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Veja publicação original: ‘Na época do crime, tentei denunciar João duas vezes’
Você está acostumado a ler aqui minhas histórias de viagens. Hoje, peço licença para contar a história da Fernanda*
Geralmente você lê aqui sobre os meus relatos de viagem, mas hoje vou emprestar minha coluna para a Fernanda*. Ela é irmã de uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida – se deparam com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é urgente e diz respeito a todos – homens e mulheres.
O texto a seguir aborda violência contra a mulher.
Meu nome é Fernanda e eu gostaria muito de colocar aqui o meu verdadeiro, até meu nome completo, para que as pessoas saibam que eu não tenho medo.
De qualquer maneira, eu vou contar para vocês como a minha irmã morreu na frente dos três filhos pequenos de tanto apanhar do seu marido. Um caso de feminicídio. A Paula se casou com o seu assassino, João, e com ele teve três filhos. A princípio, ele parecia ser um cara legal e dedicado aos filhos. Nos encontrávamos com frequência durante as festas familiares e no início não havia nenhum indício de violência.
Com o tempo as coisas foram ficando estranhas. Soubemos que o João andava bebendo, passava no bar na ida e na volta do trabalho e quase não víamos mais a Paula. Quando ela saía de casa, era para pedir alimento pra gente porque não tinha dinheiro. Não demorou para a situação piorar e Paula começar a beber também e os dois discutirem nas festas de família. Não víamos nenhum sinal de agressão física, mas João chegou a dizer numa dessas discussões que iria “dar uma surra pra ela aprender”.
Certa vez João me ligou dizendo que Paula estava sumida havia dois dias. Fui até a casa dela ver como as crianças estavam e não era verdade. Paula apareceu logo depois que eu cheguei; João foi para o bar beber e as coisas não pareciam normais.
Numa madrugada qualquer, por volta das três da manhã, João me ligou desesperado dizendo que a minha irmã havia morrido. Eu não acreditei, achei que era mais um caso de discussão dos dois, mas fui até a favela onde ela morava ver o que havia acontecido. Lembro que cheguei no meio de um baile funk e quando entrei no barraco da minha irmã, ela estava no chão caída de bruço, vomitada, com o olho roxo e com a cabeça tão inchada que deixava seu rosto completamente desfigurado. Ela não estava morta, mas estava inconsciente. E João, bêbado e desesperado.
Eu a levei para o hospital onde ela ficou internada por uns dias em coma até falecer. Por meio do exame de corpo de delito, descobri que ela havia sido tão espancada a ponto de ficar com traumatismo craniano. Murros e paneladas aos montes. As coisas foram ficando ainda mais claras depois que o meu sobrinho de 5 anos (o mais velho dos três filhos) me contou: “O meu pai matou minha mãe à facada. Bateu na cabeça dela com a panela”.
Depois de toda essa situação, as crianças já não queriam ver o pai porque, além de tudo, sofriam de maus tratos. Eu acabei conseguindo a guarda das crianças e, mesmo desempregada, cuido deles como se fossem meus filhos. Eles frequentam a escola, tem boa alimentação e o meu sobrinho mais velho faz terapia, mas ainda tem muito a fazer para superar o trauma do assassinato. As minhas duas sobrinhas menores me chamam de mãe.
Na época do crime, eu tentei denunciar o João duas vezes. Na primeira vez, eu não consegui pois a delegada disse que eu precisava do laudo médico. Na segunda, o boletim de ocorrência foi feito, porém mesmo com a confissão do João ao delegado, o boletim foi registrado como “morte suspeita a ser investigada”. O crime aconteceu há dois anos e meio e o João continua solto e me ameaçando, mas não tenho medo. Hoje conto com uma medida protetiva que garante que ele não se aproxime de mim e nem das crianças.
Entender o tamanho do problema é urgente e diz respeito a todos nós. Informe-se, apoie e denuncie. Outras colunistas do Estadão também cederam seus espaços. Leia mais histórias aqui. #DeUmaVozPorTodas
*O nome foi trocado para preservar a identidade da vítima.
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