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Nati Gaspa: A professora que leva a poesia das ruas para a sala de aula

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Veja publicação original: Nati Gaspa: A professora que leva a poesia das ruas para a sala de aula

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Nas aulas de inglês na periferia e nos versos crus declamados nas praças de Porto Alegre, o papo com ela é reto: “Sempre que eu escrevo é para botar alguma coisa para fora”.

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“Pra quem eu dou, aonde eu tô, pra onde eu vô, com quem eu ando

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importa pra quem, pra quê, por quê?

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bem na moral, não importa pra ninguém

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se eu corto pros dois lados, se eu amo mina ou mano

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se tem noite que eu vô pro baile (e no baile eu chego atirando)

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não importa pra ninguém, meu amigo

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e eu sei que aqui tem uma pá de mina que concorda comigo

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e pra quem tá de lado, jogado, se sentindo julgado.

 

 falou, valeu, esse é o meu recado:
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dos meus orgasmos, cuido eu”

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Uma poesia bruta, repleta de crueza e pincelada de palavrões, ditos em voz bem alta, de queixo erguido e peito aberto. Assim é o slam, movimento que, há cerca de um ano, chegou às ruas de Porto Alegre pela voz de coletivos que organizam as disputas periodicamente.

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Nathalia Gasparin, ou Nati Gaspa, de 27 anos, integra a organização de dois destes coletivos, o Slam Peleia e o Slam do Trago (que é sempre em frente a um bar), e participa, como competidora, de vários outros, como o Slam Chamego, o Slam das Minas e o Slam Liberta. Professora de inglês da rede pública municipal, conheceu e se encantou pelo slam há cerca de um ano, quando conheceu o trabalho da slammer paulista Mel Duarte. Em seguida, a própria esteve em Porto Alegre, e Nati foi assisti-la. Nunca mais largou. No mês seguinte, Nati venceu o primeiro campeonato, com um poema sobre a ausência paterna, na véspera do Dia dos Pais. Uma das principais características do slam é a autoreferência, falar das próprias experiências e dores, e o poema que “falava daquela coisa de ficar esperando, com a malinha do lado, e ele nunca vir”, lembra Nati, “reverberou entre as gurias”.

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O slam é uma forma de a gente (meninas) compartilhar experiências, e assim fazer os guris também refletirem sobre o que passamos.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Professora de inglês da rede pública municipal, conheceu e se encantou pelo slam.

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As regras são poucas: é preciso ter três poemas (um para cada fase do campeonato), falar por no máximo três minutos e não usar nenhum instrumento, objeto ou figurino na declamação. Decorar não é obrigação, mas a expressão corporal conta muito. A crítica social é uma constante nas poesias. Narrativas de racismo, machismo, preconceitos de todo o tipo recheiam as arenas. “Às vezes a gente sai mal do slam, escorre sangue!”. Cada evento acontece em um dia diferente, geralmente uma vez por mês, em lugares abertos, onde chega junto quem quiser – praças, largos, embaixo de viaduto. Tem os slams da zona central e os movimentos que acontecem em bairros periféricos – na Restinga, onde Nati dá aulas na Escola Municipal Nossa Senhora do Carmo, tem o Slam da Tinga. E logo vai ter o Slam do Carmo também.

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Sempre que eu escrevo é para botar alguma coisa para fora. Dá um alívio!

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Nas aulas de inglês na periferia, o papo com ela é reto.

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Nati apresentou o slam a seus alunos do quarto ao nono ano, incentivando-os a também escrever. “A gente leva as paixões para a escola, e isso é que faz os alunos gostarem da escola e gostarem da gente”. Eles começaram a stalkear a professora, descobriram seus vídeos na internet e sempre pedem que ela declame ao final das aulas. Nati levou uma turma para uma noite de competição e se emocionou ao ver adolescentes de 13, 14 anos, declamando. Logo ganhou o apoio dos outros professores para organizar um campeonato dentro da escola – será no dia 4 de junho, com alunos do sétimo ao nono ano, durante o turno letivo.

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Peguei todas as vezes que ouvi um não e coloquei na panela de pressão

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ferveu a panela cheia de culpa

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pela passada de mão

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pela roupa que eu uso

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pelo medo de abuso

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por todas as vezes que pensei em andar na rua sozinha

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e ouvi meu próprio não

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É nas quase duas horas de ônibus entre a casa e a escola que a “sôra” costuma escrever suas poesias. Este é um momento fértil para a jovem que escolheu a faculdade de Letras porque “sempre quis trabalhar com a linguagem”, e que quis ser professora para ser instrumento de “transformação social”. Nati é a primeira de sua família (ela tem quatro irmãos) que cursou uma faculdade. Entrou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no primeiro ano em que a instituição reservou cotas para alunos egressos do ensino público. Era tão radical que, formada, queria ser professora de português exclusivamente – “inglês, nem pensar, muito elitista”. Deu aulas em uma escola particular, mas escolheu ficar só com o serviço público. Do ensino privado, trouxe o nível de expectativa elevado: “quero que meus alunos saibam tanto inglês quanto eles”.

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Enchi os olhos de lágrima quando uma aluna veio me mostrar uma poesia. Era sobre se cortar. Foi o jeito que ela conseguiu para expressar o que essa mutilação significa.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Nati apresentou o slam a seus alunos do quarto ao nono ano, incentivando-os a também escrever.

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A proximidade e identificação entre ela e os alunos têm, no entanto, um preço. Conhecer os problemas de abuso, violência e preconceito que as crianças enfrentam e não poder interferir é dolorido. “Eles me procuram para conversar porque sabem que eu não vou julgar. Todos os professores passam por uma fase em que querem adotar os alunos, mas temos de aprender a não trazer os problemas para casa”. Para isso, também servem a terapia e o slam. “Muito do que eles me contam eu levo para a minha poesia, porque é uma forma de me livrar um pouco.”

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A gente às vezes é chamado para ser a cota dos eventos: os únicos negros, as únicas mulheres a se apresentar pra gente rica.

CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Nati logo ganhou o apoio dos outros professores para organizar um campeonato dentro da escola.

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Com a popularização do slam também vieram os convites para participar de festas descoladas, eventos culturais, seminários sobre inovação. Nati sempre recebe essas propostas com um pé atrás. Muitos desses eventos, observa ela, cobram ingressos caros e sequer oferecem ajuda de custo para o transporte dos poetas. “Dizem que é em troca da visibilidade. Mas, poxa, pagar para se apresentar é f…”. No último episódio desses, o coletivo negociou pelo menos apoio para o deslocamento até o evento. “Porque a gente também tem que ocupar esses espaços, dizer: olha, a gente quer mais que a cota”.

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Hoje é comigo a lição

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quero falar com os que vêm de lá, vô te dar a matéria, papel e caneta na mão

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quem cresceu lá, viveu lá e só se vê naquele colégio

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hoje ouve a sôra

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o que lá te ensinaram a chamar de meritocracia, aqui a gente nem precisa ensinar

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todo mundo sabe

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é privilégio

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CAROLINE BICOCCHI/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
“Sempre que eu escrevo é para botar alguma coisa para fora”.

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Ficha Técnica #TodoDiaDelas

Texto: Isabel Marchezan

Imagem: Caroline Bicocchi

Edição: Andréa Martinelli

Figurino: C&A

Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC

 

 

 

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