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Veja publicação original: Homem tem lugar no feminismo? Feministas dizem qual é o papel deles na luta
Antonia, Djamila e Nathalia
Imagem: Reprodução Natacha Cortêz
“Feminismo” foi a palavra de 2017. A escolha é do dicionário americano Merriam-Webster, que concluiu que a busca pelo termo cresceu depois da marcha de mulheres contra Donald Trump, que aconteceu na ocasião da posse do presidente, não só nos Estados Unidos como em várias capitais do mundo.
Se você ainda não ouviu falar desse movimento organizado e protagonizado por mulheres pela igualdade de gêneros, mais cedo ou mais tarde vai ser confrontado por seus valores e reivindicações que buscam uma verdadeira mudança de paradigmas na sociedade. “O futuro é feminino”, aposta o slogan feminista mais pulverizado dos últimos tempos.
Mas e quanto aos homens nisso tudo: qual é o lugar deles no movimento? Um homem pode se dizer feminista? Aliás, um homem pode reivindicar valores feministas e falar em nome das mulheres? Se sim, quando? Se não, quando eles devem apenas ouvir?
Antonia Pellegrino, codiretora de “Primavera das mulheres”, documentário que radiografou os caminhos que o movimento feminista tem tomado no Brasil, Djamila Ribeiro, filósofa e autora de “O que é lugar de fala?” e mestre em psicóloga Nathalia Borges, criadora da fanpage “Já falou para seu menino hoje?” – mulheres que estiveram à frente da luta feminista no país em 2017 – respondem sobre o (delicado) lugar do homem no feminismo.
UOL: Qual é o lugar do homem no feminismo?
Antonia: O feminismo é uma luta das mulheres, mas que só se realiza plenamente com a aliança dos homens. Porque não há apenas mulheres no mundo. Então o lugar dos homens na nossa luta é o lugar dos aliados. E precisamos deles.
Djamila: Ter práticas que contribuam para a vida das mulheres. Se é um legislador, pensar na descriminalização do aborto, por exemplo. Se é um gestor público, pensar em política para as mulheres. Na hora de discutir transporte coletivo, tem que discutir gênero. Na hora de discutir direito à cidade, tem que discutir gênero. Por que, se não há creches o suficiente, onde a mulher vai deixar o filho dela para poder trabalhar? Se você é professor, na bibliografia do seu curso: há quantas mulheres? Aliás, você reprime um aluno que está assediando uma aluna?
Nathalia H: Há espaço para homem no feminismo. E é justamente enfrentando o machismo no seu ambiente e situações do cotidiano, é conversando com o seu colega que assediou uma moça na rua, é sendo responsável nos afazeres domésticos e assumindo o cuidado dos filhos. Ou seja, há espaço para homens na militância desde que seja respeitado o protagonismo da mulher no movimento feminista.
Um homem pode se dizer feminista?
Antonia: Um homem pode se dizer aliado do feminismo, simpatizante às lutas feministas, em processo de desconstrução à luz do feminismo. Mas se dizer feminista não faz sentido. Assim como eu, mulher branca, não posso me dizer uma feminista negra. Eu sou uma aliada do movimento negro, mas me entender como uma feminista negra não faz o menor sentido.
Djamila: Homens precisam discutir masculinidades, primeiramente. É interessante que entendam essa masculinidade construída na agressividade, essa masculinidade tóxica que não pode ouvir não. A filósofa Simone de Beauvoir disse: o único homem feminista é aquele que enxerga a mulher como sujeito. Como ainda são raros os homens que fazem isso, então talvez eu diga que não.
“O único homem feminista é aquele que enxerga a mulher como sujeito”
Sobre “lugar de fala”, o que é? Aliás, no feminismo, um homem pode assumir esse lugar? Se sim, quando?
Antonia: O lugar de fala é um conceito que expande a percepção sobre quem fala. Além da mensagem, ele aponta para quem está falando e o lugar de onde a pessoa vem. Estas camadas se tornaram determinantes na produção discursiva. Mas o lugar de fala não pode ser a única categoria que determina quem pode falar sobre algo, senão acaba produzindo um estreitamento às avessas. Essa é a raiz da ideia da esquerda caviar, por exemplo. Porque passa pela compreensão de que quem é de classe média ou média alta não pode compartilhar valores de esquerda. Portanto, acho que homens podem sim falar sobre feminismo, mas não pautar a luta feminista.
Como você explica o que é o ‘lugar de fala’?
Djamila: É pensar, sobretudo, quem foi autorizado a falar numa sociedade racista, machista. É só a gente começar a olhar as próprias produções bibliográficas dos nossos cursos, é só a gente começar a olhar quem são, numa redação, jornalistas. A gente não parte dos mesmos lugares de direito à fala. As pessoas gostam de dizer que tem que dialogar, mas como dialogar se um está no topo e o outro está na base? O outro sequer é ouvido, né? Então a gente falar de lugares de fala é pensar as hierarquias que estão postas na sociedade que autoriza que determinados sujeitos falem, ao passo que outros ficam invisíveis.
O que define um sujeito “esquerdomacho”?
Antonia: Esquerdomacho é o homem que se diz desconstruído, aliado ao movimento feminista, mas segue reproduzindo comportamentos machistas.
É possível educar novos meninos com valores feministas e estimular neles transformações?
Nathalia: Tão importante quanto empoderar meninas é conscientizar meninos. Pequenas atitudes do dia a dia são capazes de transformar uma realidade machista e criar uma geração mais feliz. As lições devem ser aplicadas na escola e dentro de casa. Ensine sobre empatia: meninos precisam aprender a se colocar no lugar do outro, e isso só será possível à medida que eles conhecerem seus próprios sentimentos e dores físicas e emocionais. Portanto, jamais diga a eles que homens não choram. Fale sobre consentimento: ainda é bastante comum que agressões físicas entre crianças sejam tratadas como indícios de paquera. Nunca diga “seja homem”: ao pedir que se comporte como o estereótipo de macho, você exige que ele negue sentimentos e seja agressivo. Isso é opressor e violento.
Meninos precisam aprender a se colocar no lugar do outro, e isso só será possível à medida que eles conhecerem seus próprios sentimentos
O feminismo quer que homens e mulheres sejam iguais?
Antonia: O feminismo quer que homens e mulheres tenham os mesmos direitos. Quer que a sociedade, que foi construída pelos homens e para os homens não nos coloque para trás pelo simples fato de sermos mulheres.
Nathalia: Tratamos meninas e meninos de forma diferente (e desigual), e isso já começa antes deles nascerem. A clássica divisão entre rosa e azul já faz parte da vida da família desde que o ultrassom revela qual o sexo do bebê. Ao estabelecer o que é de menino e de menina, os adultos, a mídia e a sociedade de modo geral, limitam as vivências das crianças, além de rotular espaços e empobrecer possibilidades de exploração do mundo para ambos: meninos brincam de bola, carrinho, lego, ferramentas – objetos que os incentivam a se apropriarem do mundo, mas não de sua sensibilidade. Já as meninas brincam com bonecas, fogões e casinhas – objetos que podem restringi-las ao espaço doméstico e de maternagem. O que quero ressaltar é que embora existam diferenças biológicas entre meninos e meninas, elas não podem resultar em direitos sociais desiguais.
Por que a “lenda” de que feministas têm pé atrás com os homens? De onde vem essa ideia? Ela faz sentido?
Antonia: Há muitos mitos que foram construídos para desempoderar mulheres. Por exemplo, o mito do relógio biológico, o mito de que mulheres casadas são mais felizes, o mito de que mulher não gosta de mulher. Este mito de que feminista tem pé atrás com homem é mais um desta lista. Agora, é claro que mulheres feministas são mais vacinadas contra comportamentos machistas. Então certamente elas dão mais trabalho para homens machistas. Ou simplesmente preferem não se relacionar com eles. Por isso a gente sempre diz: homens, melhorem.
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