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Direitos políticos das mulheres: garantia formal x garantia material

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Veja publicação original: Direitos políticos das mulheres: garantia formal x garantia material

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Por Deborah Amorim de S. Carvalhido

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A proximidade das eleições gerais deste ano traz à tona o debate acerca da presença feminina na política. A sub-representação é preocupante e a reflexão sobre essa temática torna-se fundamental e nos estimula a refletir sobre questões relacionadas à igualdade de gênero, bem como a respeito dos progressos que ainda podemos e devemos empreender. Apesar de incontestáveis avanços, é preciso admitir a existência de obstáculos que nos distanciam da plenitude do exercício do direito a igualdade que, garantido formalmente há pouco menos de 30 anos – com a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988 –, ainda carece de devida efetivação material.

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No campo dos direitos políticos, que compreende o ideal de votar e ser votada, o debate direciona-se, principalmente, à conquista do direito ao voto feminino e à capacidade de as mulheres participarem diretamente dos negócios do Estado e concorrerem aos pleitos eleitorais em igualdade de condições.

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Sob essa perspectiva, importa salientar que a participação e luta das mulheres no processo histórico nacional foi determinante para a conquista do sufrágio feminino. Tal prerrogativa não foi “consequência inevitável da vida urbana e moderna, tampouco uma mera concessão de Getúlio Vargas à pressão de um movimento social”1, mas resultou de intensivas negociações entre ativistas que se empenharam na defesa dessa agenda pública, e os atores políticos da época.

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O direito ao voto era compreendido como instrumento-chave de grandes mudanças uma vez que a partir das decisões do Parlamento é que legislações garantidoras de direitos seriam alcançadas. Segundo Maria Zina Abreu2,

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(…) as sufragistas argumentavam que as vidas das mulheres não melhorariam até que os políticos tivessem de prestar contas a um eleitorado feminino. Acreditavam que as muitas desigualdades legais, econômicas e educacionais com que se confrontavam jamais seriam corrigidas, enquanto não tivessem o direito de voto. A luta pelo direito de voto era, portanto, um meio para atingir um fim.

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Entre os principais registros dessa luta feminina no Brasil, sobressaem-se, inicialmente, as manifestações da aguerrida defensora do direito ao voto das mulheres: Leolinda Daltro. A professora baiana fundou, em 1910, o Partido Republicano Feminino com o objetivo de representar e integrar as mulheres na sociedade política3, por meio da defesa do acesso à educação, a cargos públicos e ao exercício do voto.

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Em 1919, o movimento sufragista foi fortalecido por Bertha Lutz, uma das principais pioneiras do movimento feminista no Brasil e fundadora da Liga Pela Emancipação Intelectual da Mulher, que mais tarde se tornaria a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, cuja finalidade precípua era a luta da igualdade política das mulheres4.

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Cumpre acentuar que a Constituição de 1891 não fazia nenhuma referência ao voto das mulheres de modo que, embora não houvesse norma proibitiva, a negativa ao sufrágio decorria de interpretação restritiva oriunda dos costumes que evidenciavam uma situação ainda mais perversa de exclusão. Diante desse quadro, existia uma corrente que defendia que a ausência da vedação constitucional conferia à legislação ordinária a competência para se manifestar sobre essa matéria de modo que, em 1919, o senador paraense Justo Chermont − atento à causa feminina − apresentou um projeto de lei5 que dispôs sobre a capacidade eleitoral da mulher. Entretanto, tal iniciativa não logrou êxito e as campanhas sistemáticas contra a proposta colaboraram para o adiamento de sua discussão.

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A mobilização feminina continuou e a década de 20 vivenciou importantes movimentos que contestavam as limitações sociais e legais da ordem vigente e em 1927, apesar do silêncio do Congresso Nacional, o Estado do Rio Grande do Norte passou à frente e por meio de uma lei estadual6 concedeu às mulheres o direito ao voto, de maneira a prever, expressamente, a inexistência de qualquer distinção de sexo tanto para o exercício do voto quanto para fins de condição de elegibilidade.

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Assim, surgiu a primeira eleitora do País, Celina Guimarães Viana. Registra-se que o pioneirismo do Rio Grande do Norte resultou também na eleição da primeira prefeita do Brasil e da América do Sul: Alzira Soriano.

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O direito de as mulheres elegerem seus representantes só foi nacionalmente assegurado em 1932, com a promulgação do Código Eleitoral7, de modo que apenas em 3 de maio de 1933, nas eleições para a Assembleia Constituinte, é que foi eleita a primeira deputada federal: Carlota Pereira de Queiroz. Importante ressaltar que o Código de 1932 previa, em suas disposições gerais, que as mulheres em qualquer idade podiam isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral, a fim de facultar o exercício do voto.

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Conforme anteriormente demostrado, durante anos as mulheres foram eliminadas do processo eleitoral e a cronologia histórica dessa emancipação política revela que a superação do alijamento do direito ao voto, decorrente da ausência de tutela jurisdicional que reconhecesse as mulheres como detentoras dos direitos políticos, só foi constitucionalmente assentada em 1934. Contudo, a ordem constitucional de 19348 não foi capaz de eliminar todas as restrições ao direito do voto feminino tendo em vista que tal obrigatoriedade só era conferida às mulheres que exerciam função pública remunerada9, ao passo que o mesmo constituía dever para todos os homens. Com efeito, apenas em 194610 é que o diploma constitucional passou a consagrar a amplitude da obrigatoriedade do voto feminino.

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Esse rápido relato cronológico tem o intuito de demostrar que a normatização da garantia formal do exercício dos direitos políticos das mulheres remonta um passado relativamente recente. Na verdade, referida temática ganhou contornos mais contundentes com a promulgação da Constituição de 1988, que representou o marco jurídico do fortalecimento democrático, da afirmação de princípios e garantias fundamentais, da cognição da democracia representativa e da consagração da igualdade de direitos entre homens e mulheres, de maneira a alargar a proteção dos direitos políticos no Brasil − porquanto que se admite que os mesmos constituem direitos fundamentais bem como integram o rol dos direitos humanos, associando-se à própria base do regime democrático.

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A respeito dos significativos avanços normativos, decorrentes da instalação de uma nova ordem constitucional que institucionalizou os direitos humanos no Brasil, é possível evidenciar, na Carta Magna, dispositivos que asseguram e reconhecem o exercício dos direitos políticos das mulheres.

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Assim, no parágrafo único do artigo 1°, a Constituição Federal dispõe que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Ademais, arrola a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana entre os fundamentos da República. Há que se falar também que, no artigo 3°, a Lei Maior consagra a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, assim como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação como objetivos fundamentais do país. Além de tais dispositivos, há ainda a previsão da prevalência dos direitos humanos e a abertura jurídica para a ratificação de tratados internacionais. Por fim, de maneira expressa, a Constituição proclama o princípio da equidade de gênero, ao dispor no inciso I do artigo 5° que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

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No âmbito da normatividade internacional, cabe mencionar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Em linhas gerais, os referidos tratados reafirmam a obrigação dos Estados partícipes garantirem aos homens e mulheres a igualdade do gozo dos direitos políticos e o ideal da igualdade de oportunidades na disputa às funções públicas.

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Ante o exposto, faz mister concluir que os direitos políticos das mulheres estão, de maneira incontestável, formalmente garantidos. Todavia, ao analisar o quadro de representação política, especificamente no que se refere ao número de candidaturas e de eleitas, constata-se uma estagnação vergonhosa que demonstra a insuficiência da mera previsão formal e a necessidade da efetivação material de tais direitos, frisam-se, fundamentais.

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Conforme dados da Bancada Feminina no Congresso Nacional11, dos 81 Senadores apenas 12 são mulheres. Por sua vez, a Câmara dos Deputados, conta com 53 deputadas, o que representa apenas 10% do número total de representantes.

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De maneira mais detalhada, dados estatísticos atestam que 1412 unidades da federação não possuem representantes no Senado Federal e que 5 estados13 não têm nenhuma mulher parlamentar na Câmara dos Deputados.

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Já as estatísticas das eleições de 2014 refletem uma situação ainda mais alarmante que compreende a eleição de apenas 1 governadora14. Nas eleições que ocorreram em 2016, segundo informações do TSE15, dos 5.570 municípios apenas 641 elegeram mulheres, número que representa uma queda de 0.27% em relação ao pleito de 2012. Ressalta-se ainda que em apenas 24 cidades as mulheres são maioria nas câmaras dos vereadores, sendo que em 1.286 municípios, todos os vereadores são do sexo masculino.

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Quanto ao posicionamento no ranking mundial da participação política feminina no Brasil, vale citar informações trazidas no bojo da ADI n° 5617:

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Em uma lista com 188 países, o Brasil aparece na 156º posição (…). O Brasil tem menos participação proporcional de mulheres no Legislativo do que outras nações de menor consolidação democrática, menor abertura política e cultural ou menor condição socioeconômica, como Etiópia (38,8%), Burundi (36,4%), Lesoto (25%), Azerbaijão (16,9%), Turquia (14,9%) e Myanmar (12,7%).

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Esses números estatísticos confirmam que apesar de 52,25% do eleitorado ser composto pelo sexo feminino, o número de mulheres eleitas sinaliza para um contexto de grave déficit democrático. A explicação dessa baixa representatividade permeia uma série de fatores que englobam as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no processo eleitoral.

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Tais obstáculos compreendem distorções históricas e culturais, ausência de protagonismo nas esferas decisórias dos partidos políticos, esvaziamento de recursos para o financiamento das campanhas e falta de apoio partidário.

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Nessa direção, cita-se a recente Consulta16 oferecida pela Senadora Lídice Mata, ao TSE, que pleiteia uma interpretação extensiva da norma insculpida no artigo 10, §3° da Lei n° 9.504/97 – que estabelece uma reserva mínima de 30% e o máximo de 70% de vagas para candidatura de cada sexo – para a composição das comissões executivas, diretórios nacionais, estaduais e municipais dos partidos políticos, bem como de suas comissões provisórias. Ao defender a aplicação da previsão de reserva de vagas para órgãos partidários, a peça alega que os partidos desempenham uma enorme relevância no processo eleitoral “sendo responsáveis por questões que vão desde a arregimentação e o registro de candidatos, até o financiamento de campanhas e a distribuição do tempo de propaganda entre seus filiados17.

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Aludido quadro reclama atenção mais detida tendo em vista que demonstra uma mitigação dos princípios da soberania popular, da igualdade de chances, da dignidade da pessoa, contrariando a efetividade das normas constitucionais, infraconstitucionais e supralegais, garantidoras dos direitos políticos. Destarte, tal constatação evidencia uma falha na democracia que, ante o compromisso inerente ao Estado Democrático de direito, deve primar pela promoção do bem-estar de todos, sem qualquer distinção.

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Imperioso observar que o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, conforme leciona Alexandre de Moraes ao dispor sobre o conceito dos direitos políticos18, não está sendo observado e, portanto, assiste maior intervenção do Estado que deve se responsabilizar quanto à efetivação material de tais direitos. Nesse contexto, cumpre ao Estado incentivar e adotar medidas que visem à superação de tais obstáculos, considerando-se que a não efetivação do direito supracitado consiste em severas violações a direitos e princípios constitucionais.

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Em conclusão, registra-se a amplitude do campo de atuação do Estado que, por meio de seus órgãos e agentes fiscalizadores da aplicação do direito, bem como por intermédio daqueles que detém a competência legislativa, deve agir como indutor da consolidação da democracia que, por sua vez, reclama a integralidade do gozo dos direitos políticos.

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Entre as medidas possíveis para a efetivação material dos direitos políticos das mulheres, cita-se: a instituição de políticas de natureza afirmativa, tais como cotas de gênero no Parlamento; o desenvolvimento e aprimoramento de modelo normativo que preveja maior responsabilidade dos partidos no que se refere à democracia partidária e à destinação de recursos para o financiamento das campanhas das candidatas; a ampliação do poder decisório das mulheres nos órgãos partidários; investimento na cidadania e na educação na base, com vistas à maior qualificação do voto; e a fiscalização mais rígida e efetiva dos operadores do direito.

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A história demonstra que a conquista do voto feminino foi construída em meio a lutas e reivindicações. Evoluímos. Todavia, apesar de sua garantia formal, observa-se que ainda há um longo caminho para a consolidação dos direitos políticos das mulheres que pressupõem, além da autonomia e da liberdade no exercício do sufrágio universal, a possibilidade de participação nos pleitos eleitorais em igualdade de condições.

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2 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto. Movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Arquipélago – Revista da Universidade dos Açores, Ponto Delgada, 2ª série, VI, 2002.

5 Projeto de Lei n° 102 de 1919.

6 Lei Estadual n° 660 de 25 de outubro de 1927.

7 DECRETO Nº 21.076, DE 24 DE FEVEREIRO DE 1932 – “Art. 2º E’ eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na fórma deste Codigo”.

8 CF 1934 – Art. 109 O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar.

9http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2013/Marco/ha-80-anos-mulheres-conquistaram-o-direito-de-votar-e-ser-votadas

10 CF 1946 – Art. 133 O alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei.

11+ Mulheres na Política. Retrato da sub-representação feminina no poder. Brasília, 2016.

12Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Distrito Federal, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rondônia e Santa Catarina.

13Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba e Sergipe.

14Suely Campos (Roraima)

15http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/eleicoes-2016-numero-de-prefeitas-eleitas-em-2016-e-menor-que-2012

16Consulta n°0603816-39.2017.6.00.0000; Relatora: Ministra Rosa Weber

17Idem, p.6

18MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2012

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