Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Silvina Ocampo: As imposições de gênero na ficção
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Por Paula de Paula
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Traduzimos trechos inéditos da autora argentina para mostrar como alguns padrões impostos às mulheres no século passado seguem atuais
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“Eu coloquei tudo o que tenho no que escrevi. Porque, para mim, escrever foi a coisa mais importante que me aconteceu”. A frase da escritora argentina Silvina Ocampo, em entrevista ao jornalista e escritor Mempo Giardinelli, demostra muito do que foi sua vida, uma vida de escrita. Apesar de todo o tempo dedicado ao fazer literário (de 1937 até sua morte, em 1993) a escritora argentina acabou sendo ocultada entre os sucessos da irmã Victoria Ocampo, do marido Bioy Casáres e do amigo Jorge Luís Borges. Por, isso foi pouco conhecida durante seus mais de cinquenta anos de trabalho, que incluíram a produção de inúmeros contos, um romance, uma peça de teatro e diversos livros de poesia.
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Mesmo com o pouco reconhecimento em vida, sua obra atualmente é considerada digna de estudo e publicação, principalmente internacional, e segue produzindo ressonâncias de uma vida inteira dedicada à literatura através de republicações e publicações inéditas de um vasto arquivo póstumo inexplorado. No Brasil, no entanto, ela ainda é praticamente desconhecida e não possui nenhuma obra traduzida para a língua portuguesa.
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Uma das marcas de seus mais de 150 contos é narrativa que começa a partir da descrição de uma situação mais ou menos comum em que, de repente, os acontecimentos parecem se afastar da realidade por meio de um deslocamento que tem como base toques de fantasia, do grotesco, da metamorfose, da morte ou do absurdo. “Ah! Eu me afasto da realidade. Ainda que para dar realismo precise voltar a ela. Sim, eu me afasto, não me fixo nela, mas depois volto”, disse Silvina na entrevista citada acima.
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O principal cenário de suas criações é a casa burguesa e, entre os personagens predominantes, estão as empregadas, costureiras e babás; e as crianças. Silvina parece encontrar nos chamados “personagens de segunda classe” um meio de atingir o que está por trás da realidade vista e vivida e fazer com que essas quebras mostrem, também, a quebra dos estereótipos que eram esperados para as mulheres daquela época e que, infelizmente, seguem com ecos na atualidade.
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Mesmo sem nunca ter afirmado ser feminista, o contato da autora com a teorias deste movimento de meados do século XX é evidente, já que a primeira edição de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, foi traduzida para o espanhol e chegou a Buenos Aires em 1958. Segundo José Amícola, professor da Universidad Nacional de La Plata, no artigo Las nenas terribles de Silvina Ocampo y Marosa di Giorgio (2015), as irmãs Ocampo eram sensíveis às mudanças que se anunciavam desde a França e a Inglaterra em relação à questão feminina, e, por isso, não é imprudente pensar os contos de Silvina Ocampo como uma leitura especial que coloca no discurso o que a mulher percebe diante do mundo.
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Um dos assuntos priorizados nos contos de Silvina é a maternidade e a ideia de que todas as mulheres teriam um instinto nato pelo cuidado e pelo afeto maternal. Em El retrato mal hecho (O retrato mal feito) – conto publicado no seu primeiro livro, Viaje Olvidado, em 1937 – a mãe claramente odeia os filhos e a babá – que deveria cuidar da criança – acaba matando-a, fazendo cair por terra a ideia de que o gerar e o cuidar seriam inerentes ao gênero feminino. O trecho a seguir deixa claro como essa desconstrução é feita:
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“As crianças deviam gostar de se sentar sobre as amplas saias de Eponina porque ela tinha vestidos como poltronas de braços arredondados No entanto, Eponina, fechada nas águas negras de seu vestido de moiré, era afastada e distante; metade do rosto estava apagado mas conservava movimentos sóbrios de uma estátua em miniatura. Poucas vezes as crianças tinham sentado sobre as saias, por culpa do desaparecimento dos joelhos e dos braços que, com frequência involuntária, deixava cair.
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Detestava as crianças, detestava-as uma por uma à medida em que iam nascendo, como ladrões de uma adolescência que ninguém leva presos, a não ser os braços que os fazem dormir. Os braços de Ana, a empregada, eram como berços para seus filhos travessos.”
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(Tradução livre por Paula de Paula)
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Outra questão que segue muito cara às mulheres e que aparece na constística da autora é o tema da moda e das aparências, do que era esperado para as mulheres da época. Duas narrativas que podem ser citadas nesse sentido são: El Vestido de Terciopelo (O Vestido de Veludo) de 1959 e Las vestiduras peligrosas (As vestimentas perigosas), de 1970. Ambos os textos mostram costureiras designadas a fazer roupas específicas para as senhoras, sendo que, apesar dos dois contarem com uma narração em terceira pessoa, a narradora do primeiro é a própria costureira e a do segundo é um criança que acompanha a modista até a casa da cliente.
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Em El Vestido de Terciopelo, a cliente Cornelia recebe em sua casa Casilda, a costureira que lhe traz o vestido para que a madame faça a última prova. Sua viagem à Europa dependia dessa roupa, ela iria a qualquer momento quando o vestido estivesse pronto e, durante o que seria a última prova da roupa – que contém um dragão bordado com lantejoulas –, esta começa a sufocar a cliente e acaba por matá-la:
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“– Agora tirarei o vestido – disse a senhora.
Casilda a ajudou a tirá-lo desde de a bainha com as duas mãos. Forçou inutilmente durante alguns segundos, até que voltou a arrumar o vestido.
– Terei que dormir com ele – disse a senhora na frente do espelho, olhando seu rosto pálido e o dragão que tremia sobre as batidas do seu coração.
– É maravilhoso o veludo, mas pesa – levou a mão até a face. Era uma prisão. Como sair? Deveriam fazer vestidos de tecidos imateriais como o ar e a luz e a água.
– Eu aconselhei seda natural – protestou Casilda.
(…)
A senhora caiu no chão e o dragão se retorceu. Casilda se inclinou sobre seu corpo até que o dragão ficou imóvel. Acariciei de novo o veludo, que parecia um animal. Casilda disse melancolicamente:
– Morreu! Deu tanto trabalho fazer esse vestido, tanto trabalho!”
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(Tradução livre por Paula de Paula)
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Já Vestiduras Peligrosas narra a história de uma jovem rica, Artemia, que “vivia para estar bem vestida e arrumada” e desenhava suas próprias roupas, que eram executadas pela costureira Régula Peluca. As vestimentas eram consideradas extremamente provocantes pela costureira e no dia seguinte de cada noite em que a senhora saía com a roupa exclusiva, saía no jornal a notícia que uma jovem em outro lugar do mundo fora violada usando a mesma roupa, e isso deixava Artemia enfurecida. Até que a costureira tem a ideia de vestir a moça de “homem” com uma calça e uma camisa xadrez:
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“Aconselhei Artemia que colocasse uma calça escura como de homem. Uma vestimenta sóbria, que ninguém podia copiar, porque todas as jovens vestiam. Má hora para me escutar. Com muita felicidade e rapidez, fiz a calça e uma camisa xadrez que cortei e costurei rapidamente. Vê-la assim, vestida de ‘homenzinho’ me encantou, porque com essa imagem… Quem não fica bem com uma calça?
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Quando saiu de casa, me abraçou como nunca havia feito. Talvez tivesse pensado que não voltaria a me ver. Quando cheguei no trabalho, na manhã seguinte, um carro de patrulha da polícia estava estacionado na frente da porta. Esse silêncio, essa luz cruel da manhã, me anunciaram algo horrível que depois soube e li nos jornais: uma patota de jovens amorais estupraram Artemia às três da manhã em uma rua escura e depois a esfaquearam por trapaceira.”
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(Tradução livre por Paula de Paula)
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Esta pequena análise mostra como a autora prioriza a questão do corpo da feminino, o corpo da mãe que gera os filhos, mas que não os acolhe, o corpo de Cornélia que é morta pelo vestido a partir das imposições do que é a moda e o corpo de Artemia, que não se livra nem mesmo por meio de um “disfarce” masculino de ter sua corporeidade violada. Na nossa leitura, portanto, a obra de Silvina segue sendo atual, já que a partir da ficção a autora consegue trazer a tona questões que permeiam a vida cotidiana das mulheres, como a imposição dos estereótipos de gênero, o cumprimento de padrões de moda e beleza e a “obrigatoriedade” do instinto maternal.
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