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Veja publicação original: Fazendeira, cavaleira e cientista: O lugar de Betty Cirne-Lima no mundo do agronegócio
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Entre o laboratório e o pasto, ela desafia as convenções do trabalho no campo: “As mulheres à frente de negócios rurais ficam com a parte do negócio que os homens não querem”.
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Lá pelos 12 anos de idade, Elizabeth Cirne-Lima tomou uma decisão: seria uma mulher independente, que “podia dizer o que pensasse e fazer o que quisesse”. Foi o que fez. Hoje, aos 56 anos, ocupa espaços onde mulheres ainda são minoria: é criadora de gado, cavaleira e cientista. “Meu pai é um cara ‘supermarcante’ na minha vida, mas era difícil ser filha dele e ter uma identidade própria. Eu queria estar em um lugar onde a minha história não se confundisse com a dele”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil.
Filha de uma artista plástica e um zootecnista – o ex-ministro da Agricultura Luís Fernando Cirne-Lima -, a menina apaixonada pelo campo deixou o Rio Grande do Sul para trás aos 19 anos. Foi estudar biologia no Rio de Janeiro.
Para ser diferente das regras sociais daquela época, trabalhar e ter meu próprio dinheiro era importante, então decidi que queria independência econômica. Comecei a trabalhar aos 17 anos.
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No Rio, Betty, casou, teve dois filhos e consolidou uma carreira acadêmica – é mestre e doutora em bioquímica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já orientou mais de 70 dissertações e teses, dá aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordena o laboratório de Embriologia e Diferenciação Celular da universidade e o escritório de inovação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. É uma referência quando o assunto são células-tronco e cultura de células.
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Foi a banca de defesa de seu doutorado, no começo dos anos 1990, o gatilho que traria Betty de volta ao pampa. “Eu convidei meu pai para assistir a minha defesa, no Rio, e ele não foi. Eu tive um chilique! Naquele dia, estava lavando roupa suja no telefone às sete horas da manhã; às nove eu defendi minha tese; às dez, meu pai foi parar no hospital”. A crise não foi grave (nem a emocional, nem a de saúde). Três dias depois, Luís Fernando chamaria a filha de volta a Porto Alegre com uma proposta: assumir a fazenda São Bento, no município de Bom Jardim da Serra, no lado catarinense da serra gelada que divide o Rio Grande do Sul e Santa Catarina – tão alto que de lá se vê o mar.
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As mulheres à frente de negócios rurais ficam com a parte do negócio que os homens não querem. Eu fiquei com a fazenda menos produtiva, mais longe, no lugar mais frio.
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Dezoito anos depois de mudar-se para o Rio, retornou para o Rio Grande do Sul e, desde então, administra o negócio sozinha – com o apoio de outro produtor e parceiro local, que cuida da 500 cabeças de gado e 20 cavalos crioulos no dia a dia, já que Bom Jardim da Serra fica a seis horas de carro de Porto Alegre, onde ela mora. “Voltei para atender a um sonho, mas também porque já tinha construído a minha própria história.”
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Quando não está com o pé no estribo, Betty passa os dias em um ambiente fechado, com luz artificial, sob condições extremamente controladas que em nada lembram a rudez do campo. “Não tenho vontade de escolher um ou outro ambiente. Não quero transformar isso aqui em um laboratório e nem o laboratório em um galpão”, diz ela, que recebeu a reportagem do HuffPost Brasil para um carreteiro no parque de Exposições Assis Brasil, onde acontece todos os anos a Expointer, maior feira agropecuária da América Latina.
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Os homens da minha geração não são preparados para lidar com mulheres independentes.
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Presidente da associação de criadores de gado da raça devon, Betty atua desde 2004 na liderança de organizações de produtores rurais. Há cerca de 15 anos, é a única mulher membro dos Cavaleiros da Paz, grupo que se reúne para longas cavalgadas no Brasil e no Exterior. Na primeira cavalgada com eles, um episódio desarmou a desconfiança do “macherio”: “Teve um cavalo que disparou com uma carroça e fugiu do grupo. Eu corri com meu cavalo e segurei o animal pelo buçal. Ali, eles viram que eu sabia montar, tinha coragem e era uma cavaleira mesmo”. Cavaleira que venceu um campeonato gaúcho e ficou em terceiro no brasileiro de Rédeas, em que homens e mulheres disputam juntos. “Tiro 10 dias de férias todo ano para fazer uma viagem a cavalo. Adoro acampar, dormir a campo, me dou superbem”.
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A primeira reação é acharem que eu vim cuidar desse negócio porque não tinha mais o que fazer. O machismo se manifesta no descrédito, a priori.
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Apesar do estranhamento e do preconceito que desafia há anos, foi apenas em 2016 que Betty descobriu a sororidade entre as mulheres do campo. “Nunca tinha me envolvido com movimentos feministas, até ser convidada a falar em um evento do Dia da Mulher e me obrigar a pesquisar sobre isso. Sei o quanto ralei e as dificuldades que enfrentei, mas não tinha noção que isso se repetia”. Hoje, é assídua no Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio. “Começamos a construir programas de apoio para que a estrada de novas mulheres no setor seja mais suave que a nossa.”
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Para ela, mesmo depois de tantos anos, conquistar o respeito dos homens do campo ainda é um exercício diário: manter uma postura séria, mostrar trabalho. “Preciso ter austeridade no comportamento, para não perder o respeito”.
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Estar nessa posição tem um preço. Nunca tomei um banho de rio na minha fazenda porque lá é lugar de trabalho. Viajo para curtir essas coisas em outros lugares, porque ali, não posso me divertir. Não acho que seja lógico, mas é necessário.
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Em 2016, foi a primeira mulher das Américas a julgar uma exposição da raça no Royal Three Counties Show, na Inglaterra, terra de origem do devon, com direito a cumprimento da princesa Anne. Desta vez, teve a companhia do pai, que acompanhou da arquibancada o trabalho da avaliadora (ele próprio fora o primeiro latino-americano convidado para julgar o concurso, em 1967). “O mundo dá essa volta: antes eu queria estar longe dele, e agora me orgulho de trilhar um caminho parecido. Hoje, ser confundida com meu pai é só alegria.”
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Ficha Técnica #TodoDiaDelas
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Texto: Isabel Marchezan
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Imagem: Caroline Bicocchi
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Edição: Andréa Martinelli
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Figurino: C&A
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Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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