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Veja publicação original: Mulheres relatam a experiência de assédio sexual no trabalho
As denúncias ocorridas na indústria do cinema em hollywood chamou a atenção para um tema que costuma ser evitado: o assédio sexual no trabalho.
Por Maria Candida Luger
Segundo a cartilha de conscientização do MPT, lançada em 2017, o assédio sexual no ambiente de trabalho é “a conduta de natureza sexual proposta ou imposta a alguém contra sua vontade, causando- lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual”. Isso pode se manifestar fisicamente, mas não só: pode ser também por palavras, gestos ou outros meios. “Não estamos falando de uma paquera ou um galanteio no ambiente de trabalho, em que possa existir uma reciprocidade”, diz Valdirene. “Mas de importunar, de constranger, de incomodar a pessoa com uma conduta de natureza sexual”, afirma.
Em geral, se divide o assédio em dois tipos: por chantagem ou intimidação. O primeiro acontece quando uma pessoa hierarquicamente superior a outra exige uma conduta sexual em troca de benefícios, ou para evitar prejuízos — não ser demitida, por exemplo. Desde 2001, esse tipo de assédio sexual é crime no Brasil: prevista pelo artigo 216-A do Código Penal, a pena é de 1 a 2 anos de detenção. Já o assédio por intimidação não é considerado crime pelo Código Penal, mas é punível pela Justiça do Trabalho. “O empregador tem a responsabilidade de zelar para que isso não ocorra”, diz a advogada trabalhista Débora Pires, de Brasília. Esse tipo de assédio é mais sutil: ocorre quando há provocações sexuais inoportunas no ambiente de trabalho, que prejudicam a atuação profissional da pessoa ou criam uma situação hostil, ofensiva, humilhante para ela. É um tipo de ataque que não necessariamente é feito por alguém em posição superior na organização: pode ser feito por colegas ou subordinados e até por quem não trabalha no mesmo lugar: por um cliente em um estabelecimento comercial, por exemplo.
É importante saber que esse assédio pode ocorrer fora do ambiente profissional: em caronas pós-expediente ou em almoços de trabalho ou comentários em redes sociais durante o fim de semana, por exemplo. Por outro lado, na maioria dos casos, para considerar que houve assédio, é necessário que a conduta se repita, que a abordagem seja insistente. “Mesmo que o assédio sofrido não se enquadre como sexual pelo Código Penal, se houve um contato físico é possível que se enquadre como estupro e caia na legislação mais grave”, diz Débora Pires. A recomendação é sempre procurar uma delegacia para prestar queixa. É muito comum que quem passe por isso tenha dificuldade de denunciar ou mesmo de falar sobre. “O assédio traz para a vítima uma sensação de impotência, porque a pessoa tem sua imagem, sua honra e sua moral afetadas pela relação que se estabelece ali”, afirma Valdirene. “O silêncio muitas vezes não é um consentimento, e sim resultado de uma cultura machista, em que o assédio infelizmente por muito tempo foi tolerado”, diz.
Em ambos os tipos de assédio, algumas atitudes podem ser tomadas para fazer uma denúncia. É importante reunir todas as provas (e-mails, bilhetes, fotos, mensagens, entre outros), além de buscar apoio de colegas que possam ser testemunhas do ocorrido. Duas atitudes são essenciais: não se intimidar em dizer claramente não ao assediador e romper o silêncio — procurar o RH ou canal semelhante na empresa, ou contar para pessoas de confiança o que está acontecendo. “Há uma subnotificação desse tipo de caso, e a gente sabe que a conscientização é essencial para combater isso. As pessoas precisam saber o que já está garantido por lei e ser encorajadas a reivindicar seus direitos”, diz Valdirene.
De 2012 a 2017, o número de denúncias anuais recebidas pelo MPT dobrou — foi de 165 para 340. Segundo Débora, no decorrer dos processos, ainda é comum ouvir aqueles argumentos que culpabilizam a mulher pelo assédio sofrido, como “ai, ela usava roupas muito curtas”, “muito justas”, etc. Para isso mudar, é importante que o assédio não seja mais naturalizado. “É aquela coisa do ‘não é não’. É essa cultura que nós, mulheres, temos que ter em mente. Se eu não quero e eu disse não, ele não pode continuar”, afirma a advogada.
52% das mulheres economicamente ativas no mundo já foram vítimas de assédio sexual no trabalho.
Fonte: Organização Internacional do Trabalho
Não é só gracinha do chefe
Conversamos com mulheres de diferentes áreas profissionais que sofrem assédio. Em alguns casos, o abuso é óbvio; em outros, a situação é mais sutil, difícil de categorizar.
“Meu chefe exigiu que eu usasse salto e sugeriu um vestido específico para uma reunião”
“Quando eu tinha uns 19 anos, entrei para uma empresa como analista júnior de fraudes em documentos. Meu chefe logo veio se apresentar. Devia estar na faixa dos 45 anos, era casado e tinha dois filhos. Tenho uma tatuagem nas costas com a frase “Ela corre para fora de si mesma em liberdade”. Um dia ele perguntou o que era e eu falei. Dias depois, encontrei com ele e uns caras na cozinha e um deles perguntou sobre a tattoo. Ele respondeu, sem me deixar falar: ‘Ah, você viu? É algo tipo é aqui que começa a liberdade’, com voz sarcástica. Eles riram. Em outro momento, ia ter uma confraternização e eu não iria. Ele disse: ‘Ah, pensei que ia ver a Letícia de biquíni’. O lugar não tinha divisórias, todos ouviram, alguns riram, me senti muito exposta. Um tempo depois, ele ia fechar um contrato com uma empresa e me pediu para ir junto. Exigiu que eu usasse salto e me sugeriu ir com um vestido específico que eu já tinha usado. Falou: ‘Vem bem arrumada, como você sabe’. Só um pouco tarde descobri que isso era assédio, na época para mim eram brincadeiras de mau gosto — sabia que ele abusava do poder, mas tinha medo de ser demitida. No fim, usei o vestido na reunião. Fui à toa: não tinha nenhuma função. Entendi que ele me chamava não porque eu era boa no que fazia. Então comecei a dar mancada de propósito. Um dia de reunião com uma empresa pela qual eu era ‘responsável’ fui toda desarrumada. Ele me mediu de cima a baixo, balançou a cabeça em sinal de negatividade e disse: pode ficar! Olhou para uma mulher que estava havia uma semana na empresa, mas que estava de salto, blusa decotada e terninho, e falou: pega papel e caneta e vem comigo! Aos poucos, a colocou no meu lugar, até me mandar embora. Era um trabalho onde eu poderia ter boas oportunidades, mas, com ele como chefe, eu não queria mais ficar lá.”
Letícia*, 23 anos, ilustradora, São Paulo (SP).
“Ele passou a assistir a filmes pornôs no trabalho, colocava sempre que uma funcionária ia sozinha à sala dele”
“Passei por essa situação duas vezes. Na primeira, há dez anos, eu era estagiária como assistente de gerência e meu chefe começou com suas investidas logo que eu fui contratada. Fazia questão de me levar chocolates e de fazer piadas de gosto duvidoso. Meu namorado trabalhava na mesma empresa e o chefe reclamava quando ele ia lá. Ele dizia que preferia meninas mais jovens, porque elas tinham mais ‘fôlego’, e eu sempre desconversava. Mas nunca tinha entendido que aquilo era assédio. A secretária dele passava pela mesma situação. Só que para ela ele mandava nudes, fazia convites diretos. Comigo era mais sutil. Em uma confraternização do trabalho, bebi e fiquei meio tonta. Ele se ofereceu para me levar até o metrô e no caminho colocou a mão na minha perna e tentou me beijar. Eu gritei, ele desconversou e nunca mais tocamos no assunto. Passados alguns dias, ele pediu que eu fosse transferida de unidade. Mas naquela noite da confraternização ele fez o mesmo com a secretária, e ela cedeu. Na segunda-feira seguinte à festa, ele a mandou embora. Ela reuniu todos os emails, fotos e tudo que tinha contra ele e levou ao RH da empresa. Sabendo do relato da secretária, várias mulheres foram se queixar do assédio dele — inclusive eu. Cerca de um mês depois, eu soube que ele havia sido demitido por justa causa. A secretária está no grupo até hoje — já ele não conseguiu voltar a ser contratado na área. No caso mais recente, há um ano, um executivo da empresa onde eu trabalhava só faltava comer a gente com os olhos. Dizia que ‘conhecia o desenho de cada corpo’. Até que um dia ele passou a assistir a vídeos pornôs durante o trabalho. Toda vez que uma de nós ia sozinha à sala dele, ele colocava e dizia: ‘Ai, você chegou bem na minha hora de desestressar, vem desestressar comigo’. Sou negra, e um dia ele mostrou um vídeo que tinha uma atriz negra e disse que gostava delas, pois são quentes! Não pensei duas vezes: fui até o RH e contei o ocorrido. Ele foi advertido, negou tudo, disse que eu era louca, mas as outras funcionárias também falaram. Esperávamos a demissão dele, mas o RH alegou que não tínhamos provas e não poderiam dispensar o dito. Saí da empresa no fim do ano passado. Me disseram que depois disso ele parou, nunca mais falou nada pra ninguém.”
Luana*, 30 anos, projetista, São Paulo (SP).
“Mostrei a uma colega de trabalho as mensagens que ele me enviou e fui demitida dois dias depois”
“Aconteceu comigo em 2007, eu tinha uns 22 anos. Quando eu ainda era estagiária, em uma festa de fim de ano da empresa um diretor contratou um caricaturista. Eu e mais três amigas, que éramos muito unidas, pedimos para ele fazer um retrato nosso. Um diretor da empresa se aproximou, tirou 100 reais da carteira e jogou na mesa dizendo para o cartunista colocar ‘os meus peitões’, que ele pagava por eles. Fiquei muito constrangida e pedi para mudar de área depois disso. Na empresa havia outro diretor que eu não conhecia muito, mas que achava muito simpático. Aí fui transferida para uma área que se reportava a ele. Comecei a achá-lo estranho poucos dias depois, quando ele começou a me responder mensagens no meu celular particular — sempre que eu enviava algo do celular corporativo, ele respondia no meu número pessoal. Uma vez ele começou a me mandar mensagens no meio da madrugada, dizendo que queria sair comigo, que me admirava muito, me elogiando etc. Estava na casa do meu namorado e fiquei com medo, não queria que ele visse aquilo. Receosa de que a situação ficasse desagradável, cheguei à empresa no dia seguinte e mostrei a uma colega de trabalho mais velha, em quem confiava muito. Não comentei com mais ninguém, só mostrei a ela, porque queria que alguém visse. Mas depois apaguei as mensagens com medo de o meu namorado ver. Acredito que ela contou para outras pessoas da empresa. A enteada desse diretor, filha da esposa dele, trabalhava no RH. Acho que ele ficou com medo de que a história chegasse aos ouvidos dela. Dois dias depois, fui demitida. No dia da demissão, no RH não sabiam me informar por que eu estava sendo mandada embora. Depois que saí da empresa, uma outra amiga, que trabalhava lá, me ligou e perguntou o que tinha acontecido. Ela disse que estavam comentando no escritório que eu tinha sido demitida porque tinha dado em cima dele.”
Juliana*, securitária, 34 anos, São Paulo (SP).
“O cara fazia comentários de baixo calão sobre mim e me chamou para um motel. Me enviava e-mails no fim do expediente para me forçar a ficar a sós com ele no escritório até tarde”
“Eu era estagiária em uma assessoria de imprensa e assim que me formei fui contratada — tinha 21, 22 anos. Na mesma época, um assessor chegou ao cargo de presidente e passei a trabalhar diretamente com ele. Foi quando tudo começou. Ele estava na faixa dos 40 e a esposa dele trabalhava no mesmo prédio. Nunca chegou a ter contato físico comigo, mas sempre fazia ‘brincadeirinhas’: dizia que eu estava bonita, para eu fugir com ele, que um dia eu seria dele, coisas assim. Começou a fazer também comentários de baixo calão: falar sobre meu corpo, dizer que queria ir comigo a uma praia, transar em todos os lugares. Eu ficava muito constrangida, mas achava que fazia parte do mundo do trabalho passar por aquilo. Não queria que minha família soubesse, e tinha medo de falar para alguém ou tomar uma atitude e ficar queimada no mercado: trabalho na área privada, quem iria me contratar se abrisse um processo trabalhista logo no primeiro emprego? Em um dia ele me elogiava, no outro dizia que eu não prestava para nada, nem para fazer um café, que imaginava como eu era na cama… Uma vez, logo depois de gritar que eu era incompetente na frente de todo mundo em um evento que organizávamos, me deu um chocolate e me chamou pra conversar. Pensei que seria de trabalho, mas ele me chamou para jantar e ‘quem sabe ir a um motel’. Eu disse que não, que tinha namorado, tinha que ir pra casa. Ele pedia para eu ficar depois do expediente e eu não aceitava, então ele falava que estava mandando e me enviava e-mails com um monte de trabalho, me forçando a ficar. Ficava lá com ele até meia-noite, 1 da manhã, era desesperador. Aquilo me consumia por dentro, saía do trabalho e ia para o carro chorar todo dia. Desenvolvi depressão, insônia, ficava 48 horas sem dormir pensando no que poderia ter falado ou feito. Emagreci muito, porque achava que se ficasse bonita ele ia falar algo, então fui ficando feia, me acabando, para não despertar nada. Sentia que a culpa daquilo era minha, que era meu corpo que fazia aquilo. Comecei a ir com roupa folgada, de vestido longo e fechado em cima para me esconder, mas independentemente da roupa que eu usasse ele falava alguma coisa. Ele não fazia isso abertamente. Na frente dos outros me tratava como chefe e funcionária. Então eu evitava ficar sozinha com ele, mas ele sempre arranjava uma maneira. Mandava a menina que trabalhava na mesma sala que eu fazer algo fora e vinha, sentava na minha mesa e eu paralisava. Eu via que as meninas que trabalhavam comigo percebiam, mas nunca ninguém disse nada ou tomou uma atitude. Aguentei por um ano, até conseguir outro emprego. Então pedi baixa na carteira e ele não quis liberá-la — segurou por mais de um mês, dizendo que só me entregaria pessoalmente. Só então abri o jogo com outras pessoas. Na época, minha irmã tinha se formado em direito e entrou em contato, mas ele não a respeitou como profissional — tive que chamar um amigo, homem, para ele devolver. Há algum tempo encontrei meu assediador na rua e cheguei a suar, tremer de medo. Apenas depois de muito tempo, na terapia, entendi o que tinha passado. Procurei tratamento porque não conseguia me desenvolver profissionalmente: não conseguia ter chefe homem. Há três anos tenho um chefe homem, para quem contei o que tinha acontecido — ele super me apoiou e é uma pessoa que me ajuda a crescer profissionalmente.”
Rafaela*, 32 anos, jornalista, Brasília (DF).
Onde e como denunciar o assédio sexual:
– Preste queixa em uma Delegacia da Mulher ou, se não houver, em uma comum. O assédio por chantagem é crime, e mesmo quando não se encaixa nesse tipo pode ser enquadrado em outros.
– Também dá para denunciar o assediador no Ministério Público do Trabalho, presencialmente ou no site do ministério, por qualquer pessoa que tenha presenciado o assédio. E quem a faz pode pedir sigilo. Uma investigação é iniciada e, dependendo do caso, a empresa pode ter que pagar à sociedade uma multa por dano moral coletivo — Parte do valor é destinada a projetos sociais.
– É possível também colocar a empresa na Justiça. A vítima pode pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho, o que garante benefícios. E processar a empresa e o agressor por danos extrapatrimoniais ou materiais. “Em todos esses casos, é necessário provar que ocorreu o assédio”, diz Débora. “Além de testemunhas e e-mails, bilhetes, são permitidas como prova gravações que a vítima faça — mas somente elas, não podem ser gravações de terceiros”, afirma. Os danos extrapatrimoniais são aqueles causados em decorrência dos danos morais que o assédio provoca; já os materiais podem ser pedidos no caso em que a vítima teve um prejuízo financeiro devido à situação — por exemplo, se ela comprovar que teve que passar por tratamento psicológico ou psiquiátrico.
– É importante ressaltar que é possível pedir que esses casos corram em segredo de justiça. Com isso, o assediador saberá do processo, mas não fica tão fácil, por exemplo, um futuro empregador ter conhecimento do assunto. Conheça: 9 mulheres dividem histórias de abuso sexual
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