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Veja publicação original: Trancas, termostatos e luzes: ferramentas digitais de abuso doméstico
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Por Nellie Bowles
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As pessoas que ligaram para o serviço de ajuda e abrigos contra a violência doméstica disseram que se sentiram como se estivessem enlouquecendo.
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Uma mulher ligou seu ar condicionado, mas disse que, em seguida, ele desligou sozinho, sem nem chegar a tocá-lo. Outra, contou que os números do código da fechadura digital da sua porta de casa mudavam diariamente e ela não entendia o porquê. Ainda outra disse ao telefone, nas linhas de ajuda, que a campainha ficava tocando, mas nunca havia ninguém.
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Suas histórias fazem parte de um novo padrão de comportamento em casos de abuso doméstico vinculado à ascensão da tecnologia do tipo “smart home”. Fechaduras, alto-falantes, termostatos, luzes e câmeras conectados à internet, comercializados como as mais recentes conveniências para sua segurança, agora também estão sendo usadas como meio de assédio, monitoramento, vingança e controle.
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Em mais de 30 entrevistas ao New York Times, vítimas de abuso doméstico, seus advogados, funcionários de abrigos e pessoas nas linhas de emergência descreveram como a tecnologia tem se tornado um problema. Abusadores – usando aplicativos em seus smartphones, que são conectados aos dispositivos habilitados para internet – começaram a controlar remotamente objetos do cotidiano em casa, às vezes para ver e ouvir, outras vezes assustar ou mostrar poder. Mesmo depois que um parceiro já tivesse deixado a casa de sua vítima, os dispositivos muitas vezes continuaram a ser usados para intimidar e confundir.
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Para essas vítimas e as pessoas que atendem chamadas de emergência, as experiências eram muitas vezes agravadas pela falta de conhecimento sobre o funcionamento de tais tecnologias inteligentes, quanto poder uma terceira pessoa poderia ter sobre esses dispositivos, como lidar legalmente com o comportamento e como acabar com ele.
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“As pessoas começaram a perguntar o que fazer em relação a isso”, Erica Olsen, diretora do Projeto de Segurança na Rede da Rede Nacional para Acabar com A Violência Doméstica, contou sobre as sessões que promove e que têm como tema a tecnologia e o abuso. Olsen disse se preocupar em discutir o mau uso das tecnologias emergentes porque “não queríamos introduzir essa ideia para o mundo, mas agora que ela está se espalhando, precisamos discuti-la”.
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Algumas das maiores empresas de tecnologia fazem produtos “smart home”, tais como o autofalante da Amazon, o Echo, e o termostato inteligente da Alphabet’s Nest. Os dispositivos são tipicamente vendidos como companheiros úteis para a vida, incluindo quando as pessoas estão no trabalho ou de férias e querem supervisionar remotamente seus lares.
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Ao longo do ano passado, dispositivos domésticos conectados à rede têm surgido cada vez mais em casos de violência, de acordo com aqueles que trabalham com vítimas de abuso doméstico. Pessoas que trabalham nas linhas de emergência dizem que houve mais ligações no último ano mencionando a perda de controle de equipamentos ligados ao Wi-Fi, como portas, alto-falantes, termostatos, luzes e câmeras. Os advogados igualmente disseram que estão lutando para entender como conseguir ordens de restrição para a cobertura de tecnologia “smart home”.
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Muneerah Budhwani, que recebe chamadas na Hotline Nacional de Violência Doméstica, relatou ter começado a ouvir essas histórias sobre situações de abuso com aparelhos de “smart home” no fim do ano passado. “Quem ligava contava que os agressores estavam monitorando e controlando tudo remotamente através dos eletrodomésticos inteligentes e de sistemas de smart home”, ela disse.
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Graciela Rodriguez, que dirige um abrigo de emergência com 30 leitos no Center for Domestic Peace em San Rafael, Califórnia, disse que algumas pessoas recentemente relataram que “as coisas estavam enlouquecendo”, como termostatos que de repente chutam a temperatura da casa para 38ºC, ou alto-falantes que do nada começam a tocar músicas ensurdecedoras.
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“Elas sentem como se estivessem perdendo o controle de sua casa. Depois de passar alguns dias aqui, as vítimas percebem que estavam sendo abusadas”, Graciela disse.
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A tecnologia do tipo “smart home” pode facilmente ser subvertida para o uso indevido por diversas razões. Equipamentos como câmeras de segurança que se conectam à rede são relativamente baratos – alguns chegam a custar U$40 – e são simples de se instalar. Geralmente, uma das pessoas dentro do relacionamento se encarrega de instalar tudo e sabe como funciona, além de ter todas as senhas. Isso dá a ela o poder de se utilizar dessa tecnologia contra a outra.
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Os socorristas disseram que muitas vítimas desses abusos relacionados ao “smart home” eram mulheres.
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Esses aparelhos da casa são normalmente instalados por homens, disse Melissa Gregg, diretora de pesquisa na Intel que trabalha com as implicações das tecnologias associadas aos “smart homes”. Muitas mulheres também não têm todos os aplicativos em seus telefones, disse Jenny Kennedy, pesquisadora pós-doutoranda na Universidade RMIT em Melbourne, Austrália, que está pesquisando as famílias que instalam esses tipos de aparelhos.
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Todas as pessoas que falaram ao New York Times sobre o assédio através de aparelhos eram mulheres, muitas de classes mais altas, onde o uso deste tipo de tecnologia disparou. Elas se recusaram a revelar seus nomes, por conta de segurança e porque algumas ainda estavam no processo de deixar seus abusadores. Suas histórias foram corroboradas por pessoas que trabalham com violência doméstica e advogados que estão lidando com seus casos.
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Todas disseram que o uso de dispositivos conectados à internet por seus agressores era invasivo – uma delas chamou esse tipo de abuso de “guerra na selva”, porque era difícil entender de onde os ataques vinham. E também descreveram a situação como uma assimetria de poder, porque os parceiros tinham controle sobre a tecnologia – e por extensão, sobre elas.
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Uma das mulheres, médica no Vale do Silício, disse que o marido, um engenheiro, “controla o termostato. Controla as luzes. Controla a música. Relacionamentos abusivos têm a ver com poder e controle, e ele usa a tecnologia para isso”.
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Ela contou também que não sabia como toda essa tecnologia funcionava ou mesmo o que precisava ser feito para remover o marido das contas. Mas disse que sonhava em conseguir em breve retomar o controle sobre essa tecnologia.
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“Tenho um plano de saída específico que estou implantando, e uma das minhas fantasias é ser capaz de dizer, ‘OK Google, toque qualquer música que eu queira’”, desabafou. Já seu plano com o termostato inteligente era “arrancá-lo da parede”.
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Quando uma vítima desinstala os dispositivos, isto pode resultar em uma escalada dos conflitos, disseram os peritos. “O agressor pode ver que foi desativado o que pode desencadear uma violência pior”, disse Jennifer Becker, advogada no Legal Momentum, um grupo de defesa que atua sobre os direitos das mulheres.
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Eva Galperin, diretora de cibersegurança da Electronic Frontier Foundation, grupo de direitos digitais, disse que a desabilitar os dispositivos também pode excluir ainda mais uma vítima. “Elas não têm certeza de como seu agressor está controlando tudo aquilo e não necessariamente conseguem entender o processo, porque não sabem como esses sistemas funcionam. O que acabam fazendo é desligar tudo, o que as deixa ainda mais isoladas”, disse Galperin.
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Vários agentes da lei disseram que a tecnologia era muito nova para aparecer em seus casos, embora suspeitassem que isso de fato estivesse ocorrendo.
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“Tenho certeza de que está de fato acontecendo. Faz todo o sentido quando você sabe o que sei sobre a psicologia dos suspeitos de violência doméstica. A violência doméstica está em grande parte ligada ao controle – as pessoas pensam logo em violência física, mas há muita violência emocional, também”, disse Zach Perron, capitão do departamento de polícia em Palo Alto, Califórnia.
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