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Veja publicação original: Futebol feminino no Brasil tem origem nos circos
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Pesquisadora da FGV revela evolução da modalidade a partir de exposições em picadeiros na década de 1930
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Por Jamil Chade
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Em novembro de 1930, o jornal carioca Correio da Manhãdivulgava de forma inédita o “Football Feminino” como uma das atrações do Circo Irmãos Queirolo. A apresentação era descrita como um “torneio disputado por 10 lindas e graciosas moças” e revelou que os times vestiriam os uniformes de Brasil e Uruguai. O sucesso obtido pela atração foi tão grande que, dias depois, mobilizou um novo número do “football Feminino” no espetáculo seguinte dos Queirolos. Dessa vez, no picadeiro, um Brasil x Argentina.
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Uma pesquisa conduzida por Aira Bonfim, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e que por sete anos trabalhou no Centro de Referência do Futebol Brasileiro no Museu do Futebol, levantou as experiências iniciais entre as mulheres e o futebol no Brasil. E, nela, o picadeiro e o futebol se misturavam, com um impacto duradouro para a imagem da modalidade.
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O circo não era apenas mais uma atração. Aira lembra que ele atingiu seu apogeu na primeira metade do século 20, tornando-se “uma das mais importantes manifestações artísticas brasileiras, com grande apelo popular – mais até que o cinema nacional – e por vezes como a única diversão que chegava até muitas regiões do Brasil”.
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As companhias circenses atuavam num campo ousado de originalidade e experimentação e misturava sensualidade, magia e fascínio. “O circo era um espaço privilegiado para o encontro do público com o que era considerado exótico”, disse.
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A “espetacularização” do futebol protagonizado por mulheres dentro de um picadeiro vai aparecer com frequência nas páginas dos jornais de diferentes Estados brasileiros nos anos seguintes. Com o desgaste do repertório clássico dos circos do século 19, novas atrações irão possibilitar a diversificação dos números, além da iniciação de novos atores e atrizes amadores. Com pouco tempo para decorar falas longas e a demanda por números sempre novos a cada temporada, os circos desse período reuniram um considerável repertório de apresentações que passaram a ficar disponíveis, como uma carta na manga, entre suas viagens pelas cidades brasileiras.
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A pesquisadora conta como o caráter itinerante dos espetáculos dos circos atribuía certa exclusividade e personalização a atração “Football Feminino”. Por todo local que passavam, as tais artistas vestiam as camisas das equipes do futebol local durante as apresentações. Estratégias de sedução, portanto, incluíam desde a exposição dos corpos femininos à identificação do clube local.
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Num outro cartaz da época, os circos ainda anunciavam o jogo “Flamengo vc. Syrio Libanez”, e ainda completavam com a constatação: “o maior sucesso do circo”.
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Já uma notícia de jornal coletada pela pesquisadora explicava o que era o campeonato de futebol feminino. “Ao contrário do que pode parecer a princípio, não se trata de um simples número de variedades: são dois adestrados teams de moças que se batem com vigor e decidido empenho pela victoria das cores do clube”, apontou.
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“É curioso saber que as primeiras décadas do século 20 marcaram a ruptura do privilégio masculino nos picadeiros nacionais. Mesmo que estigmatizadas, malvistas e à beira da prostituição, aos poucos a composição de artistas mulheres cresceu em tais companhias”, constatou a pesquisadora.
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Aira considera que o cenário de exposição circense da década de 30 pode ter sido um dos inauguradores da associação da imagem ainda pouco usual da mulher como jogadora de futebol.
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“Tal imagem, ainda considerada ‘exótica’ ou estranha, trazia consigo uma posição simbólica subversiva e escandalosa para os padrões da época”, disse. “Sendo assim, se o circo foi a expressão artística que maior público mobilizou nas primeiras décadas do século 20, podemos supor que a atração ‘Football Feminino’ contribuiu para a popularização e estigmatização da imagem das mulheres jogadoras”, comentou.
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Campos
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Dos picadeiros, o futebol de mulheres ganhou novos espaços, como nos campos suburbanos do Rio de Janeiro entre 1939 e 1940. Mas, ainda assim, a pesquisa mostra como os eventos traziam consigo em seus anúncios palavras e termos que vinham de ações cênicas. “Moças do Mavillis voltam a ensaiar”, dizia um deles. Em outro, era anunciado que “os integrantes do futebol feminino se exibirão em Santos a convite do Santos FC”; “(…) a partida da preliminar constituirá um espetáculo inédito para o público paulista”. “Trata-se de um encontro de football feminino entre duas adestradas equipes cariocas”, explicava outra.
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Algum tempo depois, em 14 de abril de 1941, o Decreto-lei Nº 3.199 formalizaria de vez as definições sobre os esportes adequados ou não à “natureza feminina”, e afastaria legalmente a promoção do futebol entre o dito “sexo frágil”.
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Esse impedimento, legal e simbólico, ainda foi deliberado mais uma vez, em 1965, depois de visíveis reincidentes de futebol feminino, e permaneceu em vigor até 1979, quando foi revogada a proibição. Mas a regulamento do futebol feminino no País ocorreu apenas em 1983. “Ou seja, enquanto o esporte nacional crescia e se populariza nacional e internacionalmente, segundo a Conselho Nacional de Desportos (CND), aos corpos das mulheres o futebol permanecia interditado e impróprio”, apontou Aira.
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Segundo ela, a ideia de “espetacularização dos corpos femininos em campo” rendeu ainda muitos episódios. “Impossível não mencionar os jogos e preconceitos entre as vedetes que na década de 50 e 60 ‘ousaram’ desfilar em carros abertos e pisar com seus shorts curtos nos gramados dos estádios do Maracanã e do Pacaembu”, contou.
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“Não muito distante, em 2001, a Federação Paulista de Futebol e a Pelé Sports & Marketing sugeriram o embelezamento das atletas do futebol como critério de seleção para o Campeonato Paulista de Futebol Feminino daquele ano, como estratégia de conquista de mais público e recrutamento de um maior número de praticantes”, destacou.
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Em 2015, ano da Copa do Mundo de Futebol Feminino no Canadá, o coordenador da seleção feminina na CBF, Marco Aurélio Cunha, declarou ao jornal canadense The Globe and Mail que o futebol feminino do Brasil chamaria mais a atenção, uma vez que “as jogadoras estavam mais bonitas e usando maquiagem”. “Elas vão a campo elegantes. O futebol feminino costumava copiar o masculino. Até mesmo o modelo das camisas eram mais masculinizados. Costumávamos vestir as mulheres como homens. Então, faltava ao time o espírito de elegância e feminilidade. Agora, os shorts são um pouco mais curtos, e o estilo dos cabelos mais cuidadosos. Não são mais mulheres vestidas como homens.”
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Para a pesquisadora, trazer à tona outras narrativas sobre a memória do futebol brasileiro é reencontrar experiências “repletas de discursos que exacerbaram marcadores sexuais de suas épocas, a ponto de produzir legalmente e simbolicamente o distanciamento das brasileiras com o futebol”.
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Isso, em sua avaliação, “não são processos naturais, mas consequências de processos históricos, políticos e culturais, passíveis de serem superadas e rescritas nos próximos anos”.?”Em 2018, mulheres ainda são obrigadas a defender a ideia de que elas não querem seduzir, mas participar mais ativamente dos espaços de visibilidade, prática e decisórios dos esportes. O desejo futuro, ao conhecermos cada vez mais a nossa própria história, é de oportunamente desmontamos os muitos picadeiros no nosso futebol”, completou a pesquisadora.
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