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Veja publicação original: Órfãos do feminicídio. O drama de quem teve a mãe morta no DF em 2018
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Por Saulo Araújo
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“Vovó, o papai fez muito dodói na mamãe e ela dormiu.” Foi pela neta que Noemiza Carlos Romão, 66 anos, recebeu a notícia da morte da filha Janaína Romão Lúcio, 30, brutalmente assassinada pelo ex-companheiro. A mulher começou a ser agredida com socos e pontapés ainda dentro de casa, no Condomínio Porto Rico, em Santa Maria, na noite de 14 de julho último. No quarto, levou três facadas e, mesmo ferida, conseguiu correr para a rua. Alcançada por Steffanno Jesus Souza de Amorim, 21, acabou golpeada mais duas vezes. O feminicida está preso.
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A polícia estima que o martírio da funcionária terceirizada do Ministério dos Direitos Humanos até ser perfurada pela última vez tenha durado cerca de 3 minutos, tudo visto de perto pelas duas filhas da vítima, Carol e Juliana*, de 2 e 4 anos.
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A mais velha, na hora do lanche, costuma ficar esfarelando biscoito e perguntando por que Deus fez o pai dela tão ruim“
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Noemiza Carlos Romão, aposentada
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Seguindo um enredo que se repete na maioria dos casos de feminicídios, Noemiza e o marido, o aposentado Edgar Soares Santana, 67 anos (foto em destaque), de um dia para outro agregaram à rotina de avós a responsabilidade de criar os netos-órfãos.
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Entre 1º janeiro e 3 de setembro deste ano, 21 mulheres foram vítimas de feminicídio no DF, número 75% maior do que o computado no mesmo período de 2017, quando ocorreram 12 casos. Por meio de boletins policiais e relatos familiares, o Metrópoles reuniu informações sobre 16 tragédias que deixaram ao menos 24 órfãos. Como não há dados precisos sobre os demais cinco crimes, a estatística pode ser ainda maior.
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Em pelo menos em três ocasiões, os filhos viram a mãe ser executada a sangue frio. Em dois episódios, o pai ainda tirou a própria vida na frente das crianças. “Não é fácil sua netinha chegar da creche e dizer que todo mundo na escolinha tem mãe, menos ela. É um soco no estômago”, conta Edgar, em meio a lágrimas.
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Dedicado, o avô brinca de casinha, esconde-esconde e boneca com as meninas. Mesmo vivenciando o luto pela morte da caçula de quatro irmãos, Edgar entende que manter as netas entretidas é o melhor remédio para as crianças não pensarem a todo momento na barbárie. “A gente faz de tudo para vê-las felizes, mas, principalmente na hora de dormir, elas sentem muita falta. Não tem sido fácil”, confessa.
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Uma semana após o crime, Carol e Juliana passaram a receber atendimento psicológico em uma unidade do Núcleo de Apoio Psicossocial do Pró-Vítima, em Taguatinga, às segundas-feiras, mas a distância de mais de 40km dificulta o acompanhamento continuado. “A gente se esforça, mas não é fácil chegar lá porque é muito longe”, reclama Noemiza.
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Mesmo os profissionais acostumados a lidar com familiares de vítimas de violência admitem ser extremamente delicado tratar órfãos do feminicídio. “Você vai estar diante de crianças que enxergavam ao mesmo tempo a mãe cuidadora e amorosa e a mãe esfaqueada e morta”, conta a professora Gláucia Diniz, PHD em psicologia da Universidade de Brasília (UnB).
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Ainda segundo a especialista, que há 10 anos coordena um projeto interdisciplinar voltado para o acolhimento de vítimas de violência doméstica, “é fundamental acolhê-las para que essas imagens chocantes não as levem a um estado de ansiedade e as façam evoluir para sintomas de ansiedade crônica, depressão ou esquizofrenia”.
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“Acordaram e viram a mãe morta”
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Se pudesse, a dona de casa Maria das Graças Castro, 70 anos, riscaria do calendário o dia 7 de agosto. Nessa data deste ano, ela viu, da porta da sala, a filha Adriana Castro Rosa Santos, 44 anos, ser executada com dois tiros no portão.
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O autor do feminicídio, o marido dela e sargento da Polícia Militar do DF Epaminondas Santos Silva, 51, não admitia ceder o divórcio proposto por Adriana. Após matar a mulher, ele se suicidou com um tiro na têmpora.
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Ao ouvirem os tiros e os gritos de desespero da avó, o menino e a menina – de 11 e 8 anos, respectivamente – correram, descalços e ainda de pijama até o quintal e se depararam com os corpos dos pais sangrando.
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Eu não tive forças nem para consolar meus netos. Eles corriam e pulavam de aflição. Só consegui ver minha filha de novo dentro do caixão, no cemitério“
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Maria das Graças Castro, aposentada
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Viúva e alçada de uma hora para outra ao posto de responsável pelas duas crianças, Maria das Graças recorreu à fé para vencer a depressão causada pela morte da filha e conseguir se manter forte diante dos netos. “Sempre tem um filho ou uma nora dormindo comigo a fim de dar apoio. À noite, rezo com as crianças e digo que a mamãe está bem, descansando no céu. Por eles, não posso esmorecer”, conta.
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Católica fervorosa, Maria das Graças faz as orações na sala. Ao lado do pequeno altar com representações de Nossa Senhora Aparecida e Jesus Cristo, a imagem de Adriana Castro está eternizada em um banner de um metro e meio com os dizeres: “Amor não machuca, quem machuca são as pessoas. Nós te amamos”.
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A aposentada conta que os momentos mais complicados na criação dos netos têm sido à noite. Ainda traumatizados, os meninos não dormem sozinhos. “O garoto dorme comigo e a menina com a minha irmã, que também mora aqui”, relata.
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Acompanhamento para evitar traumas
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Segundo a psicóloga e especialista em trauma e luto Cibelle Antunes Fernandes, a mudança no comportamento dos netos de Maria das Graças é normal. Ela destaca, contudo, que o trabalho de profissionais pode ser decisivo para evitar traumas na adolescência.
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“A criança, ao contrário dos adultos, costuma manifestar o sofrimento por meio de comportamentos regredidos, como ficar mais agressiva, comer muito ou pouco, não dormir, perder o controle dos esfíncteres. Se é feita uma intervenção precoce para reprogramar a experiência dentro de si mesma, há grandes possibilidades de que essa experiência não a prejudique em fases futuras da vida”, destaca Cibelle, que foi professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e trabalha na área de psicologia do Instituto Hospital de Base do DF (IHBDF).
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A especialista também ressalta ser premente o tratamento daqueles que ficaram com a incumbência de criar os órfãos. “Muitas vezes esses avós ou tios também estão destroçados por dentro e nem sempre se sentem confortáveis para ocupar esse vácuo. Se essas pessoas não tiverem preparo psicológico, talvez esses órfãos paguem outro preço: o de ser criado por alguém que se encontra em constante sofrimento e que gera insegurança às crianças”, alerta.
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“Chorava tanto que dava pena”
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Foi o que aconteceu com o auxiliar de serviços gerais Thalis Morais dos Santos, 33 anos. Ele passou a cuidar das sobrinhas de 2 e 4 anos após a irmã, Tauane Morais dos Santos, 23, ser executada a facadas pelo ex-companheiro Vinícius Rodrigues de Souza, 24, solto por um juiz um dia após ser preso justamente por agredir a operadora de caixa. O crime ocorreu em 6 de junho, em Samambaia Norte.
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O magistrado Aragonê Nunes Fernandes, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Samambaia, justificou a concessão de liberdade ao assassino alegando “não ter bola de cristal” para prever quem, de fato, concretizará ameaças.
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Com o núcleo da família residindo no Piauí, em função da adaptação das meninas a Brasília e à creche, Thalis preferiu mantê-las sob sua tutela, em Samambaia Norte. No entanto, o fator psicológico pesou e Thalis entendeu que o processo de superação das crianças seria mais fácil ao lado da avó, no município de Bertolina. “Uma delas chegou a ter gastrite e crise nervosa. Choravam tanto que dava pena. Acho que em um ambiente diferente do que elas viviam aqui em Brasilia será melhor”, acredita o tio.
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A quem recorrer?
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Ao Metrópoles, familiares de vítimas de feminicídio contaram que até conseguem ser inseridos em programas de acompanhamento psicológico gratuitos, mas muitos desistem pela distância dos locais de atendimento.
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Atualmente, segundo Andressa Augusto Queiroz, subsecretária de Apoio às Vítimas de Violência, da Secretaria de Justiça, há núcleos do Pró-Vítima em Ceilândia, Paranoá, Lucio Costa (Guará), Asa Sul, Taguatinga e Plano Piloto. “A ideia é expandir para Planaltina, Santa Maria, Sol Nascente e Estrutural. Também já temos um carro disponível que só falta adesivar. Ele será o núcleo móvel”, responde.
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Apesar da quantidade expressiva de feminicídos este ano, atualmente apenas quatro órfãos de mulheres vítimas desse crime passam por acompanhamento psicológico na rede pública de saúde. “É preciso que essas pessoas saibam que nossa rede está à disposição”, reforça Andressa Augusto.
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Em nota, a Secretaria de Saúde diz manter o Programa de Pesquisa, Assistência e Vigilância à Violência (PAV), que acolhe familiares e vítimas de violência. “O PAV tem como principais atribuições o atendimento a pessoas em situação de violência, numa abordagem biopsicossocial e interdisciplinar, a articulação com a rede de atendimento, os encaminhamentos institucionais e intersetoriais, a promoção da cultura de paz e a vigilância dos casos.”
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A pasta também informou que tal público tem acesso ao Centro de Orientação Médico Psicopedagógica, que presta atendimento interdisciplinar em saúde mental a crianças e adolescentes do DF e Entorno. “Atende desde os casos mais leves de sofrimento psíquico até os transtornos mentais mais graves. Possui, ainda, um acolhimento humanizado, diário, com classificação de risco, realizado por profissionais capacitados para melhorar o processo de trabalho na unidade e avaliar a gravidade e a urgência de cada caso”, diz o texto.
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“Botão do pânico” é para poucos
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Uma das medidas anunciadas pelo GDF para frear os feminicídios no DF foi o programa Viva Flor, um dispositivo entregue a mulheres ameaçadas de violência doméstica e que, ao ser acionado, chega à central da Polícia Militar, que, imediatamente, envia uma equipe ao local. Apesar do avanço tecnológico, apenas sete mulheres receberam o aparelho desde o lançamento da medida, há quase 10 meses.
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A Secretaria da Segurança Pública e da Paz Social informou que a Vara de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) é responsável por indicar quem serão as vítimas de violência atendidas pelo programa. A reportagem enviou o questionamento ao TJDFT, mas, até a última atualização deste texto, não havia recebido retorno.
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No campo nacional
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Embora os números ainda preocupem, houve avanço com a instituição da Lei Maria da Penha, sancionada em 2006. Antes da legislação entrar em vigor, o crescimento da taxa de assassinato de mulheres era, em média, de 2,5% ao ano. Depois da lei, caiu para 1,7% ao ano.
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O levantamento publicado no Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, lançado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) Brasil – revela que o Brasil está em quinto lugar no ranking de países que mais matam mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
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*Nomes fictícios para preservar a identidade das crianças
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