Saiu no site G1
Veja publicação original: Valorização da masculinidade e cultura são ‘gatilhos’ para a violência contra as mulheres
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Diversos aspectos contribuem para que o comportamento humano seja embrutecido e reflita nas inter-relações entre as pessoas.
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Por Stephanie Fonseca
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Quando se fala em violência, independente de tipo, também é preciso considerar aspectos como a “cultura”, a divisão das classes, a valorização da masculinidade e a sensação de hierarquia presentes na sociedade brasileira; não é somente a força física. Para entender um pouco do comportamento humano, o G1 conversou com o professor universitário Lindomar Teixeira Luiz, que é doutor em serviço social, trabalha com sociologia, antropologia e filosofia.
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Neste 25 de novembro, data em que é celebrado o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra a Mulher, o G1 publica uma série especial de reportagens sobre o assunto.
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“Vamos primeiro definir o que é violência. Gosto de uma definição de uma professora da USP, Marilena Chauí. Ela fala que violência é a antítese da ética, é todo ato humano que considera o outro desprovido de sua humanidade”, indicou o professor.
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Ele acrescentou que tratar o outro “como se fosse uma coisa, como se fosse um objeto, é tratar de maneira violenta, de maneira antiética”. Com isso, a agressão física – murros e pontapés – não é o único tipo.
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“Quando a gente fala em violência, é importante se tratar o outro como sujeito, como ser humano, mas as condições também pelas quais as pessoas vivem devem propiciar, também, um respeito para com o ser humano. Imagina a saúde pública no Brasil, o transporte público, problema de moradia, de mobilidade urbana, é um caos. Quer dizer, essas condições não são éticas também”, declarou. “Fora isso, tem também a ação do indivíduo para com o outro”.
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Quando o tratamento entre indivíduos não tem respeito, liberdade, dignidade, também pode ser considerado “um ato violento, um ato antiético”, segundo comentou o professor ao G1.
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“Então, nesse sentido, a violência vai muito além da agressividade. A agressividade é uma forma de violência. Você tem inúmeras outras formas de violência. O preconceito para com a mulher é uma violência moral e, num certo sentido, o preconceito contra a mulher, a discriminação, a ideia de que a mulher é inferior ao homem, isso pode, digamos, chancelar a ideia de que o homem tem direito de dominar a mulher, de bater, agredir”.
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Ao G1, Teixeira Luiz ainda colocou que “a violência entendida como agressão está profundamente ligada a outras formas de violência, no caso, o preconceito de gênero, o preconceito contra a mulher”.
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Professor universitário Lindomar Teixeira Luiz, doutor em serviço social, trabalha com sociologia, antropologia e filosofia — Foto: Stephanie Fonseca/G1
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Divisões
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O professou explicou que a sociedade a qual vivemos é dividida em classes sociais e que tal divisão não tange somente à dimensão econômica, ela faz com que determinados seguimentos sociais “hipervalorizem masculinidade”.
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Ainda que a violência de gênero esteja presente em todas as classes sociais, ela é mais expressiva nos seguimentos mais populares em razão da hipervalorização do universo da masculinidade como um mecanismo de compensação, de acordo com Lindomar. “Essa seria uma variável, digamos assim, pra gente pensar a questão da cultura no que concerne a violência”, disse.
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“Existem estudos na antropologia demonstrando que esses valores da masculinidade são valores que fazem com que o sujeito, que compõe o seguimento social, se sinta compensado, digamos assim. Ou seja, se o sujeito não tem como ter a casa, digamos assim, num bairro nobre, ter um trabalho que obtenha êxito, sucesso, prestígio, ele acaba compensando na hipervalorização desses valores da masculinidade”, contou ao G1.
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Na nossa sociedade dividida em classes sociais, há determinados seguimentos sociais que acabam por comungar um tipo de masculinidade que está muito próximo de violência, conforme Lindomar. “Ou seja, a masculinidade é algo presente em todas as classes sociais, mas vai se apresentar de formas diferentes, conforme a classe social a qual o sujeito faz parte”, explicou.
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Nas classes média-altas, a masculinidade se expressa através do poder, como cargos de chefia e da superioridade do ponto de vista econômico, segundo exemplificou o professor. “Num certo sentido, a gente pode fazer uma interpretação de que ali também está presente a masculinidade”, comentou ao G1.
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Nos seguimentos mais pobres também há uma valorização da masculinidade, que se apresenta de formas diferentes. “Essa masculinidade nessas classes populares vai se apresentar em algo ligado à força física, ligado a proezas sexuais, ou seja, o sujeito das classes populares comunga valores da masculinidade e esses valores da masculinidade estão muito ligados à violência, a resolver os conflitos através da força física, da agressão, tem a questão, por exemplo, da ingestão de bebida alcoólica”, explicou.
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Desigualdade
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Não tem como pensar numa sociedade não violenta, ou menos violenta, sem pensar numa sociedade em que as pessoas tenham mais dignidade e cidadania, segundo colocou o professor.
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“Uma das variáveis da violência, que explica a violência na sociedade, é a nossa tragédia social; o Brasil é um país iminentemente desigual. 80% da população brasileira ganha até três salários-mínimos. Então, não dá pra gente pensar violência a legião dessa condição socioeconômica, porque a miséria, a pobreza, ela embrutece as pessoas”, destacou ao G1.
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Conforme colocou Lindoamr, o primeiro elemento para tentar pensar redução da violência é a oferta de “condições dignas de vida para as pessoas, coisa que no nosso país não existe”. “Você pode observar que os países mais violentos são os países mais pobres, os estados mais violentos no Brasil são os estados mais pobres”, declarou.
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“É claro que não existe uma correlação mecânica entre violência e pobreza, mas a pobreza, ela potencializa a violência no instante em que ela pode reforçar valores tradicionais da masculinidade, ela pode construir situações a que o sujeito fique inconformado, a revolta… Não é a pobreza mecanicamente que provoca a violência, é a revolta, é a frustração, é a falta de perspectiva… Então essa é uma variável que não pode ser descartada. A violência tem um elemento ligado a péssimas condições de sobrevivência material do povo brasileiro. Esse é um dado fundamental”, explicou.
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O professor disse ao G1 que “não saberia dizer quando a gente vai ter uma sociedade em que homens e mulheres sejam tratados como iguais”. Porém, observou que houve um avanço em alguns aspectos, pelo menos, no que tange a iluminar esta questão e discuti-la publicamente. “Acho que isso já é um grande avanço”, salientou.
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‘Não é mecânico’
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Outra variável citada pelo antropólogo como “gatilho” para a violência é a hierarquia. “Num certo sentido, todas as hierarquias que a gente conhece partem de uma premissa da divisão corpo e mente”.
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Ele explicou que a divisão começa na filosofia grega, com Sócrates e Platão. “Os gregos vão dizer que o corpo deve ser comandado pela mente, pela razão. Agora como que esta hierarquia está presente no nosso dia a dia? A maioria das pessoas não leem Platão ou Aristóteles, mas vão à igreja”.
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“Num certo sentido, a religião vai introduzir essa divisão corpo e alma e vai estabelecer uma hierarquia. Todas as hierarquias que a gente conhece tem como fundamento essa divisão corpo e alma”, explicou ao G1.
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O professor comentou que há falas, por exemplo, que colocam os norte-americanos como alma, como “razão, pois eles são serenidade” e que os brasileiros são “corpo”, por ser um povo alegre e festivo.
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“A hierarquia homem e mulher passa, também, por essa premissa, ou seja, o homem seria a mente, a razão, o equilíbrio, a serenidade, e a mulher não, a mulher seria corpo, seria sexo, desejo, seria sentimentos”, esclareceu.
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Tal premissa acaba “reforçando a suposta inferioridade da mulher no instante em que você a coloca como corpo, como sentimento, que está abaixo da razão, digamos assim”.
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“Quando você despreza alguém, quando você considera esse alguém superior a você, você se sente no direito de desqualificar essa pessoa, de rebaixar essa pessoa, de cometer um ato violento para com essa pessoa, porque ela é inferir a você. Mas na verdade isso é uma bobagem, isso é uma construção social”, salientou o especialista ao G1.
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Também há o elemento do modo como é feita a socialização no seio familiar, conforme comentou Teiteira Luiz. Ainda que as instituições – como a escola/faculdade, mídias, igreja – moldem o ser humano, na família há uma “forma de socializar que implica no elemento afetivo”.
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“Os pais têm um peso significativo na formação dos filhos através do exemplo”, destacou.
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“Então, se você cresce numa família em que os conflitos são resolvidos se utilizando desse expediente, se utilizando da violência, certamente o seu filho, lá na frente, vai reproduzir aquilo que você fez. Não é uma coisa mecânica, mas há uma grande probabilidade disso acontecer. Porque muitas vezes essa violência não é perceptível, é uma violência que está tão presente no dia a dia, tão presente no cotidiano, que ela não é interpretada como algo que agride, como algo que fere o ser humano”, explicou ainda o professor.
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Por vezes, quando se vive em um ambiente desarmonioso, a violência acaba banalizada. “Você vive num ambiente, você é socializado numa família de tal forma que os conflitos são resolvidos através da violência, você internaliza a violência e a reproduz sem ter consciência de que aquilo ali se configura em alguma coisa violenta”, informou.
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Cotidiano
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Tal internalização pode ocorrer com o fator “masculinidade” e também por parte das próprias mulheres vítimas da violência do homem. “Muitas vezes elas internalizam essa masculinidade no sentido de socializarem os filhos com base, digamos assim, nesses valores”, comentou.
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Ele explicou que a situação ocorre, por exemplo, ainda quando o filho é pequeno em falas como: “Filho meu não vai brincar de boneca”, “Filho meu não vai brincar de casinha, não vai lavar a louça”.
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Diante disso o professor questiona “Por que não?”. “O menino quando está brincando de boneca, ele pode ser o pai; ele já está aprendendo a assumir a responsabilidade de pai. O menino quando está lavando a louça, ele está dividindo responsabilidade com a futura esposa. Uma coisa não tem nada a ver com a outra”, destacou ao G1.
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“Não estou colocando a culpa nas mulheres, mas muitas mulheres internalizam um conjunto de valores do universo masculino e o reproduz sem ter consciência disso. Esse é um ponto bastante importante, porque a família, num certo sentido, vai ter um peso significativo na nossa formação. A nossa identidade tem as bases no processo de formação, na socialização que se dá no seio da família”.
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Discussão
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Ainda que a temática esteja cada vez mais presente no dia a dia, a participação dos homens neste debate e um elemento “importante”, segundo ressaltou Lindomar.
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“Porque, aparentemente, é uma questão somente do universo feminino. Você pode observar que quase todas as pesquisas, quase todas as discussões, quando se tem, acerca dessa questão, é chamada uma mulher. Mas é importante também que o homem faça parte dessa discussão, porque ele é o agente agressor, digamos assim”.
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Para o antropólogo, quanto mais a questão for difundida e discutida na sociedade, maior a probabilidade de minimizar a violência. “Falo minimizar a violência, porque é muita ingenuidade falar que vamos erradicar a violência; não existe isso. A violência, num certo sentido, se confunde com o próprio ser humano. Froid diz que a violência é um impulso do ser humano, de alguma maneira ela vai ser externada; que ela seja externada de uma forma socialmente aceitável”, explanou.
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Diálogo x Conflito
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Um problema associado à violência pode ser a falta de diálogo. “Numa sociedade, digamos, socializada, numa cidade onde você tem cidadania, onde você tem democracia, os conflitos são resolvidos através do diálogo, através de posturas discursivas, dialógicas. A nossa sociedade não tem uma tradição democrática, digamos assim. A democracia é uma coisa recente, então a gente tem uma grande dificuldade de lidar com as contendas e lidar com os conflitos”, disse ao G1 o professor.
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O professor explicou, ainda, que “uma sociedade democrática lida com os conflitos de maneira civilizada, de maneira em que se respeite o outro, se escute o que o outro tem a dizer, e através de discussão, através de argumentos, você chega a resolver determinados conflitos”.
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“Mas, a nossa sociedade tem uma tradição não democrática, quer dizer, uma sociedade que não tem uma tradição democrática vai ter dificuldade de lidar com as contendas, vai ter dificuldade em lidar com os conflitos, vai enxergar o outro diferente, como inimigo ‘Não, o outro é diferente, o outro pensa diferente, o outro comunga de um conjunto de valores diferentes’. Ele deve ser ouvido, ele deve ser respeitado, isso é democracia”, expôs.
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Inferioridade
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Ao G1, o professor comentou que acredita ter fundamento uma reflexão do psiquiatra Flávio Gikovate. Ele citou uma “fala inusitada e interessante” de que “num certo sentido o homem se sente inferior em relação à mulher”. “‘Mas, como assim inferior?’. Segundo ele, o homem deseja mais a mulher sexualmente do que o contrário. Isso é passível de discussão, mas ele diz isso. E então diz o seguinte, o homem tenta provar, tenta demonstrar que ele é superior à mulher”, explicou.
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Quando o homem procura enaltecer tudo o que é do universo masculino e inferiorizar o universo feminino “no fundo ele está dizendo que ele se sente inferior, porque aquele sujeito que realmente se sente superior, não precisa estar provando para o outro”.
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Para exemplificar o reforço de algo, o professor deu outro exemplo: aquela pessoa que a todo momento diz ser feliz. “Quem fala a todo momento que é feliz, você se pergunta ‘Pera aí, se apessoa está tentando reforçar isso, é o contrário que acontece, ela não está se sentindo feliz’”.
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“A felicidade é mais ou menos como a virtude da humildade. Quando você fala que é humilde, é uma evidência de que você não é humilde, digamos assim. Você já está, num certo sentido, procurando se enaltecer, se destacar com essa virtude, quando na verdade essa virtude só existe na sua ausência”.
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Quando se pensa em diferença, “automaticamente” é colocada em pauta a hierarquia, conforme o professor, “mas diferença é diferença”.
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“Quer dizer, sempre que a gente pensa algo que não é igual, a gente quer colocar um superior e um inferior. Talvez isso tenha um aspecto cultural muito forte na nossa sociedade. Quando a gente pensa homem e mulher, a gente pensa hierarquia, quando a gente pensa em patrão e empregado, a gente pensa hierarquia; nem sempre essa hierarquia é verdadeira, mas é uma espécie de condicionamento cultural”, explicou.
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“O homem e a mulher são diferentes, mas diferença não significa que um é superior e o outro é inferior. São diferentes. Cada um tem as suas qualidades, cada um tem a sua importância”, afirmoo professor.
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Multicausal
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A questão da violência é “multicausal”, ou seja, não tem uma única causa. “E a violência, quando ocorre na esfera privada, na verdade, muitas vezes as causas vão muito além da esfera privada. Muitas vezes as causas têm a ver com a condição socioeconômica, com a ausência do Estado, de não ter políticas públicas adequadas”, comentou ao G1.
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O professor colocou que a questão tem tido avanços no que concerne às políticas públicas. “Você tem a delegacia da mulher, você tem a Lei Maria da Penha, você tem avanço, você tem discussão, mas me parece que essa questão ainda não foi devidamente equacionada. Quer dizer, aquilo que acontece no espaço privado muita vezes tem causas que vão muito além do espaço privado. Tem causas de natureza histórica, religiosa, ausência do Estado, e assim por diante”, declarou.
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‘Não é receita de bolo’
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Aparentemente, a violência “é uma coisa localizada”, porém, Teixeira Luiz explana que se for feita uma leitura um pouco mais aprofundada, será perceptível que “é algo complexo, pluricausal, que você não tem uma receitinha de bolo: ‘Ó, você vai fazer isso e vai ter essa consequência’. Não é assim, é uma somatória de atitudes. A questão da sobrevivência material deve ser pensada, a questão das políticas públicas, a questão de campanhas massificantes pra se tentar erradicar este tipo de conduta do homem”, salientou ao G1.
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Ainda foi colocado que existem outros procedimentos para se cuidar do agressor. Teixeira Luiz lembrou que há assistentes sociais que têm um procedimento que foge do “simplesmente encarcerar e ter uma medida punitiva”. “Chama-se o agressor e procura-se ter uma postura dialógica com o agressor, porque o agressor muitas vezes também é vítima”.
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“Se ele cometeu violência, de alguma maneira ele também está incomodado, está frustrado com alguma coisa. É claro que pode ter o potencial da droga lícita ou ilícita, tem tudo isso aí também. Mas ele também, num certo sentido, é vítima”.
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Diante da afirmação, Teixeira Luiz repetiu a questão de se tratar as pessoas como pessoas. “A partir do momento que você trata o agressor não como objeto, como eu falava anteriormente, mas como ser humano, através dessa postura dialógica, surtem efeitos interessantíssimos. O cara começa a repensar as suas atitudes, os seus valores, e ele pode até tentar minimizar, criar um clima mais respeitoso no seio da família”, contou.
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Contudo, o professor declarou que não podemos ser “idealistas de pensarmos que esse clima harmonioso, que esse clima respeitoso vai se dar na pobreza. A pobreza embrutece as pessoas em linhas gerais”.
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