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Veja publicação original: Carta de Maria da Penha denuncia quadro precário dos equipamentos de apoio à mulher
Neste Dia Internacional da Mulher, nem tudo são flores no Ceará. A militante social Maria da Penha, que comanda o Instituto Maria da Penha, divulga, por meio deste Blog, carta que enviou ao governador Camilo Santana e ao prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, denunciando situação precária dos equipamentos de apoio à mulher. Confira:
8 DE MARÇO – ILUSTRÍSSIMOS GOVERNADOR DO CEARÁ E PREFEITO DE FORTALEZA: NÃO ME VENHAM COM DISCURSO!
O intuito desta carta é apresentar a insatisfação do Instituto Maria da Penha quanto à real situação da política pública de enfrentamento à violência contra a mulher desenvolvida pela atual gestão do estado do Ceará e do município de Fortaleza. Insatisfação referente ao fato de que a nossa capital, Fortaleza, ocupa o 3º lugar no ranking das cidades nordestinas que mais registram violência doméstica física contra a mulher, e que 27% das mulheres fortalezenses foram violentadas emocionalmente ao longo da vida. Além disso, o percentual de violência sexual na Capital ficou próximo ao da média do Nordeste, com 6,98% dos casos[1], sem falar nos municípios do interior do estado. Ocorre que esses e outros dados têm como apoio o dia a dia ineficiente e ineficaz das políticas públicas do Estado do Ceará e do Município de Fortaleza frente à questão da violência contra a mulher.
Infelizmente, após 35 anos do crime que foi cometido contra mim; 16 anos após o Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre o meu caso (Maria da Penha X Brasil- OEA Caso Nº12.051) e 11 anos da Lei 11.340/06, ainda estamos constatando que as conclusões apresentadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a atuação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil, em especial no Estado do Ceará, ainda permanecem: a negligência na prestação de serviço à mulher vítima de violência. Negligência expressa na falta de celeridade no atendimento, como também, na questão da tolerância do Estado frente às práticas de violência cometidas contra a mulher.
Esse contexto, de forma constrangedora e deprimente teve como expressão o crescimento de 71,5% dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) contra mulheres em 2017 representando de janeiro a novembro 319 mortes. Esta realidade, inaceitável, foi um dos resultados da precariedade dos equipamentos da rede de atendimento a mulher mantidos pelo Governo do Estado e pela Prefeitura de Fortaleza. Eu que sempre levanto a bandeira da importância da implementação de Centros de Referência da Mulher em todos os municípios, me sinto envergonhada de dizer que no meu Estado, o Centro de Referência da Mulher Estadual, funciona fundido com o Centro de Referência da Mulher municipal, ou seja, não temos dois equipamentos, mas apenas um que não possui atendimento 24 horas, fecha aos finais de semana e está situado em um prédio sem nenhuma acessibilidade. Eu mesma não posso visitá-lo.
Na mesma situação de precariedade e sucateamento estão as Casas Abrigo e os demais Centros de Referências de Apoio à Mulher, a exemplo do Centro de Referência de Redenção que foi fechado e está funcionando dentro do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS).
No que se refere a Delegacia de Atendimento à Mulher de Fortaleza, o teto desabou no início de fevereiro e, sendo assim, a DEAM passou a funcionar nas dependências de outra delegacia. Neste contexto, consta que quase todas as delegacias do Ceará foram reformadas e obedecem a um mesmo padrão físico. No entanto, não fez parte dessa reestruturação a DEAM, mesmo estando com sua estrutura física comprometida há algum tempo.
Outro fato agravante é que só existe essa única delegacia da mulher, que foi criada no ano de 1986, para atender a toda a população de Fortaleza que já ultrapassa 2,5 milhões de habitantes.
Enfim, observa-se o sucateamento dos principais equipamentos de atendimento à mulher vítima de violência e, consequentemente, confirma-se a negligência na aplicabilidade da Lei 11340/06 e do que ela preconiza para ser devidamente implementada, por parte do Poder Público do Estado e do Município.
Essa conduta negligente, muitas vezes, foi justificada pelo fato de que todos os equipamentos da rede de atendimento à Mulher seriam transferidos e passariam a funcionar na Casa da Mulher Brasileira, uma política pública, a nosso ver, da mais alta importância que foi prometida ser entregue a população de Fortaleza desde 2017 e até hoje estamos no seu aguardo.
Prezados Senhores Governador Camilo Santana e Prefeito Roberto Cláudio, saibam que estamos cientes de que todas as informações apresentadas acima já são de pleno domínio das Vossas Excelências. Contudo, o que realmente não conseguimos aceitar é que a vida de mulheres, crianças, jovens, mães, avós, trabalhadoras que representam a população cearense sejam ceifadas em razão da negligência, irresponsabilidade, descaso, falta de compromisso e celeridade das autoridades.
Não é possível aceitar, Sr. Camilo Santana e Sr. Roberto Cláudio, porque tal realidade referente aos seus desempenhos como gestores diante do enfrentamento à violência contra a mulher não converge com vossos perfis expostos nas páginas eletrônicas oficiais do Governo Estadual e Municipal. Destacar princípios em perfis não é suficiente para transformar políticas e deixar legados para a sociedade.
Acreditamos que até o presente momento, o alicerce do enfrentamento à violência esteja ainda muito vulnerável e não apresente condições sustentáveis para que as mulheres do Ceará possam viver com liberdade. Liberdade que garanta às mesmas uma vida livre da violência.
Nesse sentido, elencamos abaixo diretrizes para um enfrentamento mais célere e eficiente do problema da violência doméstica que são necessárias para iniciarmos um processo de mudança significativa diante de tal realidade. Não é um pedido, é a lei:
· Qualificação eficiente e estratégica dos agentes públicos,
· Investimento na estrutura física e de pessoal, nos equipamentos que estão diretamente relacionados com o contexto da violência contra a mulher no Estado do Ceará,
· Melhoria na qualidade da educação destacando a inclusão de nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher,
· Monitoramento contínuo sobre as práticas de atendimento às mulheres vítimas de violência nas delegacias especializadas e não especializadas, bem como nos demais equipamentos de atendimento a mulher em situação de violência
A partir da leitura desta carta, Vossas Excelências, aguardamos um posicionamento mais objetivo, concreto e dialógico. No aguardo, estaremos dispostos a contribuir juntamente com toda as vossas equipes para tirarmos as ideias do papel, as mais belas palavras dos discursos e implantarmos ações que verdadeiramente possam trazer dignidade, respeito, compromisso e vida às mulheres e famílias que vivem sob o domínio da violência, do feminicídio, do descaso e da extrema vulnerabilidade social.
Por fim, gostaria de dizer que a dor que as mulheres que vivem a terrível realidade da violência doméstica e que ainda hoje são negligenciadas pelo poder público foi a mesma que um dia eu senti. E, por elas, eu e o Instituto Maria da Penha não vamos desistir. Lutei durante 19 anos e seis meses por mim e por minhas filhas. Agora somos um exército muito maior, somos mais da metade da população em favor da Lei Maria da Penha. Iremos insistir e persistir.
Um dos teólogos e escritores estadunidenses mais citados pelos políticos e líderes religiosos, James Freeman Clarke, afirmou certa vez que “Um político pensa na próxima eleição; um estadista, na próxima geração”, queremos acreditar, que Vossas Excelências venham a se comprometer com a geração de mulheres e homens cearenses que estão crescendo, aguardando que os Senhores sejam, finalmente, os estadistas que o nosso Ceará e a nossa Fortaleza merecem.
*Maria da Penha
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