‘Uau!’ Eu definitivamente sinto uma espécie de onda.
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Sou uma das poucas pessoas no mundo que percorreu 161 km mais de 100 vezes. Você poderia dizer sem dúvida que sou viciada”.
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‘Correr ultramaratonas virou minha meditação’
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Miranda, 29 anos, Londres (Reino Unido)
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“Antes da minha primeira maratona, estava tão nervosa por questionar minha capacidade de completar a corrida que não conseguia fazer quase nada. Só de pensar, me sentia estressada. Tentei de tudo para me acalmar antes do grande dia, incluindo hipnose. Então ninguém ficou mais surpreso do que eu, quando descobri que a ultramaratona era a coisa mais relaxante que já tinha feito na vida.
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Decidi correr minha primeira ultra no ano passado com um dos meus melhores amigos. Parecia uma boa oportunidade de sair da cidade. Rapidamente descobri que era a corrida mais social e relaxada que você poderia fazer. Imagina passar 16 horas ao ar livre, sem nada para fazer além de colocar um pé na frente do outro. Para mim, isso é felicidade.
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Não tem aquela pressão de correr contra o relógio, como acontece em uma maratona normal, não é o tempo que é impressionante, é a distância. As pessoas, na verdade, aplaudem quando você as ultrapassa. Você pode correr por horas ao lado das mesmas pessoas e se sentir confortável em não dizer uma única palavra, é uma experiência muito zen (menos a dor física, obviamente).
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Depois de cerca de uma hora, consigo sentir minha mente começar a se acalmar – é quando começo a me desligar e a entrar em um estado de meditação. Depois disso, estou tão relaxada – você simplesmente não tem energia para ficar irritado com nada! Sou uma pessoa mais feliz e menos estressada quando estou correndo.”
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‘Meu corpo tenta me impedir de correr’
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Marthe, 25 anos, Manchester (Reino Unido)
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“Até hoje, meu corpo tenta me impedir de correr. Acho que é uma reação a um trauma que eu tive durante minha primeira ultramaratona. Eu estava no Nepal e, no segundo dia de corrida, fui atacada por um completo estranho. Não queria terminar a corrida, mas estava correndo em homenagem à memória de uma amiga de infância que tinha se suicidado alguns anos antes. Então terminei.
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Às vezes, eu vou correr e meu corpo todo paralisa antes mesmo de eu sair pela porta de casa. Na primeira vez, estava levando meu cachorro pela coleira para correr comigo, e fiquei lá parada com meu kit de corrida. Não conseguia me mover um centímetro sequer. Já aconteceu algumas vezes desde então. Na primeira vez, acho que fiquei lá parada quase duas horas até meu cachorro pular e me despertar daquele estado.
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Agora, correr se tornou parte da minha recuperação – junto com a terapia. Depois do ataque, decidi reivindicar a corrida como algo que me pertence – corro para me empoderar e retomar o controle. Ainda não estou pronta para enfrentar minha próxima ultramaratona, mas estarei.”
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‘A solidão me ajuda a lidar com a vida’
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Jeff, 28 anos, Londres (Reino Unido)
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“Quando estou correndo, me isolo do estresse do mundo exterior. Sou introvertido por natureza e preciso de tempo com meus próprios pensamentos para me ajudar a lidar com a vida.
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Meu pensamento se torna tão claro e ininterrupto quando estou correndo, me afastar das distrações me ajuda a pensar nas coisas adequadamente, me deixa mais decisivo e permite trabalhar minha inteligência emocional – que são características realmente importantes para um empreendedor. A maioria das minhas grandes ideias de negócio surgiram enquanto estava correndo!
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Acho a tecnologia tão perturbadora – é possível, via rede social, estar conectado a pessoas 24 horas por dia. É demais. A solidão da corrida oferece a minha dose diária de espaço vazio – é o único tempo que tenho ‘para mim’ de verdade.”
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‘Larguei meu emprego para estudar ultramaratonas’
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Bethan, 33 anos, Londres (Reino Unido)
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“Comecei a praticar corridas de longa distância há seis anos, para superar um relacionamento difícil. Isso me deu a clareza necessária para começar a fazer as coisas que gosto na vida. Para encurtar a história, larguei meu emprego em finanças para estudar os estereótipos de gênero na corrida – e minha pesquisa exige que eu saia em campo, o que eu amo!
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Durante uma corrida longa, você não sabe o que vai acontecer e tem que ceder o controle até certo ponto, algo que nem sempre foi meu forte em outros setores da minha vida. Mas pessoalmente, estou em uma situação muito melhor agora e vou me casar em outubro.
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Em março, participei do Speed Project, um revezamento de 578 km de Los Angeles a Las Vegas. A experiência de percorrer um caminho tão longo é realmente difícil de explicar para as pessoas, mas a principal coisa que aprendi com as ultramaratonas é o quão resiliente eu sou. Há momentos em que é muito difícil e chato, e sinto que não estou tendo nenhum progresso, mas há outras vezes em que me sinto incrível, como se estivesse voando!”
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‘Correr me ajuda a sentir que mulheres e homens são iguais no Afeganistão’
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Zeinab (à esquerda), 24 anos, Cabul (Afeganistão)
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“Comecei a correr há alguns anos, depois que vi minhas colegas de quarto correndo todos os dias pela manhã. Eu não corria desde que era muito pequena porque a cidade no Afeganistão onde eu morava é muito conservadora em relação às mulheres e suas atividades.
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Certa manhã, perguntei se poderia ir com elas e corri 10 km sem parar. Foi a primeira vez que senti a liberdade de correr ao ar livre – minhas amigas ficaram surpresas de eu ter conseguido acompanhar.
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Foi quando elas me contaram que estavam treinando para uma ultramaratona de 400 km no Sri Lanka – eu só pensava em como era legal que duas garotas afegãs estivessem competindo em uma corrida internacional! E fiz o mesmo.
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Correr me ajuda a sentir que não há diferença entre os direitos das mulheres e dos homens no Afeganistão. Quero que os homens da nossa sociedade entendam que a participação das mulheres no esporte não é um tabu e que podemos percorrer as mesmas distâncias que os homens. Quero quebrar barreiras. Treinei com minha parceira de corrida todas as noites durante o Ramadã após o jejum.”
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