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Veja publicação original: Elza Soares faz do show ‘Deus é mulher’ um forte grito feminino de resistência contra a opressão
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Por Mauro Ferreira
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“Vamos gritar!”. “Tem que gritar muito!”. Repetidas diversas vezes por Elza Soares ao longo da estreia nacional do show Deus é mulher, essas frases traduzem com precisão o sentido político do espetáculo que entrou em cena na noite de ontem, 31 de maio, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo (SP), cidade natal da banda orquestrada sob a direção musical do baterista Guilherme Kastrup.
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Se o álbum Deus é mulher é grande disco de aura punk com o qual a cantora carioca levanta a voz para dizer o que se cala, o show reproduz e amplia o discurso altivo desse repertório empoderado. Elza Soares faz do show Deus é mulher um (forte) grito feminino de resistência contra a opressão. O recado é dado através das letras contundentes das 16 músicas do roteiro e também pelas falas inseridas por Elza entre essas músicas.
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Ora improvisadas, ora lidas no teleprompter (como as letras das músicas), as falas da cantora precisam ter o tom ajustado ao longo da turnê nacional – que chega à cidade do Rio de Janeiro (RJ) em agosto, em apresentação no Teatro Oi Casa Grande – porque, na estreia, por vezes soaram como discurso ensaiado, quase panfletário, embora sempre verdadeiro. Porque o lugar de fala de Elza Soares é o Brasil negro, pobre, marginalizado. O país oprimido citado na letra-manifesto de O que se cala (Douglas Germano, 2018) que abre o show.
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Esse país é o Brasil onde, há 60 anos, emergiu essa voz divina que sempre falou alto, inicialmente entre o samba e o jazz, mas desde sempre com atitude roqueira que ganhou ao longo da vida uma aura punk reiterada no tom de Deus é mulher, disco e show que descendem do universo musical do anterior A mulher do fim do mundo (2015) sem deixar de ter assinatura própria.
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Por mais que o impacto de Deus é mulher em cena seja naturalmente amortecido pelo do apocalíptico show anterior, a força gutural de Elza continua a mesma, soberana e já mítica. Tanto que a cantora está posicionada em cena como divindade, entronizada no cenário arquitetado por Anna Turra com estrutura de aparência metálica que evoca fios, arames e teias que bem podem simbolizar os feixes nervosos que eletrizam as 16 músicas cantadas por Elza com a força da raça e com a vitalidade rara dessa cantora dura na queda que está prestes a festejar 88 anos de vida neste mês de junho de 2018.
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Sob a caprichada direção geral de Pedro Loureiro e Juliano Almeida, o show Deus é mulher reprocessa – com a timbragem noise da banda formada por Guilherme Kastrup (bateria) com Mestre DaLua (percussão), Rafa Barreto (guitarra e sintetizadores), Rodrigo Campos (cavaquinho e guitarra) e Luque Barros (baixo e sintetizadores) – as 11 músicas do álbum homônimo lançado em maio, adicionando ao roteiro quatro composições do emblemático disco anterior A mulher do fim do mundo.
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Luz vermelha (Kiko Dinucci e Clima, 2015) reacende a chapa quente do show anterior com a mesma chama incandescente que ressuscita Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant, 2015), perfilando novamente a personagem-título – travesti imersa no submundo das drogas e do crime – com a presença magnética do vocalista Rubi.
Indo muito além do que se espera de um backing-vocal, a propósito, Rubi põe voz e atitude no canto complementar de músicas como Um olho aberto (Maria Portugal, 2018), evocando no visual e no gestual um deus afro na cena protagonizada pela deusa-mulher que se lava nas águas revoltas de Banho (Tulipa Ruiz, 2018) – música repetida no fecho do bis com as adesões de Mariá Portugal (convidada como baterista e vocalista) e das 18 ritmistas do grupo afro de percussão e voz Ilú Obá de Min.
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A deusa-cantora recai firme no samba Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2018), para levantar a voz contra a violência doméstica que cala mulheres tanto no Brasil periférico quanto no círculo das elites. O grito feminino dado por Elza no show Deus é mulher se volta contra a violência ao mesmo tempo em que ecoa o direito à liberdade e ao gozo. “Quero sentir cheiro de sexo”, brada a cantora com a mesma altivez com que, cheia de si, cai no passo erotizado do frevo Eu quero comer você (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2018), número em que o toque do cavaquinho de Rodrigo Campos soa frenético como o de uma guitarra baiana.
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Nesse roteiro antenado, o riso sarcástico de Hienas na TV (Kiko Dinucci e Clima, 2018) sintoniza o poder do verbo de Língua solta (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2018), a firmeza inabalável de Credo (Douglas Germano, 2018), a energia roqueira e feminina que move Deus há de ser (Pedro Luís, 2018) – número que a bateria de Mariá Portugal rufa com a imponência de tambores – e a cadência do samba Clareza (Rodrigo Campos, 2018). Porque todos os ritmos se irmanam na pulsação e na tensão noise da banda, hábil ao amplificar o discurso punk que sai da voz abrasiva de Elza.
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A entrada em cena do grupo afro paulistano Ilú Obá de Min em Dentro de cada um (Luciano Mello e Pedro Loureiro, 2018) evoca forças ancestrais e eleva o poder de sedução do show a níveis estratosféricos. Na sequência, o grupo repõe A carne(Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) na balança com outra pegada, norteada pela turma liderada por Kastrup.
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Com o reforço figurativo de dois orixás que baixam no palco-terreiro nas peles de dois figurantes, Exu nas escolas (Kiko Dinucci e Edgar) arrepia e mantém o show na pressão, com impacto ascendente e com Rubi vociferando o rap que, na gravação do disco Deus é mulher, é ouvido na voz do autor, o paulistano Edgar. O barulho intencionalmente feio da banda realça a ardência do grito que Elza deixa parado no ar ao longo de todo o show. “Somos todos negros”, brada a deusa-mulher em determinado momento. “Deus é mãe”, reforça Elza no arremate, fazendo a voz da divindade feminina ecoar no palco.
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Com a pele preta e com a bossa negra que pôs bebop e balanço no samba a partir da década de 1960, a deusa-mulher do fim do mundo canta contra toda forma de poder opressivo até o minuto final desse show cheio de vida e luz (da mesma Anna Turra que assina a cenografia e a direção de arte do espetáculo). Sim, há luz ao longo e no fim desse túnel por onde passa e grita Elza Soares no necessário show Deus é mulher. (Cotação: * * * * 1/2)
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♪ Eis o roteiro seguido em 31 de maio de 2018 por Elza Soares na estreia nacional do show Deus é mulher no teatro do Sesc Vila Mariana, na cidade de São Paulo (SP):
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1. O que se cala (Douglas Germano, 2018)
2. Banho (Tulipa Ruiz, 2018)
3. Um olho aberto (Maria Portugal, 2018)
4. Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015)
5. Eu quero comer você (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2018)
6. Língua solta (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2018)
7. Hienas na TV (Kiko Dinucci e Clima, 2018)
8. Clareza (Rodrigo Campos, 2018)
9. Luz vermelha (Kiko Dinucci e Clima, 2015)
10. Benedita (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant, 2015)
11. Dentro de cada um (Luciano Mello e Maria Portugal, 2018) – com Ilú Obá de Min
12. A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) – com Ilú Obá de Min
13. Exu nas escolas (Kiko Dinucci e Edgar) – com Ilú Obá de Min
14. Credo (Douglas Germano, 2018) – com Maria Portugal
15. Deus há de ser (Pedro Luís, 2017) – com Mariá Portugal
Bis:
16. A mulher do fim do mundo (Romulo Fróes e Alice Coutinho, 2015)
17. Banho (Tulipa Ruiz, 2018) – com Ilú Obá de Min e Mariá Portugal
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