Saiu no site O GLOBO
Veja publicação original: ‘Fogo’,’Socorro’ e a urgência de salvar nossas garotas
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É preciso sensibilizar a sociedade contra a escalada do feminicídio. É preciso agir ao ouvir gritos de mulheres que pedem ajuda
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Por Luiza Brunet
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Vozes de mulheres vítimas da violência doméstica precisam de ouvidos mais sensíveis e solidários. Vítimas pedem socorro e não tem sido ouvidas. Quem pede socorro tem urgência. Pode estar lutando pela vida. Quem pede socorro quer que alguém ligue para a polícia ou disque 180 (Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência). Socorro é palavra mágica que vem do latim succursus (auxílio, ajuda). Succurrere é “correr para ajudar”. Quem pede socorro precisa que alguém corra, se mova, que faça alguma coisa. A sociedade não parece sensibilizada o suficiente para atender ao chamado aflito de uma mulher que sofre violência. Essa escuta não pode mais ser passiva. Um pedido de socorro precisa motivar uma atitude responsável e a mobilização pública em favor de quem corre perigo.
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Vivemos uma avalanche de casos ferozes. Paira na sociedade uma sensação de apatia que remete à cultura machista e à expressão “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. A 20 dias deste 42º Dia Internacional da Mulher, a paisagista Elaine Caparroz, de 55 anos, gritou socorro por quase quatro horas. Gritou com toda a sua força. Elaine, cuja história comoveu o país, não foi ouvida enquanto era espancada pelo advogado Vinicius Batista Serra, de 27. Demorou para que seus gritos resultassem em ação efetiva. Seu martírio começou pouco depois de 1h e somente por volta de 4h15 um segurança do prédio subiu até o 16º andar. Isso quase lhe custou a vida. Elaine sobreviveu a uma tentativa de feminicídio por um triz. Foi encontrada banhada de sangue em um cenário de horror.
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Na manhã do dia 3 de março, recebi Elaine em minha casa para um encontro de apoio, juntamente com a atriz Cristiane Machado, que denunciou a agressão do ex-marido e diplomata Sergio Thompson-Flores, preso há três meses. Érica Paes, ex-lutadora de MMA e especialista em prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher, também estava conosco. Nesse café da manhã, diante de um rosto ainda com marcas roxas, ouvimos um relato impressionante.
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Elaine é uma sobrevivente. Ela já sorri. Tem humor. E se sente feliz em retomar a vida que quase lhe foi arrancada inexplicavelmente. Ela lutou para viver. Achou que morreria. Mas não se entregou. Tentando se salvar, lembrou de orientações do filho, o lutador de jiu-jítsu Rayron Gracie, sobre como proteger o rosto unindo os antebraços. E não desistiu de gritar socorro para que vizinhos do mesmo andar a ouvissem. Gritava ainda o número de seu apartamento para ser localizada. Elaine não pretende mais voltar para sua casa e procura outro apartamento.
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Ela nos contou que, já no hospital, ouviu de uma vizinha amiga que foi chamada para socorrê-la, que seus gritos foram escutados, sim. A própria amiga, residente em outro andar, não reconheceu a voz da paisagista. Achou que se tratava de uma briga de casal e admitiu que não quis se envolver. Possivelmente os demais vizinhos tiveram reação parecida. Funcionários do prédio também podem ter demorado a atentar para o perigo. Elaine narrou seus gritos para ouvidos surdos. Até que pessoas de prédios vizinhos foram avisar à portaria. Nossa primeira reação foi de silêncio solene. Depois, carinho e admiração por tamanha capacidade de superação 15 dias após um crime tão brutal. Elaine tem o nosso respeito.
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Possivelmente gritos para ouvidos desatentos também não livraram Jane Cherubim da fúria de seu algoz. Duas semanas após o ataque contra Elaine Caparroz, o noticiário estampou um rosto feminino igualmente desfigurado no Espírito Santo. Jane, de 36 anos, foi espancada e abandonada em uma estrada. O namorado Jonas Amaral foi visto tirando-a de uma festa e levando-a para o carro. O casal estava junto havia um ano e meio.
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Ouvi pela primeira vez de Érica Paes, que lidera o movimento “Eu sei me defender”, que a estratégia de gritar “fogo” pode funcionar mais do que pedidos de socorro quando uma mulher enfrenta violência doméstica ou sexual. Érica, que dá dicas de segurança pessoal, interessou-se por essa orientação ao assistir uma palestra de uma policial militar especializada. Ouviu relatos pessoais de que a estratégia é eficaz. Há textos americanos que recomendam, em caso de violência doméstica ou sexual, gritar “fire” (“fogo”). Pode ser um método eficiente pela simples razão de que um alerta de incêndio mobiliza as pessoas. Mas não há unanimidade. Existem artigos internacionais que também questionam essa alternativa.
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Discuti o tema com as promotoras de Justiça Gabriela Manssur e Valéria Scarance. A orientação formal praticada é a denúncia por meio do Disque 180, das Delegacias de Defesa da Mulher, do Ministério Público e de serviços de saúde gratuitos especializados. E quando não há telefone ao alcance? E quando a vida corre perigo, como aconteceu com Elaine Caparroz? Sistemas protetivos em vigor não evitaram os mais de 30 assassinatos em janeiro, numa escalada do feminicídio sem precedentes, manchete recente em O GLOBO. É preciso provocar o debate. Não há um protocolo internacional para orientar pedidos verbais de socorro. O Brasil pode sair na frente e formular um protocolo que oriente mulheres especificamente nesse sentido. Gritar fogo e/ou gritar socorro?
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Pesquisas precisam apontar o que é mais eficaz como código universal de apoio às mulheres agredidas, tal qual o SOS nos tempos de guerra. O sinal SOS surgiu dos regulamentos de rádio-comunicações da Alemanha em 1905, e foi adotado internacionalmente pela Conferência de Berlim, em 1906. Nunca se soube ao certo o significado das letrinhas que salvam. Reza a lenda que SOS ficou associado a expressões como “Save Our Ship” (“salvem nosso navio”) e “Save Our Seamen” (Salvem nossos Marinheiros). Ou ainda “Save Our Souls” (salvem nossas almas). Essa última tradução é poética. Denota algo como “salvem nossa dignidade”. É bonito, mas pode ter duplo sentido. Não sei se nossas almas precisam ser salvas. Isso pode remeter aos tempos da Inquisição e da caça às bruxas, que matou mulheres para teoricamente salvar suas almas dos pecados. Prefiro pensar que somos capitãs das nossas almas – assim termina o poema “Invictus”, do poeta William E. Henley, que inspirou Nelson Mandela. Somos senhoras dos nossos destinos. Isso nos encoraja a gritar socorro num outro tom.
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A força da sigla SOS está na sua capacidade histórica de sensibilizar, mobilizar e agilizar um salvamento. Vencer a violência contra a mulher deve ser uma luta coletiva. É preciso estar atento e forte, como diz a canção “Divino Maravilhoso”, de Caetano e Gil, eternizada na voz de Gal. Nossa força está na dignidade de denunciar e seguir em frente. Você é vítima, mas não se vitimize. O pedido de socorro deve ecoar amplamente, para que todos se envolvam na causa. Que seja “grite socorro”, que seja “grite fogo”. Fundamental é a prontidão da parte de quem ouve, seguida da ação de buscar ajuda policial e de agentes competentes. Isso é agir generosamente. É ter empatia e colocar-se no lugar do outro.
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Neste Dia Internacional da Mulher, tomo a liberdade de repetir quantas vezes forem necessárias, como quem manda uma insistente e intermitente mensagem em Código Morse de alerta à sociedade: salvem nossas garotas. Salvem nossas mulheres. Estejam atentos para este SOS. Socorram quem pede socorro.
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* Luiza Brunet é modelo, empresária e ativista no combate à violência doméstica
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