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Veja publicação original: Feminicídio e violência doméstica: para combatê-los é preciso falar
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Por Mara Gabrilli
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Nova colunista do iG, deputada federal Mara Gabrilli aborda temas que ganharam ainda mais o cenário nacional depois da morte de Tatiane Spitzner
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Um carro para em frente a um prédio. Dentro do veículo um homem soca uma mulher. Ele a puxa e a empurra na sequência, depois a retira do carro pelo pescoço e novamente a agride no rosto. Os dois entram no condomínio e, ali mesmo, no estacionamento, a mulher sofre mais agressões. O homem a golpeia com um mata-leão e ela fica desacordada. O homem a chuta, enquanto ela desperta e tenta fugir. Ela corre, mas ele não a deixa seguir. Encurralada no elevador, ela apanha novamente.
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Minutos depois, já dentro do apartamento, não é mais possível ouvir gritos, nem o som de golpes, tampouco pedidos por socorro. Mais uma mulher foi morta no Brasil.
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Os minutos que antecedem o óbito de Tatiane Spitzner, de 29 anos, morta após cair do 4º andar da sacada do prédio onde vivia com Luís Felipe Manvaile, o marido e autor da sequência de agressões, compõem um relógio brutal do Brasil, em que uma mulher é assassinada no Brasil a cada duas horas. Todos os dias, são 12 mulheres que perdem a vida em nosso País. A cada dois segundos, uma mulher é vitima de violência física ou verbal.
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De acordo com a ONU, o Brasil é responsável por 40% dos crimes de feminicídio na América Latina. Ocupamos o vergonhoso sétimo lugar no mundo entre as nações onde mais mulheres são mortas em casos relacionados à violência de gênero, que é o que configura o crime de feminicídio.
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Quantas Tatianes já foram agredidas e mortas hoje? Quantas mulheres no mundo já foram vitimas de alguma forma de violência neste exato segundo?
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Na França, Marrie Laguerre, de 22 anos, foi assediada por um homem enquanto voltava para casa. Por responder com um “cala a boca”, ela foi jogada contra um cinzeiro em plena luz do dia em uma movimentada rua de Paris. Ele bate fortemente em seu rosto e segue livremente.
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As cenas da violência gratuita e pública foram postadas na rede social da própria Marrie, que, em poucas horas, recebeu mensagens de milhares de mulheres que resolveram compartilhar suas experiências de violência verbal e física. Não por acaso, o governo liderado por Emmanuel Macron aprovou uma recente legislação para coibir esse tipo de assédio praticado nas ruas, punindo o agressor com multa.
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A intenção dos franceses, contudo, pode até ser das melhores, mas a medida cai no erro corriqueiro de coibir o crime sem agir na raiz do problema: o reconhecimento do homem sobre o que é o assédio. Mesmo com a França tomada de policiais em cada esquina – o que já parece inviável por si só –, sem o reconhecimento do assédio dos cidadãos e dos próprios policiais, a Lei está fadada ao fracasso.
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Evoluir as mentalidades por meio de educação é uma proposta que se aproxima do ideal. É inclusive um dos objetivos do Projeto Despertar, que aqui em São Paulo se tornou a Lei 16.732/2017. O projeto que originou a legislação – e que levarei agora à esfera federal – é de autoria da vereadora Adriana Ramalho e foi idealizado e implantado pela promotora de justiça Gabriela Mansur .
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A medida obriga homens que cometeram violência doméstica a participar de grupos de reflexão e discussão. Os resultados têm sido promissores. No Estado de São Paulo, onde o Programa Despertar atua há dois anos, os casos de reincidência da violência caíram de 65% para 2%.
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Precisamos não só despertar consciência do crime cometido pelo agressor, mas também gerar a empatia para que o homem não volte a cometer o delito. Afinal, na maioria das vezes, a violência sofrida pelas mulheres é praticada em ambientes seguros. Ela é cometida pelo marido, o pai, o padrinho, o tio… Ela vem de onde mais se espera proteção e amor dos homens.
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A Lei Maria da Penha completa 12 anos neste mês de agosto. Ela é considerada pela ONU uma das três melhores legislações do mundo no combate à violência contra a mulher, só fica atrás das Leis do Chile e a Espanha, a primeira colocada. Contudo, a culpa colocada sobre a vítima de violência doméstica ainda é presente na maioria dos casos de agressão e feminicídio, impedindo muitas vezes que a Lei seja simplesmente aplicada. A violência contra a mulher é cultural, ela está enraizada em costumes sexistas de sociedades que enxergam a mulher como coisa a ser possuída, usada e jogada pelo homem.
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Mulheres sofrem por muito tempo caladas. Muitas vezes não fazem a denúncia e quando o fazem nem sempre são ouvidas ou o atendimento não é imediato. Há vários relatos de mulheres que sofreram agressão e ao procurar uma delegacia geral (não especializada) escutam perguntas do tipo: “mas ele já te bateu?”. Infelizmente, a tolerância da sociedade ainda é algo que se perpetua cotidianamente, inclusive dentro de estâncias que deveriam proteger a mulher e qualquer outro cidadão, um tratamento que só alimenta a impunidade.
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Maria da Penha, propulsora na luta contra a violência doméstica no Brasil, ficou paraplégica por conta de um tiro disparado por seu marido. Antes da cadeira de rodas, no entanto, ela era frequentemente agredida. Prova de que a violência doméstica é pré-anunciada, muitas vezes até escancarada. Ela se mostra em hematomas escondidos, em ameaças, em violência verbal, em comportamentos públicos que todos nós podemos coibir, assim como fez nossa irmã francesa.
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Até quando vamos tolerar que a discriminação com base no gênero continue a tirar tantas vidas? Briga de marido e mulher se mete a colher sim. Colher do Estado, da Justiça e da sociedade. Passou da hora do Brasil perceber isso.
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