Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE
Veja publicação original: Caso Melody: “Quantas meninas de 11 anos são expostas sexualmente a abusos de toda ordem?”
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Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta, que combate a exploração sexual de crianças e adolescentes, escreve sobre o caso MC Melody e nos propõe uma reflexão
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Por Luciana Temer
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Nesta semana vimos crescer a polêmica em torno da Mc Melody, uma menina de 11 anos, que canta funk e é agenciada pelo pai. Vamos falar dela, mas o episódio nos dá uma boa oportunidade para refletirmos sobre algo muito maior, que é a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil.
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Neste caso concreto, temos um pai que, obviamente, ganha dinheiro explorando a filha, mas de outro lado, temos uma menina que está realizada e se sentindo o máximo. O que é de se esperar, uma vez que ela tem milhões de seguidores e vivemos em uma sociedade na qual o sucesso se mede por essa régua. Enfim, ela é uma menina que, aos 11 anos, conquistou uma fama que muita gente gostaria de ter.
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A que preço? Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, aos 11 anos, Melody é uma criança, já que a adolescência só começa juridicamente aos 12 anos de idade. No entanto, nos parece que ela não tem mais a menor noção do que isso significa. Induzida pela família, sexualizou sua imagem e virou mulher antes da hora. Sob vários aspectos, sobretudo psicologicamente, este é um dano irreparável para esta menina. A discussão sobre a perda da guarda que o pai pode sofrer é real e em tese é passível de acontecer, mas sabemos que este é um recurso extremo e que só é decretado judicialmente em situações excepcionais. Provavelmente não acontecerá neste caso.
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Uma punição ao pai pode e deve mesmo ser aplicada, sobretudo por descumprimento de um Termo de Ajustamento de Conduta que ele assinou com o Ministério Público do Trabalho em 2015, no qual se comprometia a impedir que as atividades exercidas pela filha a expusessem a expressões de conotação sexual.
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Ok. Mas isso é o pior que acontece neste país? Algo que deve tomar o lugar de destaque na mídia e redes sociais? Vamos lá, quantas meninas de 11 anos são expostas sexualmente a abusos e exploração de toda ordem? Nossos números, que são subdimensionados em razão da falta de denúncias, falam em 500 mil meninas e meninos explorados sexualmente por ano, mas com uma prevalência muito maior de meninas. A maioria entre 7 e 14 anos. Quer mais? Em 2017 o Data Folha fez uma pesquisa e constatou que 71% dos entrevistados que souberam ou presenciaram o crime não denunciaram.
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E por quê? Porque somos um país machista, uma sociedade que estimula a sexualização precoce e a objetificação do corpo feminino e depois culpabiliza a mulher por toda a sorte de violência sexual que venha a sofrer.Este contexto de sexualização precoce e machismo é responsável por um outro dado alarmante. Segundo estudos do Banco Mundial, o Brasil é o 4° país com maior índice de casamento infantil, fator que responde por 30% da evasão escolar feminina.
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Consequência lógica deste abandono da escola é uma pior qualificação profissional da mulher, menor renda quando adulta e maior sujeição à violência doméstica.Isso é realmente sério! Isso que deveria estar sendo discutido na mídia e nas redes sociais, com a profundidade e urgência que requer. Isso que muda o futuro de uma sociedade.Mas não grupos com discurso moralista pegam um caso com da MC Melody para fazer estardalhaço.
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Vamos olhar para a nossa realidade. Olhar para todas essas meninas precocemente sexualizadas e exploradas por falta de educação e condições adequadas de vida. Por falta de possibilidade de escolhas…Vamos deixar de lado o discurso de ódio à este ou aquele e promover uma conscientização de todos. Vamos elevar o nível da discussão, pleitear políticas públicas efetivas e levar a sociedade brasileira para um outro patamar evolutivo de respeito às mulheres e meninas. Quem sabe assim, algum dia, uma MC Melody seja uma caso tão excepcional de violação de direitos que possamos deter nosso olhar somente sobre ela.
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