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Veja publicação original: A extraordinária cientista que estudou o cérebro de Einstein e revolucionou a neurociência moderna
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Os estudos de Marian Diamond quebraram o paradigma de que o cérebro era uma estrutura estática que não mudava
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Horas antes de Marian Diamond nascer, o pai dela levou os outros cinco filhos ao hospital para se despedirem. Os médicos haviam dito que poderiam salvar apenas uma das duas: a mãe ou a filha.
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“Um tumor uterino grande me acompanhou durante o processo gestação da minha mãe, que tinha 42 anos”, contou a cientista americana. “Mas eles estavam errados! Minha mãe viveu até os 75 anos e eu tenho 80 anos”, escreveu Diamond em um ensaio de 2007 sobre sua vida e carreira.
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Ela estuda o cérebro e revoluciona a forma como o entendemos, e seu legado como professora universitária tem inspirado várias gerações de médicos, pesquisadores e cientistas.
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A dama da caixa florida
Diamond tinha o costume de caminhar pela Universidade Berkeley, na Califórnia, elegantemente vestida levando consigo uma caixa com estampa floral originalmente para carregar chapéu.
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“Quando olham uma senhora com uma caixa para chapéu não imaginam o que ela está transportando”, contou, em tom de piada, a um grupo de estudantes em 2010.
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Dentro da elegante caixa, Diamond levava o órgão do corpo humano pelo qual se apaixonou ainda na adolescência.
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“Não se compara a nada”, disse no documentário My Love Affair with the Brain (Minha história de amor com o cérebro, em tradução livre).
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“Isso é o que você realmente é, se você tirar o cérebro, você tira a pessoa”, declarou com um cérebro nas mãos.
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A massa mais complexa da Terra
Diamond nasceu na Califórnia em 11 de novembro de 1926. “Quando tinha 15 anos, vi meu primeiro cérebro humano enquanto caminhava pelo corredor do hospital do condado de Los Angeles, atrás do meu pai, que visitava os pacientes”, escreveu a pesquisadora.
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Ela conta que uma porta estava ligeiramente aberta e, no interior do quarto, havia um cérebro sobre uma mesa pequena. Quatro homens vestindo aventais brancos o rodeavam.
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“Não sabia o que estavam fazendo, mas a imagem desse cérebro, que antes tinha tido a possibilidade de criar ideias, ficou no meu cérebro para sempre. A imagem é tão clara que é como se tivesse sido ontem”.
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“A ideia era fascinante: esse cérebro representava a massa do protoplasma mais complexa da Terra e, quem sabe, da nossa galáxia”, emendou.
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Diamond conta que algo dentro dela lhe dizia que teria a oportunidade de aprender mais sobre aquela nobre parte do corpo humano.
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Foi uma questão de tempo. Pouco tempo.
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Rompendo paradigmas
Diamond se formou em biologia aos 21 anos e, em 1948, começou seus estudos sobre o sistema nervoso no Departamento de Anatomia da Universidade Berkeley.
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Pouco tempo depois, foi promovida a professora-assistente.
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Naquela época, “ninguém estudava anatomia das funções cognitivas superiores”.
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Apesar de o departamento onde trabalhava estar concentrado em estudos sobre os hormônios, ela encontrou algo que a cativou: o hipotálamo.
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“Como 4 gramas de tecido nervoso poderiam desempenhar uma variedade tão grande de funções?”, lembrou ela em seu ensaio.
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Assim começou uma carreira de sucesso como pesquisadora e professora que durou quase 60 anos.
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O professor George Brooks, um de seus colegas na universidade, destacou que Diamond “demonstrou anatomicamente, pela primeira vez, o que hoje chamamos de plasticidade do cérebro”.
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“Ao fazer isso, rompeu o antigo paradigma que via o cérebro como um corpo estático e invariável que simplesmente se degenera a medida que envelhecemos”, completou Brooks.
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As pesquisas pioneiras de Diamond sobre o impacto de um ambiente estimulante e de atividades enriquecedoras no desenvolvimento do cérebro “mudaram literalmente o mundo, desde a forma como pensamos sobre nós mesmos até a forma como criamos os nossos filhos”, avalia o professor e colega da pesquisadora num artigo.
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Estudando Einstein
Marian Diamond terminou sua carreira como professora emérita de biologia integrativa da Universidade de Berkeley, aposentando-se em 2014. Morreu três anos depois, aos 90 anos.
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A universidade a homenageou escrevendo: “Uma dos fundadoras da neurociência moderna, ela foi a primeira pessoa a demonstrar que o cérebro pode mudar com a experiência e aperfeiçoar o enriquecimento e que descobriu evidências disso no cérebro de Albert Einstein.”
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A bióloga havia pedido para estudar o cérebro do pai da Teoria da Relatividade. Anos depois, recebeu amostras do órgão de Einstein.
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Foi Diamond que começou os estudos do cérebro de um dos mais importantes cientistas do mundo.
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A pesquisadora “alcançou fama em 1984, quando examinou fragmentos conservados do cérebro de Einstein e descobriu que ele tinha mais células de suporte do que a média das pessoas”, destacou a universidade.
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Em um artigo publicado pela neurocientista, em 1985, disse que o Prêmio Nobel de Física tinha mais células gliais por neurônio do que o grupo controle que participou do experimento.
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As células da glia desempenham um papel de apoio para os neurônios e intervêm ativamente no processamento de informações. O texto reafirmava a ideia de que o cérebro de Einstein tinha uma peculiaridade que poderia explicar sua genialidade.
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No ensaio de 2007, a própria neurocientista faz uma reflexão sobre essa particularidade.
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“O fato de que as células gliais aumentam com o enriquecimento levou-me à minha hipótese de que Albert Einstein poderia ter mais células gliais em seu córtex, especificamente nas áreas de associação esquerda e direita 9 e 39, em comparação com a área média cortical de outros 11 homens.”
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“Descobrimos que as quatro regiões tinham mais células gliais do que as dos outros homens, mas apenas (a área) esquerda 39, em termos estatísticos, tinha consideravelmente mais”
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Anos antes de se dedicar aos estudos do cérebro de Einstein, Diamond havia feito estudos de laboratório com roedores, fundamentais para sua conclusão de que “um ambiente enriquecido (com brinquedos e companhia) mudam a anatomia do cérebro”, informa a UC Berkeley.
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“A implicação era de que os cérebros de todos os animais, incluindo os humanos, se beneficiam de um ambiente enriquecido e que os entornos empobrecedores (quanto a estímulos e atividades) podem diminuir nossa capacidade de aprender.”
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Inspirado em uma observação do pesquisador Donald Hebb, da Universidade McGill (Canadá), uma equipe de Berkeley realizou um experimento com ratazanas jovens: colocou 12 delas em uma “jaula enriquecida” – grande e cheia de atividades – e uma outra numa jaula separada, “empobrecida” – pequena e sem brinquedos.
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“As ratazanas que cresceram em um ambiente intencionalmente enriquecido tiveram melhor desempenho (percorrendo) labirintos do que as ratazanas ‘empobrecidas’ que cresceram em confinamento e sem estímulo”, explica a neurocientista em seu ensaio.
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Os roedores que cresceram em grupo tinham nível maior de acetilcolinesterase, um químico cerebral, do que a ratazana que cresceu solitária e entediada.
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Diamond se aproximou dos líderes desse estudo e pediu para integrar sua equipe. Eles aceitaram – e dessa união viria uma das principais descobertas do projeto.
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A bióloga colocou sob a lente do microscópio pequenos pedaços dos cérebros dos roedores que haviam participado do experimento e mediu a grossura de seu córtex.
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“As ratazanas enriquecidas tinham um córtex cerebral mais grosso que as empobrecidas. (…) Era a primeira vez que alguém havia visto uma mudança estrutural em um cérebro animal tendo com base diferentes tipos de experiência em sua vida inicial.”
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Um ano depois, em 1963, ela repetiu o experimento com outros roedores e teve resultados semelhantes.
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“Isto é único”
Diamond recorda correr, emocionada, pelo campus da universidade rumo ao escritório do psicólogo experimental e social David Krech, carregando consigo os documentos com suas descobertas.
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“Ele os leu, olhou para mim e disse imediatamente: ‘Isto é único. Vai mudar o pensamento científico sobre o cérebro'”, recorda Diamond.
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Em 1964, os resultados foram publicados e, no ano seguinte, a pesquisadora expôs suas descobertas no encontro anual da Sociedade Americana de Anatomistas.
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Havia centenas de pessoas no salão, mas “poucas mulheres”, recorda ela. “Eu estava muito assustada (em apresentar o projeto). Expliquei com o máximo de calma que consegui, a plateia aplaudiu educadamente e, então, um homem se levantou e disse em voz alta: ‘senhorita, o cérebro não pode mudar'”.
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“Mas me sentia confiante quanto ao trabalho e respondi: ‘Lamento, senhor, mas temos o experimento inicial e o de repetição que demonstram que pode mudar, sim’. Essa confiança é a beleza de fazer anatomia.”
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O cérebro pode mudar em qualquer idade
Uma das principais contribuições de Diamond foi, além de compreender que os componentes estruturais do córtex cerebral podem ser modificados, é que essas mudanças podem ocorrer em qualquer idade.
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Isso significa que ele pode continuar se desenvolvendo com o passar dos anos, a ponto de sua constante estimulação ajudar a melhorar até o sistema imunológico.
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Ante uma população em processo de envelhecimento, essa conclusão traz otimismo, ao indicar que o córtex mantém um grau de plasticidade mesmo em pessoas idosas.
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Os experimentos de Diamond também nos ajudam a entender que podemos melhorar nosso potencial, a despeito da loteria biológica-genética da vida.
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Ela é associada à frase “use-o ou perca-o”, em relação à importância de se manter o cérebro ativo e estimulado por constantes desafios e aprendizados.
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“Quanto mais pessoas entenderem a estrutura e as funções de seus corpos, que é intrinsicamente influenciado pelo sistema nervoso, e forem cuidadas em suas etapas iniciais da vida, mais saudável e prazeroso será o período que virá depois dos 50 anos”, escreveu em 2007.
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Também concluiu que, “em resumo, nossos resultados demonstram ao menos cinco fatores importantes para um cérebro saudável”: dieta, exercícios, desafios, novidades e amor.
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Quanto ao amor, Diamond explicou que as ratazanas de laboratório que eram tocadas e acariciadas costumavam ter vidas mais longevas.
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Professora e cientista
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Como professora universitária, Diamond mantinha uma relação especial com seus estudantes, diz Jeff, o filho dela, à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol).
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“Ela era muito querida”, conta. “Quando íamos ao hospital, eram grandes as chances de que cruzássemos com algum ex-aluno, já formado médico, que nos falava sobre a boa experiência que havia sido ter aula com ela. É a única professora que conheço que a cada semana escolhia, ao acaso, alunos para levar para almoçar, para conhecer melhor seus interesses.”
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Como cientista, grande parte de suas pesquisas eram feitas em laboratório. Nele consolidou um grupo de ajudantes composto, em sua maioria, por mulheres.
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“Ela gostava muito do trabalho delas e sempre lhes dava crédito nas pesquisas que publicava”, prossegue Jeff.
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Daniela Kaufer, professora do Departamento de Biologia Integrativa de Berkeley, diz que o dia em que conheceu Diamond foi “especial”.
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“Eu era uma jovem e recém-nomeada professora-assistente. Quando vi Diamond, foi como conhecer uma estrela do rock.” Para Kaufer, as contribuições de Diamond não se limitaram à “compreensão visionária do potencial de plasticidade do cérebro adulto”, mas se expandiram ao entendimento da função central que os astrócitos desempenham nessa plasticidade.
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Astrócitos são o principal e mais numeroso tipo de células gliais, e os estudos do cérebro de Einstein apontaram que essas células são mais importantes do que se pensava inicialmente, por se ocuparem, por exemplo, da nutrição dos demais componentes cerebrais.
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Em 1953, Diamond se tornou mãe e registrou a importância daquele momento.
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“O mais impactante que vivi até aquele momento foi quando abracei minha primeira filha recém-nascida e a coloquei sobre o meu peito. Foi quando soube por que eu existia”, escreveu.
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Teve outros três filhos, Catherine Richard, Jeff e Ann.
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Desde pequeno, Jeff se deu conta de que sua mãe era incomum, não apenas por ser considerada uma grande cientista, mas porque “fazia coisas que outras mães não faziam”.
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“Ela ia à nossa escola falar sobre ciência e levava um cérebro, um esqueleto ou alguns olhos dentro de um frasco e os passava pela classe para que todos pudessem vê-los.”
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Depois da maternidade, ela passou a dedicar menos tempo ao trabalho, diz ele. Mas “depois do jantar víamos ela fazendo anotações e preparando as aulas do dia seguinte”.
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Em alguns fins de semana, ela levava as crianças consigo para a universidade, para conseguir avançar em suas pesquisas. E os observava pela janela do laboratório enquanto eles brincavam no jardim do campus.
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Às vezes as crianças eram autorizadas a entrar no laboratório, onde viam as ratazanas com seus “brinquedos” nas jaulas.
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“Como crianças, a gente pensava: ‘bem, isso é o que fazem todos os pais’. Mas, já adulto, você pensa: ‘como ela conseguiu fazer todas aquelas pesquisas, dar aulas e além disso criar uma família?'”, questiona Richard.
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“Agora que sou pai, não consigo imaginar como ela fazia para nos levar a acampamentos e excursões, como conseguia fazer as atividades típicas de uma família, ao mesmo tempo em que dava aulas e pesquisava. Nunca a escutamos se queixar de que não havia horas suficientes no dia. Ela era simplesmente incrível. Lembro, já mais velho, que ela dizia a seus estudantes e a amigas minhas que sim, era possível criar uma família e ter uma carreira.”
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Os 4 Ps de Marian Diamond
A pesquisadora não apenas ocupou cargos acadêmicos importantes nos EUA como viajou pelo mundo para divulgar suas pesquisas, incentivar o estímulo a crianças e atrair mais mulheres à ciência.
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Em seu ensaio de 2007, compartilhou o que chamou de seus 4 Ps:
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– Prioridade Pessoal: família e amigos
– Prioridade Profissional: cérebros, colegas e estudantes amigos
– Perseverança: essencial para tudo
– Atitude Positiva: basta ver qual é a alternativa.
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Talvez uma anedota lembrada pelo jornal The Washington Post reflita uma combinação desses 4 Ps: “Sua filha Ann contava que certa vez sua mãe atravessou o país para visitá-la em um acampamento de verão. No avião, levava duas caixas para chapéus: uma tinha uma torta de pêssego e outra, é claro, um cérebro humano”.
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Questionado sobre quando sua mãe decidiu colocar o cérebro humano dentro de uma caixa de chapéus, Richard diz que lembra bem.
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“Foi um dia que procurava pela casa algo em que pudesse levar o cérebro para uma de suas aulas. O cérebro estava em um frasco redondo e, quando ela viu a caixa, decidiu colocá-lo lá dentro porque cabia perfeitamente. Ela guardou aquela caixa durante toda a vida. Se tornou parte de sua assinatura.”
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