Saiu no site EXPRESSO – PORTUGAL
Veja publicação original: A reportagem sobre Paco e o desrespeito pelas vítimas de violência doméstica
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Em plena semana de ações globais relacionadas com o flagelo da violência sobre as mulheres, com grande enfoque na que acontece em relações de intimidade, é só a mim que me parece um enorme “desserviço” público que se dê tempo de antena a alguém que foi denunciado, julgado e condenado em tribunal por violência doméstica?
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Tenho o máximo respeito pelo trabalho dos colegas da SIC, mas como ex-jornalista confesso que sinto um pouco de vergonha alheia ao ver não só a escolha da história e do entrevistado do último “Vidas Suspensas”, como também a forma enviesada como a reportagem é conduzida. Não é preciso trabalhar em comunicação para se perceber que peca por isenção – basta pensar na escolha dos entrevistados, todos eles pessoas próximas e defensores da pessoa que foi condenada em tribunal – e que está construída totalmente de forma a que quem assiste fique com certa pena da “personagem principal”, pondo em causa não só a idoneidade de quem o denunciou, como de toda decisão judicial. Se queremos abordar um tema tão delicado e de proporções tão endémicas como este, então que o façamos com o mínimo de responsabilidade.
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“Com o suicídio da primeira mulher e depois uma condenação por violência doméstica, o cantor ficou com a carreira artística arruinada”, lê-se como destaque do programa. Pergunto eu: é suposto ficarmos com pena? Não me vou alongar muito na descrição da reportagem porque sinceramente mais parece uma telenovela do que uma peça jornalística. A opção de uma narrativa que não é mais do que uma verdadeira lavagem de roupa suja em horário nobre e o recurso à reprodução de gravações de telefonemas, usadas sem a devida contextualização de todas as partes envolvidas (e no caso de uma adolescente, pareceu-me, sem a devida autorização da mesma) deixam-me sinceramente a pensar que assistimos em plena televisão nacional a mais uma forma de vitimação de quem já foi vítima neste processo. Assistida na primeira fila por uma audiência que só pode retirar uma conclusão: os agressores condenados em tribunal são, afinal, as grandes vítimas.
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Se queremos falar de vidas suspensas, falemos destas:
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Num país que continua a ter uma percepção e entendimento muito distorcidos sobre o que é a violência doméstica, é aflitivo alimentarmos este tipo de mensagem. Basicamente, é alimentarmos as dúvidas que já não deviam ser dúvidas e ajudar a manter a desconfiança histórica que recai sobre as verdadeiras vítimas destes casos. A análise de que se não houve violência física então a situação não era assim tão grave – como já vi em tantas comentários a esta reportagem – é totalmente alienada da realidade quanto ao impacto devastador e desestruturante que estas situações abusivas têm na vida de alguém. A falta de nódoas negras e demais marcas físicas não minimizam as feridas que a violência psicológica pode ter na vida de alguém. Nem tampouco são um gatilho para expor essa mesma pessoa ao descrédito.
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É um sinal claro da forma desconfiada como olhamos para as vítimas de violência doméstica que, em plena semana de ações relacionadas com o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, se escolha dar palco a alguém que foi condenado por este crime e que tenta limpar a sua imagem pública. Um crime que é um dos maiores flagelos mundiais dos nossos tempos. Ainda há uns dias a ONU lançava dados sobre 2017, que revelavam que 137 mulheres são assassinadas diariamente por companheiros íntimos ou membros da sua família. São cerca de 50 mil mulheres por ano. Em Portugal, desde início de 2018 já foram assassinadas 24 mulheres nestes contextos.
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Em 2017 tivemos mais de 26 mil ocorrências de violência doméstica por cá. Portanto se queremos falar de vidas suspensas nestes contextos, eu diria que um caminho mais responsável e de verdadeiro serviço público teria sido dar voz a uma das milhares de vítimas que todos os anos veem as suas vidas destruídas nestes processos. Pessoas que são agredidas dentro do seu próprio lar, violentadas precisamente por quem as jurou amar, proteger e respeitar, muitas vezes obrigadas a deixarem as suas casas e a procurarem refúgio em abrigos, levadas a deixar as suas cidades e consequentemente os seus empregos para a sua própria segurança, incapacitadas da manutenção da sua estabilidade económica, vitimadas secundariamente por um sistema judicial que ainda pouco as credibiliza ou lhes dá sequer o apoio especializado que necessitam, e por uma sociedade que teima em questionar e desvalorizar as suas dores.
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Muitas destas pessoas são privadas da sua própria vida até conseguirem provar – sim, são as vítimas que ainda o têm de fazer – que foram alvo de comportamentos abusivos. Pessoas invariavelmente já totalmente quebradas psicologicamente, muitas delas com menores a seu cargo envolvidos em todo este processo, e que ainda têm de viver constantemente com o pânico das represálias. A larga maioria vive esse mesmo pânico o resto das suas vidas porque os castigos atribuídos aos agressores poucas vezes vão mais além do que as penas suspensas. Se queremos falar de vidas suspensas, falemos disto. Que se dê voz a quem perdeu a sua ao ser violentado de todas estas formas.
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