Saiu no site O GLOBO:
Veja publicação original: Qual é a diferença entre cantada e assédio?
POR ANA PAULA BLOWER E PAULA FERREIRA
“Não é não”, “Em uma situação onde há hierarquia, não pode”, “Não insistir”, “Deve haver consentimento”: essas são algumas das reflexões de mulheres ouvidas pelo GLOBO quando perguntadas sobre qual seria, afinal, a diferença entre a cantada e o assédio.
A polêmica sobre o que muda de uma situação para outra ganhou as rodas de conversa e as redes sociais após a publicação de uma carta assinada por cem francesas — entre elas, a atriz Catherine Deneuve — que defendem a liberdade dos homens “de importunar” como algo indispensável à liberdade sexual. O texto foi uma resposta ao movimento de artistas americanas contra o assédio, que teve início com o escândalo envolvendo o produtor de cinema Harvey Weinstein e alcançou seu ponto alto no Globo de Ouro, quando quase todas as convidadas foram à premiação vestidas de preto.
Veja como mulheres de diferentes gerações respondem a esta questão.
- ‘A diferença é a palavra ‘não”
- ‘A liberdade sexual como conquista’
- ‘Ser mulher neste mundo ainda é perigoso’
- ‘A diferença começa na intenção’
- ‘Paquera é escolha; assédio, não’
- ‘A chave desse suposto mistério é: consentimento’
- ‘Não é desejo sexual, é controle’
- ‘O que as mulheres estão exigindo é a liberdade’
‘A diferença é a palavra ‘não”
“Os caras têm que aprender a perceber os contextos nos quais as investidas são bem vindas. E tem sempre limite. Porque ‘não’ é ‘não’, sem discussão!”
> FABIANA KENT
30 ANOS // INTERNACIONALISTA
“Existe uma diferença entre paquera e assédio, é a palavrinha ‘não’. Quando uma mulher nega ou ignora uma investida, é a hora do homem não tentar mais nada.”
> JULIANA RICCI
27 ANOS // PROFESSORA E FUNDADORA
DO GRUPO “INDIQUE UMA MINA”
“Na cabeça do abusador, eu devia aceitar as coisas que ele diz, sem ele ter parado para pensar que, se não houve reciprocidade, ele pode ter me assediado.”
> EMYLEE SILVA
19 ANOS // MODELO E TÉCNICA EM MECÂNICA
“Acho fundamental que a paquera continue existindo. O ‘flerte’ é gostoso para o ego: a troca de olhar, o sorriso de canto de boca… O assédio é totalmente diferente: é agressivo, direto e aterrorizante.”
> FLÁVIA MACEDO
56 ANOS // FUNCIONÁRIA PÚBLICA
‘A liberdade sexual como conquista’
“Não sei se é possível estabelecer uma diferença categórica entre o que é assédio e elogio. O elogio “como você está bonita” é do mesmo teor de “como é gostosa”? Parece-me que não. É compreensível que uma mulher sorria em resposta ao primeiro galanteio e não goste do outro, pela grosseria. O assédio vai bem além das palavras. É uma espécie de perseguição. Com frequência, beira a agressividade. Por que uma mulher haveria de gostar disso? O assédio pode nos dar medo, principalmente se é em um lugar onde não há como nos protegermos.
Não posso me considerar exemplo para as meninas de hoje. Sou de uma geração que via a liberdade sexual como uma conquista. Nos anos 1990, tive uma coluna na Playboy, a “De mulher para homem”, e meu primeiro texto era um elogio à cantada, imaginem! Hoje eu sofreria “escracho” das novas feministas. Mas era uma postura crítica à onda de puritanismo do feminismo americano.
Preferia, e prefiro, o feminismo francês: mulheres livres, sem “repulsa ao sexo”, capazes de responder abordagens masculinas de igual pra igual. Mas parece que isto tem sido difícil porque os homens jovens hoje estão mais agressivos. O machismo voltou a ser pesado. Não há como “pegar leve” diante de uma abordagem intimidadora”.
* Maria Rita Kehl é psicanalista
‘Ser mulher neste mundo ainda é perigoso’
“A grande diferença que separa uma paquera/elogio do assédio é o consentimento. Esse homem que está te “elogiando” quer, por meio desse “elogio”, estabelecer uma conexão com você ou ele está falando o que quer porque sente que pode? Quando um cara no meio da rua me chama de gostosa, quando pega no meu corpo sem consentimento, quando diminui minha existência a um objeto sexual, já fica meio claro que não é elogio nenhum, isso é assédio. Quando eu me sinto impotente e com medo diante da abordagem de um homem, seja física ou verbal, é assédio.
Também é assédio quando a pessoa está em uma situação profissional e recebe uma cantada. Mesmo quando está trabalhando, o homem não está te levando a sério. Como trabalho com arte, muitas vezes eles usam isso para dar em cima de mim, o que mostra que não estão me vendo como artista, mas estão agindo dessa forma pelo fato de eu ser mulher.
Se não me sinto ameaçada, por estar em local público, respondo ao assédio, tento mostrar que não foi legal. Quando alguém grita, grito de volta. Mas nem sempre é a melhor opção, por questões de segurança. Infelizmente ser mulher neste mundo ainda é perigoso”.
* Estudante, idealizadora do projeto de arte de rua Frida Feminista
‘A diferença começa na intenção’
“A diferença já começa na intenção de quem faz. O cara que te aborda na rua só pra dizer que você é gostosa não está te paquerando. Ele não quer abrir um diálogo, só quer demonstrar que tem o poder de fazer isso.”
> ISABELA JALOTO
25 ANOS // ESTUDANTE DE PUBLICIDADE
“Paquera ocorre quando existe uma troca e os interesses são parecidos, especialmente o desejo. Até posso entender um elogio feito de forma respeitosa, mas, sinceramente, já me sinto desconfortável. O assédio invade sua individualidade de forma ofensiva.”
> MARIANA MARCONSIN
27 ANOS // ENFERMEIRA
“Existe uma linha tênue. Elogio não deixa uma mulher constrangida, não ofende e nem objetifica a mulher. Assédio é quando uma pessoa desrespeita meu espaço e me enxerga como mero objeto sexual à sua disposição”.
> VITÓRIA RÉGIA DA SILVA
22 ANOS // JORNALISTA
“O grande problema é que a maioria esmagadora dos homens acha que é super ok beijar a sua mão, alisar seu cabelo, dizer ‘nossa, que gostosa’, ou até mesmo ‘puxar papo’, sem nem ao menos se perguntar se a mulher está interessada.”
> GABRIELA TELLES
23 ANOS // JORNALISTA
‘Paquera é escolha; assédio, não’
“Vivemos numa sociedade que confunde paquera com assédio recorrentemente. O corpo da mulher não é visto como sendo agenciado por ela, já que ela não é compreendida como indivíduo completo. A confusão se dá se não falamos de consentimento. A paquera é algo consentido, uma escolha dos envolvidos. Já o assédio, não. No assédio, é retirado da vítima seu próprio direito: o assediador entende que tem poder sobre o outro, o vê como subalterno. A paquera é troca e não imposição.
As pessoas julgam que chamar uma mulher negra de “mulata linda” é elogio, mas é uma manifestação racista. Assim como chamar uma mulher de “gostosa” nas ruas é só assédio. Para refletir: “Se essa pessoa fosse um homem, eu faria tal ‘elogio’?”; “abordaria na rua como se fosse alguém que conheço?”. Como citei raça, vale a pergunta: “Se a pessoa fosse branca, faria tal ‘elogio’?”.
Para mim, há dois limites: consentimento e intimidade. Uma vez respondi ao “gostosa” de um desconhecido, e o assédio se tornou racista quando ele, bravo por eu não aceitar sua violência, disse: “Com esse cabelo feio, ninguém iria te querer”. Por mais que eu possa, individualmente, responder ao assédio, é apenas coletivamente que será efetivo viver com dignidade sendo mulher e negra”.
* Stephanie Ribeiro é arquiteta
‘A chave desse suposto mistério é: consentimento’
“Não cola mais, em 2018, a alegada confusão entre os termos assédio e paquera. E a chave desse suposto mistério é uma só: consentimento. Se não dei, a linha do meu desejo e da minha autonomia foi cruzada, e isso é algo que nós mulheres não devemos mais tolerar.
Éramos umas cinco amigas. Vestimos as fantasias e também dividimos as purpurinas. Até pisarmos na rua, escolher o figurino era a única preocupação. Mas bastou chegarmos perto de um bloco para sermos abordadas de forma violenta por homens que, diante de nossa negativa, usaram de vasta gama de xingamentos para nos afrontar e humilhar. Aconteceu em 2015. Eu e uma amiga tínhamos acabado de criar o Bloco Mulheres Rodadas.
Em 2016, o Data Popular divulgou uma pesquisa em que 61% dos homens afirmavam que uma mulher pulando carnaval não pode reclamar de ser cantada. Nos últimos anos, elas começaram também a requisitar o papel de sujeitas. Uma mulher que passa a se entender como agente da festa, levando um instrumento debaixo do braço ou dançando, ganha mais poder para exigir que sua participação aconteça com segurança e liberdade. Agora que o debate sobre assédio ganhou fôlego hollywoodiano, quem faz carnaval de rua também precisa entender que a pauta é de todos os blocos, não apenas das foliãs”.
* Renata Rodrigues é jornalista e fundadora do Bloco Mulheres Rodadas
‘Não é desejo sexual, é controle’
“Um flerte indica uma relação que contém consentimento. Assédio não tem. Essas abordagens são feitas de forma que assustam, amedrontam, traumatizam as mulheres. Muitas pessoas perguntam: “Se eu chamar uma mulher de linda na rua, estou ofendendo?”. A questão não é a palavra, mas o fato de que vivemos num mundo onde a violência contra a mulher é real.
Quando um homem chama uma mulher de linda na rua e faz uma abordagem que ela não está esperando, sem consentimento, ele sabe que não vai violentá-la, mas a mulher, não. Não sabe se será agredida caso negue esse assédio.
É muito difícil conversar sobre o tema, porque as pessoas querem que façamos um manual, e isso não existe. Muitas de nós somos sobreviventes de estupro e é até um pouco violento quando exigimos dessas mulheres, das próprias vítimas, que expliquem e tracem esses limites entre as situações.
Precisamos pedir que os homens colaborem, que discutam masculinidade. Não é tão difícil perceber que está incomodando. Na campanha “Chega de Fiu Fiu”, falamos de assédio sexual em locais públicos: são mulheres que são entendidas como seres domésticos que não deveriam estar na rua.
O assédio não tem nada a ver com desejo sexual, mas com controle, com mostrar que seu corpo é público, e não é seu”.
* Juliana de Faria é criadora do movimento “Chega de fiu fiu”
‘O que as mulheres estão exigindo é a liberdade’
“As denúncias de assédio, quebrando o silêncio e transferindo a vergonha para o agressor, são um momento de mudança civilizatória.
Quando alguém fala no direito de importunar uma mulher como exercício da liberdade sexual, distorce o sentido da palavra liberdade. O que as mulheres estão exigindo é exatamente a liberdade de sair na rua, trabalhar e se divertir em paz, sem serem importunadas. Quando este direito lhe é negado por assédio ou violência, é a sua sua liberdade e a sua dignidade que estão sendo negadas.
O jogo de sedução entre homem e mulher é um encontro em que ambos têm capacidade plena de escolha, concordância ou recusa. Isso exclui hierarquia, poder ou autoridade de um sobre outro.
Qualquer homem que não seja cínico sabe que há limites a não serem ultrapassados. Toda mulher sabe o que, com quem e quando quer. O mito de que a mulher, primeiro, diz “não” para depois dizer “sim” é um incentivo à negação de sua vontade. Quando ela não quer, ponto final. O resto é vestígio da Idade Pedra”.
* Rosiska Darcy de Oliveira é escritora
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