Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Jornalista fala de encontro com Marielle e da dor ao cobrir sua morte
Kamille Viola conheceu a vereadora em 2017 para escrever uma matéria e precisou cobrir as manifestações em protesto contra seu assassinato meses depois
Quando fui entrevistar a vereadora Marielle Franco, no ano passado, ela estava no plenário, portanto tive que esperar um pouco em seu gabinete. Ainda pude ver o final de sua fala pela TV que ali estava. Também notei a diversidade em sua equipe, com grande quantidade de mulheres, pessoas negras, como deveriam ser todos os ambientes no Brasil, afinal.
Esperei por algum tempo até que sua assessora, com quem eu tinha trocado mensagens pelo celular (a mesma que estava no carro da vereadora no momento do assassinato dela e do motorista Anderson Pedro Gomes), veio falar comigo. Explicou que teríamos pouco mais de meia hora, por conta da agenda apertada de Marielle.
Simpática e acessível, Marielle se sentou comigo. Explicou que precisava ir à análise, por isso não tínhamos muito tempo. Ainda tentou ligar para sua terapeuta e remarcar, mas não conseguiu. Desculpou-se e disse que estaria disponível depois por telefone ou WhatsApp se eu precisasse complementar a entrevista.
Marielle tinha dois anos a menos que eu, com a diferença de que sua trajetória era radicalmente diferente: negra, nascida e criada em uma das maiores favelas do Rio, o Complexo da Maré. A família, paraibana, era uma das mais antigas no local (“o meu avô paterno tá no Museu da Maré numa homenagem por ser um dos primeiros moradores”, contou).
Falou sobre as mudanças ocorridas na Maré ao longo dos anos, com o aumento da violência. Embora a questão sempre estivesse presente no complexo de comunidades, ela cresceu com certa liberdade de brincar na rua. Sua irmã Anielle, seis anos mais nova, já viveu o crescimento das facções, por exemplo, e a preocupação dos pais.
Deu à luz aos 18 anos e só conseguiu seguir com os estudos por conta da ajuda da mãe. “Ela sempre segurava tudo, mesmo quando eu morava distante (Marielle e sua família moraram em diversas localidades da Maré, um complexo com 16 favelas). Eu deixava minha filha lá para limpar a casa e curtir o fim de semana. Em alguns períodos em que eu fui ficando mais perto, era ela mesmo que segurava”, contou.
Aluna da Pontifícia Universidade Católica (PUC), disse que não viveu o movimento estudantil naquela a época porque tinha sua rotina como mãe. Mas a luta sempre esteve presente em sua história, fosse no pré-vestibular comunitário (“a gente teve que bater laje para ele acontecer”) ou na Pastoral da juventude.
Formada em Sociologia pela PUC e com mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), sabia que sua trajetória era algo incomum para alguém com sua origem e os obstáculos que tinha enfrentado. “Nunca achei que seria capaz de entrar em uma grande universidade depois de ter passado três anos sem estudar Física”, comentou.
Marielle tinha se mudado em janeiro daquele ano para a Tijuca (por sinal, o bairro onde cresci), por conta da segurança, e também pela proximidade do bairro da Zona Norte com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, para onde sua filha, Luyara, tinha acabado de passar. Vivia com a filha e a companheira, Monica Tereza Benício, que mencionou discretamente na entrevista. Mas suas idas à Maré ainda eram frequentes, pois seus parentes ainda moravam lá, explicou.
Seu envolvimento com a política começou em 2006, quando se voluntariou para a campanha de Marcelo Freixo, então concorrendo à vaga de deputado estadual. Acabou tornando-se assessora dele, cargo em que ficou até 2016, quando foi a quinta vereadora mais votada do Rio. Teve cerca de 10% de votos na Maré, número que acreditava ser bom, diante das circunstâncias: “Foi bom se a gente pensa a esquerda e o crescimento [de sua campanha] naquele lugar, que é um lugar conservador e que tem um outro tipo de política, infelizmente mais fisiologista”, diz.
Madura, procurava compreender o jogo político, buscando não só enfrentamento, mas também concessões e diálogo. Estávamos às vésperas do carnaval e ela contou que, depois de defender o amor de carnaval sem violência em uma conversa com dois vereadores, um deles disse: ‘Ah, Marielle, só um beijinho roubado!’ “Aí você respira e diz: ‘Que isso, cara, você é tão bonitão. Tem condição de chegar e desenrolar, não precisa pegar ninguém à força.’ Eu ia virar e brigar: ‘Escroto, machista’? Não dá, na boa”, defendeu.
Sentia olhares e sofria assédio, mas acreditava que estava construindo algo diferente. Naquele dia, um colega, Thiago K. Ribeiro (do PMDB), tinha brincado: “Ué, o pessoal não vai dar porrada no governo?”. “Eu não vou fazer oposição a qualquer custo. Não é esse tipo de política que eu quero fazer, até porque quero fazer politica para fora, isso aqui é [apenas] uma das vias”, diz.
No momento, ela estava com dois projetos: a garantia de que as mulheres que tinham direito ao aborto nos casos permitidos por lei conseguissem de fato realizá-lo na cidade do Rio (só um hospital no Rio, a Maternidade Fernando Magalhães, é capacitada para o procedimento, e, ainda assim, muitos médicos alegam objeção de consciência, ou seja, que não querem fazer o aborto em uma paciente por questões religiosas ou éticas) e a criação de creches noturnas, para atender mães que trabalhem e estudem à noite. Para ela, o debate de gênero sempre estava em primeiro plano, e ela buscava forma de leva-lo a regiões mais pobres da cidade.
Meu tempo acabou, perguntei se não poderia continuar a entrevista no carro. Marielle sentou-se ao lado do carona, e eu, atrás (o motorista não era Anderson Gomes, também assassinado, e sim o funcionário efetivo da vereadora). Uma lembrança um tanto sinistra hoje.
Nos despedimos em Ipanema e ela me disse que eu poderia procurá-la se precisasse complementar. Trocamos áudios de WhatsApp e cerca de um mês depois minha matéria foi publicada, no site News Deeply, em um canal sobre questões da mulher. Volta e meia eu via Marielle em eventos como debates, e pensava na pessoa comprometida, inteligente e sensível que ela era. A notícia de seu assassinato foi um choque tão grande que causou um desânimo coletivo. Os tiros atingiram, também, nossa fé na democracia e na esperança de um futuro melhor, que era pelo que ela lutava.
Cobrir a manifestação no Rio em repúdio ao seu assassinato era uma missão dura, era o trabalho que eu não queria que tivesse existido, mas também sentia como se fosse algo que eu devesse àquela mulher tão especial. Ao fim do dia, exausta, depois de passar horas em pé em meio a um calor absurdo que só tornava tudo ainda mais dramático e surreal, como num filme em um futuro distópico, as coisas tinham mudado. A força das pessoas na rua — 100 mil, segundo os organizadores – trouxe de volta algo que parecia ter sido atingido também naquele carro: a esperança. Em meio aos gritos, lágrimas e cartazes dos que prometiam não se calar diante dessa morte tão brutal, eu tive certeza: Marielle, presente. Mais do que nunca.
Kamille Viola é jornalista, carioca e tem passagens e colaborações por veículos como O Dia, O Globo, Estado de S. Paulo, Canal Futura, News Deeply e Billboard, entre outros.
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