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Revolução feminista

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Mulheres se organizam em redes de apoio para ajudar umas às outras, combater a violência e o preconceito e conseguir mais respeito e oportunidades,em um vigoroso movimento que envolve famosas e anônimas e tem gerado mudanças cruciais na sociedade

 

ONTEM E HOJE Mulheres que se tornaram referência para o feminismo: luta permanente

POR Camila Brandalise e Giorgia Cavicchioli

Nunca fomos tão fortes. No último ano, mulheres denunciaram publicamente homens poderosos em casos de assédios. Organizaram manifestações em diferentes países contra o feminicídio e pela manutenção e ampliação de direitos. Criaram redes de apoio para ajudar vítimas de violência doméstica, de agressões e de estupros. Desenvolveram grupos de debate e de apoio mútuo nas redes sociais. Discutiram e condenaram o machismo, o racismo e a homofobia e trouxeram força para a nova onda de um movimento que tem mudado mentalidades, comportamentos e relações. Diante de tamanha mobilização, “feminismo” foi escolhida a palavra de 2017 pelo dicionário americano Merriam-Webster e a busca pelo termo no Google cresceu 200% desde 2016. “Estamos em um momento em que o feminismo se tornou a grande força de enfrentamento não só do machismo, mas que leva adiante a luta anti-racista e pelos direitos das mais diversas minorias políticas”, afirma a filósofa Marcia Tiburi, autora do recém-lançado “Feminismo em Comum” (Rosa dos Tempos).

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Entre os marcos do feminismo atual estão as redes de solidariedade desenvolvidas por mulheres. A maioria de apoio para vítimas de violência. “São alternativas criadas já que as instituições tradicionais não são responsáveis o suficiente”, afirma Tiburi. As conexões se dão, em grande parte, pelas redes sociais. O Fórum Nacional de Políticas Públicas para Mulheres é um dos grupos de referência, começou como uma página no Facebook e depois migrou para o Whatsapp e hoje inclui pessoas de todo o País. “A ideia inicial era trocar informações sobre cursos e artigos e reunir contatos”, afirma Ana Victoriano, dona da iniciativa. “Mas hoje se tornou uma comunidade de ajuda a vítimas de agressões. Não imaginei que tomaria essa proporção.” Os pedidos de ajuda chegam diariamente e, por meio da rede, os contatos são feitos para que as mulheres possam receber orientação adequada. Depois de passar meses apanhando do marido, a advogada Maíra Moura Soares Neves, 41 anos, procurou Ana em outubro de 2017 e conseguiu deixar o casamento em que era agredida constantemente e do qual se via refém. “Em qualquer conversa, ouvia gritos de vagabunda ou recebia tapas”, diz. Moradora da cidade de Barra do Bugres, a 180km de Cuiabá (MT), era casada com um delegado e não tinha como denunciá-lo em uma delegacia. “Com certeza iam engavetar meu caso.” Maíra então usou o Facebook para pedir ajuda a Ana, que acionou conhecidas em São Paulo. Elas falaram com juristas no Mato Grosso que indicaram uma promotora em uma cidade próxima a dela. “Criaram uma corrente de ajuda”, diz. Em pouco tempo, uma denúncia foi feita contra o ex-marido de Maíra e ela se separou. A mesma promotora foi quem a ajudou a retirar seus pertences da antiga casa. Ao contar sua história, Maíra chora, respira fundo e conclui: “Eu estava de mãos atadas, mas essa rede de mulheres me salvou.”

MOBILIZAÇÃO Passeata em apoio ao movimento americano Me Too (Crédito:Juliette Pavy)

Duas campanhas recentes que surgiram nos Estados Unidos dão o tom da amplificação das transformações: “Me Too” (“eu também”, em português), em que mulheres expuseram abusadores contando suas histórias; e Time’s Up (algo como “esse tempo acabou”, em tradução livre), que inclui a criação de um fundo para ajudar vítimas de assédio sexual na indústria do entretenimento em Hollywood. Além dessas iniciativas, o fim das “grid girls”, garotas que frequentavam os locais de provas da Fórmula 1 com roupas minúsculas, também é um indício da mudança de postura em relação às mulheres. Outro exemplo é o latino-americano Ni Una Menos, que organiza passeatas anuais contra o feminicídio. O movimento chegou também ao Oriente Médio. No Irã, em janeiro e fevereiro deste ano, mulheres protestaram contra a obrigatoriedade do uso do véu, em vigor desde 1979. Cerca de 30 foram presas em uma manifestação recente. Na Arábia Saudita, o governo mudou uma lei que exigia o consentimento de um homem para que uma mulher abrisse uma empresa. O feminismo tem se espalhando por vários lugares do mundo e há causas similares. Mas é preciso pensar nas diversas realidades enfrentadas pelas mulheres, inclusive no Brasil.

MOBILIZAÇÃO Campanha contra o assédio durante o Carnaval de 2018 (Crédito:Silvia Izquierdo)

Feminismos

O feminismo brasileiro tem características específicas como a necessidade de pensar as diferentes perspectivas envolvendo gênero e, principalmente, raça, classe e sexualidade. É um dos debates mais atuais dentro do movimento. “Ser branca em São Paulo é diferente de ser negra e nordestina”, diz Mafoane Odara, coordenadora de projetos do Instituto Avon. Diretora executiva da Anistia Internacional e fundadora da ONG Criola, Jurema Werneck aponta que o feminismo clássico trata da mulher branca de classe média, mas há outras questões que precisam ser mais debatidas. “O movimento ainda precisa ver como lidar com a maioria das mulheres, e isso inclui negras, trans, entre outros grupos”, afirma. Ela complementa: “Não digo que as pautas não ressoem, nem estou negligenciando reivindicações, mas é preciso retornar aos princípios do próprio feminismo de igualdade e justiça e ter olhar mais amplo.” Integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, Juliana Gonçalves afirma que hoje o correto é falar sobre feminismos, no plural, e sobre como os grupos estão se articulando. “As sufragistas e a queima dos sutiãs são sempre lembradas, mas a resistência começou bem antes”, diz. “Enquanto as mulheres brancas estavam batalhando para entrar no mercado de trabalho, minhas ancestrais já trabalhavam há muito tempo.” Gonçalves ressalta que respeitar diferenças não pode ser motriz de desigualdade ou separação. Pelo contrário, é o que dá mais força. “Mas é preciso escuta. Quem tem uma bagagem diferente não pode ser tratada como uma desigual, pois a intolerância se traduz em números que matam e ferem.”

AJUDA Depois de ser espancada pelo marido, a advogada Najara Barreto auxilia outras mulheres em situação similar (Crédito:Marco Ankosqui)

No caso de mulheres negras, que representam um quarto da população brasileira, a sobreposição entre desigualdade de gênero e de raça resulta em números alarmantes. O Mapa da Violência 2015 mostra que a taxa de homicídios entre negras aumentou 54,2% entre 2003 e 2013. No mesmo período, a taxa entre brancas caiu em 9,8% (confira no quadro ao lado). Além disso, é o perfil social com os maiores índices de desemprego: 17,4% contra 11,6% da média feminina com ensino médio. Resistência do mercado de trabalho e violência constante são realidades também para transexuais e travestis, em um País com as mais altas taxas de assassinatos desse grupo no mundo. Em 2016, aconteceu uma morte a cada dois dias. Diante desses dados e com a popularização do feminismo, discute-se atualmente a necessidade de olhar para as diferentes questões e se unir para combatê-los. “Essas outras vertentes surgem como forma de forçar o feminismo mais hegemônico a repensar suas práticas e perspectivas, se não a luta só serve para garantir igualdade a um segmento muito específico de mulheres”, afirma a escritora e militante feminista trans Amara Moira.

Foi ao perceber a dificuldade de mulheres negras no mercado de trabalho que a empresária e coach Ana Bernardes teve a ideia de se dedicar a ajudá-las. Criou o grupo Afro Empoderadas e Empreendedoras, hoje com mais de 2 mil pessoas, e presta consultoria empresarial voluntária, em eventos e acompanhamento individual — como faz com a dentista Kátia Cristina da Silva Neves, que gere seu próprio consultório. “Percebi que somos nós por nós”, diz Bernardes. Para a promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, especialista em disparidades de gênero, a luta pela igualdade de oportunidades é justificada pelo efeito positivo também no desenvolvimento econômico. “Contemplar a parcela feminina da população, mais de 50%, fará com que o País seja mais desenvolvido”, afirma. “Por isso, podemos dizer que ser feminista e exigir mais espaços e oportunidades para as mulheres não tem a ver com ideologia ou tendência política para a esquerda ou direita, é uma questão, inclusive, econômica”, diz. Paes ressalta que, no último relatório do Fórum Econômico Mundial sobre disparidades de gênero, o Brasil caiu da posição 79 para a 90. “Essa queda tem relação com a falta de mulheres em cargos de poder”. E isso inclui o ambiente político. “Com mais mulheres no Congresso, haveria mais medidas protetivas”, afirma. Na Câmara dos Deputados, elas ocupam 10,7% das cadeiras e, no Senado, 14,8%.

O feminismo tem fomentado também mudanças no cotidiano dos brasileiros. A exemplo da discussão sobre a diferença entre assédio e paquera, que ficou mais intensa no início de 2018, quando a apresentadora americana Oprah Winfrey fez um discurso no Globo de Ouro falando sobre as situações vividas por mulheres na indústria do audiovisual em Hollywood. Na sequência, 100 francesas assinaram uma carta falando sobre o direito do homem de importunar uma mulher. Quais os limites da interação durante um flerte? O que é considerado ofensivo? Perguntas que muitas pessoas se fizeram podem ter sido respondidas durante o Carnaval deste ano, época em que os casos de violência sexual chegam a aumentar em 90%. Durante a folia, em diferentes cidades, foram distribuídos adesivos e cartazes com a frase “não é não”. Vídeos se propagaram pelas redes sociais com dizeres como “depois do não, tudo é assédio” e “meu corpo não é folia”, marcas de cerveja investiram em publicidade se posicionando contra abusos, cantores em blocos e trios elétricos lembraram a todo momento que violência contra a mulher é crime. E mais uma vez mulheres se organizaram com a campanha “Aconteceu no Carnaval”, site que recebe relatos dos abusos sofridos.

HOLLYWOOD Atrizes e ativistas de preto em protesto no Globo de Ouro: fim de um longo silêncio (Crédito:Tara Ziemba)

“Exigir mais espaços e oportunidades para as mulheres não tem a ver com ideologia” Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, promotora de Justiça

No ambiente de trabalho, assédios também não são mais vistos com naturalidade. Nas empresas e instituições, mulheres têm se organizado para discutir situações e apontar nomes, inclusive expondo situações nas redes sociais. Um caso emblemático no Brasil envolve o ministério que é sinônimo da diplomacia: o Itamaraty, que registra casos recorrentes de embaixadores assediando sexualmente as funcionárias sem receber punição. “O fato de não haver mulheres na alta cúpula explica como um assediador pode ocupar o mesmo cargo até hoje, pois há apoio de chefes”, afirma uma integrante do Grupo de Mulheres Diplomatas, que falou à ISTOÉ sob anonimato. Para mudar esse cenário, é preciso que haja também envolvimento dos homens.

UNIDAS Manifestação com referência ao Time’s Up, fundo que ajuda vítimas de assédio na indústria do cinema (Crédito:NurPhoto)

“Eles precisam entender a necessidade de abrir um espaço que é nosso mas que não estamos ocupando”, afirma a promotora Gabriela Manssur, autora do projeto Tempo de Despertar, curso voltado para explicar a agressores de mulheres a gravidade do crime e evitar que voltem a cometê-lo.

CORRENTE Maíra Neves contou com uma rede de mulheres que auxilia vítimas de violência para sair de um casamento em
que era agredida: “Elas me salvaram” (Crédito:Divulgação)

Nada a perder

Manifestações, campanhas, protestos, grupos, apoios. As redes de mulheres crescem e mostram o caminho que o feminismo brasileiro deve seguir nos próximos anos. A advogada Najara Barreto, 37 anos, é um exemplo de como uma ajuda pontual pode se expandir para o coletivo. Espancada pelo marido, não via a possibilidade de se separar por não trabalhar e ter que cuidar dos filhos. Com a ajuda do projeto Justiça de Saia, da promotora Gabriela Manssur, que auxilia vítimas de violência doméstica, conseguiu um emprego, se separou e hoje trabalha na equipe de Manssur. “Passo meu celular pra quem quiser, converso com as mulheres pelo Whatsapp, dou apoio total. Depois do que passei e por ter conseguido me reerguer, quero fazer com que outras vítimas sejam salvas também”, diz. A projeção que o movimento feminista e de solidariedade tem ganhado pode acarretar, segundo Tiburi, em um avanço reacionário. “O feminismo vai ser combatido porque é inovador e transformador, porque garante liberdades individuais e é ultrademocrático. A lógica da história é essa”, diz. “O sistema social atual cria o medo: de denunciar em uma delegacia, de procurar ajuda, de se manifestar”, afirma Tiburi, que conclui: “Mas as mulheres perceberam que perderam espaço, que são violentadas, fisicamente e em sua dignidade, no seu corpo e no seu trabalho. E agora não há nada a perder com essa luta, que só vai crescer.”

EMPREENDEDORA A dentista Kátia Neves (esq.) e a coach Ana Bernardes: consultoria a mulheres que gerem o próprio negócio (Crédito:Gabriel Reis)

 

 

 

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