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Veja publicação original: Ainoã Cruz: A professora de violino que leva a sério a máxima ‘aprende quem ensina’
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Quando tinha apenas seis anos de idade, do sofá de casa em Salvador, Ainoã Cruz, de 24 anos, viu um grupo de rapazes se apresentar. Não, não eram os Backstreet Boys, tampouco o N’Sync – nem adianta tentar trazer para um viés nacional e apostar no Bro’z porque você também vai errar feio. Os meninos que a encantaram não faziam dancinhas ou apostavam em falsetes na voz para chamar a atenção. Na verdade, se vestiam de maneira super formal e portavam instrumentos de madeira os quais a menina jamais havia visto na vida. Pasmem: o grupo era a Família Lima.
A imagem do desconhecido foi o suficiente para a garota falar: “Eu quero aprender a tocar isso”. O instrumento, o violino, que era identificado pela mãe, Pedrina, como “aquele cujo som parece o de um mosquito”, povoou a imaginação da garota até os oito anos, quando após muita insistência conseguiu finalmente convencer a matriarca a matriculá-la em uma escola de música.
Eu nunca tinha visto uma orquestra na vida, a primeira que eu vi, foi logo essa: a orquestra na qual eu passei a tocar. Eu não tinha internet em casa, só televisão. E na televisão aberta não passa essas coisas.
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“Não tinha ninguém na minha família que tocava ou cantava. Como eu era muito pequena, ela achava que era coisa de criança, que iria passar. Aí minha mãe falou: ‘ah, ela faz um semestre para experimentar. Vou comprar o violino, vou gastar dinheiro, mas ela vai deixar de me perturbar’. Só que aí eu fiz um semestre, dois, três, quatro, cinco e não parei mais” conta.
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Conseguiu, através de uma tia, um desconto para estudar violino numa escola adventista da capital baiana, onde permaneceu até os 14 anos. Já enjoada das aulas que lá levava, ouviu de um vizinho lá do bairro do Cabula que uma “orquestra jovem” havia chegado à Bahia e estava selecionando músicos para um novo projeto. Foi assim que surgiu um casamento que já dura dez anos.
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Sem nunca ter visto uma orquestra na vida, caiu de pára-quedas no NEOJIBA, que busca promover o desenvolvimento e a integração social prioritariamente de crianças, adolescentes e jovens em situações de vulnerabilidade através do ensino e da prática musical coletivos – fundado pelo maestro e pianista Ricardo Castro, e inspirado no programa El Sistema, da Venezuela.
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Sobre o projeto, também nada sabia: “Só sei que fiz essa audição, passei e comecei a ir para os ensaios. Eu nunca tinha visto uma orquestra na vida, a primeira que eu vi foi essa: a orquestra na qual eu passei a tocar. Eu não tinha internet em casa, só televisão. E na televisão aberta não passa essas coisas”.
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Eu já dava aulas particulares, fazia monitoria, mas tinha muito medo de dar aula, aula mesmo, porque sabia que, se fizesse alguma coisa de errada, a criança poderia não querer nunca mais tocar por minha causa.
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Foi aprovada, passou a ter ensaios todos os dias, a conhecer gente para caramba e a se dar conta de que “não tocava nada”. “Essa talvez tenha sido a minha primeira crise existencial, eu descobri que eu tinha que estudar muito. Tinha um monte de coisa na partitura, que eu achava que sabia ler, mas que, na verdade, não sabia. Foi aí que a orquestra passou a tomar uma grande parte da minha vida”.
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Na hora de escolher a faculdade, no auge dos seus 17 anos, por precaução, optou por Licenciatura em Música em paralelo com o curso de Engenharia Sanitária e Ambiental. A jornada dupla permaneceu até que ela assistiu, em um laboratório de educação em música, uma aula de samba reggae, ministrada por um de seus colegas. “Eu toquei xilofone, a gente solfejou, tocou, leu partitura, tudo de uma maneira descontraída, divertida, leve. Foi como se eu estivesse numa aula feita para mim, só que quando criança. A partir desse dia eu pensei: pronto, é isso que eu quero fazer para a minha vida”.
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O novo anseio era mais óbvio do que Ainoã imaginava. Na verdade, ele esteve sempre ali, presente na própria filosofia da organização social: “aprende quem ensina”. Os alunos são constantemente provocados a repassar adiante o que aprendem, ajudar os colegas que possuem alguma dificuldade a qual eles já solucionaram e a se tornarem professores ou monitores no próprio programa. “Eu já dava umas aulas particulares, fazia monitoria, mas tinha muito medo de dar aula, aula mesmo, porque sabia que, se fizesse alguma coisa de errada, a criança poderia não querer nunca mais tocar por minha causa”.
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Ensinar é a coisa que eu mais gosto de fazer, não é nem tocar. Monto a minha aula pensando na aula que eu queria ter quando era criança, para que as alunas já saiam da sala pensando em voltar.
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Se tornou musicista formada, e foi coordenar um dos núcleos da organização, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, em substituição a uma colega que havia tirado licença maternidade. Quando a amiga voltou, ficou sabendo que a NEOJIBA iria inaugurar uma sede no bairro da Liberdade – é, aquele onde fica a sede do famoso Ilê Ayiê -, e logo se disponibilizou para ensinar violino e musicalização infantil no local.
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Andar pelo local sem ouvir pró Ainoã pra cá, pró Ainoã pra lá, é tarefa impossível. A menina ensina 113 alunos, sendo que 83 deles são apenas de cordas – divididos entre violino, violoncelo e viola. O que faz uma professora de música clássica ser tão querida e disputada? Não tem muito segredo: “Elas são crianças. Crianças têm que correr, brincar, pular. Para elas é muito chato duas horas sentadas tocando violino”.
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Por isso, cada aula ministrada por ela é uma surpresa. Em algumas, ritmos brasileiros e da Bahia são trazidos para uma nova roupagem, há aulas nas quais exercícios de respiração e yoga são repassados; em outras, o instrumento utilizado é o próprio corpo – isso quando a didática não é interrompida para que a turma toda entre na dança. “As pessoas ficam muito surpresas quando veem as crianças saindo da aula felizes, sorridentes. Não é aquele ensino quadrado, no qual o professor não aprende nada com o aluno. Eu aprendo com as minhas crianças todos os dias”.
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As pessoas ficam muito surpresas quando veem as crianças saindo da aula felizes, sorridentes. Não é aquele ensino quadrado, no qual o professor não aprende nada com o aluno. Eu aprendo com as minhas crianças todos os dias.
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Entre as coisas que aprendeu com os pequenos, uma se destaca: a autoaceitação e autoafirmação como negra. “A gente tinha um problema muito grande de auto estima no núcleo. As crianças tinham dificuldade de se reconhecerem como negras. Isso me fez refletir muito sobre como é importante mostrar que elas são bonitas do jeito que são, porque para elas, os professores são sempre lindos”.
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Ainoã, que sempre utilizou de técnicas de alisamento, resolveu passar por transição capilar, para mostrar às crianças, predominantemente pretas, “como temos coisas em comum e que eu tenho muito orgulho de ser negra”. Além da mudança física, o repertório das aulas foi incrementado com ritmos de matrizes africanas e um concerto em comemoração ao Dia da Consciência Negra foi realizado pelo grupo.
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No início desse ano, quando comemorar uma década na organização, foi convidada para ensinar por três meses no Xiquitsi, um programa semelhante situado em Maputo, no Moçambique. Se aqui no Brasil, com várias orquestras sinfônicas espalhadas pelo território, Ainoã quando criança jamais havia visto uma até se tornar membro de uma, imaginem a emoção dos alunos daquele país que não possui uma orquestra sequer para contar história.
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A fundadora da organização lá na África, Eldevina Materula, é professora do NEOJIBA desde 2007, e acompanhou de pertinho o crescimento e a popularidade da aluna soteropolitana no ofício do ensino. Quando surgiu a oportunidade do intercâmbio, não cogitou outro nome. Lá, Ainoã deu aulas de violino, viola e iniciação musical, além de ministrar oficinas com os monitores para prepará-los para as aulas, ensinando-os como fazer um plano de aula ou como começar o trabalho com uma criança que nunca tocou o instrumento.
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Na Suíça, por exemplo, eles tocam bem, têm uma super estrutura, instrumentos caríssimos adaptados para as crianças, mas não têm o brilhos nos olhos que nem a gente tem. Aqui há paixão – dos dois lados: do alunos e do meu.
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“Foi a experiência mais louca da minha vida. Eu fui para todas as turnês da NEOJIBA até 2015, que foi quando eu parei de tocar para ensinar, mas emoção que me tomou em Moçambique foi incrível. Poder contribuir com o que eu aprendi aqui, lá, foi surreal. Eles são muito tímidos, e dava para ver eles se soltando aos poucos por causa da música. Hoje, se me perguntarem onde está meu coração, eu digo que metade está aqui, e a outra no Xiquitsi”, se derrete.
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De volta ao núcleo da Liberdade, as semelhanças entre os alunos de ambas as escolas não para de povoar a sua cabeça – não à toa, afinal Salvador é a cidade mais negra do Brasil. “O que a gente consegue fazer musicalmente aqui e lá é muito raro. Na Suíça, por exemplo, eles tocam bem, têm uma super estrutura, instrumentos caríssimos adaptados para as crianças, mas não têm o brilhos nos olhos que nem a gente tem. Aqui há paixão – dos dois lados: dos alunos e do meu”.
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Clara Rellstab
Imagem: Juh Almeida
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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