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A LIBERDADE DA MULHER TERMINA ONDE COMEÇA

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Veja publicação original:   A LIBERDADE DA MULHER TERMINA ONDE COMEÇA

 

Nas últimas semanas, temos assistido à forma orgânica como o movimento #MeToo cresceu com milhões de mulheres (e alguns homens) a partilharem as suas histórias de assédio e abuso sexual, permitindo um momento de catarse em que o sentimento de justiça adiada predomina. A maior parte das acusações está a suscitar uma onda de indignação com a qual a realizadora Sarah Polley se diz surpreendida pois é como se, “subitamente, por alguma razão”, as pessoas parecessem importar-se. Na esmagadora maioria dos casos já se sabia do comportamento predatório destes homens, havia rumores no escritório, constava no meio, comentava-se em festas, eram banidos de centros comerciais por assediar menores, avisava-se possíveis vítimas, e até se referenciava em séries de televisão. Assim como, o atual presidente dos Estados Unidos da América foi eleito após candidatar-se com uma das campanhas mais misóginas de que há memória, com provas de áudio em que admite abusar sexualmente de mulheres e com nove acusações de conduta imprópria, assédio e tentativa de violação. Não é que não se soubesse em 2016, mas agora é diferente. Agora importa.

 

“Quando és uma estrela, elas deixam. Podes fazer tudo.”

Na admissão polémica de Donald Trump – presente nas gravações publicadas pelo jornal Washington Post durante a campanha à presidência dos Estados Unidos da América – a palavra “estrela” podia facilmente ser substituída por “chefe” ou “superior”. As denúncias de assédio e abuso sexual que têm vindo a fazer manchetes de jornais em vários países, indicam que há um padrão comum: abuso de poder na hierarquia profissional. Embora, como já foi provado em estudos, o assédio sexual no âmbito profissional não acontece unicamente entre funcionária/o e chefe, mas também entre colegas. E, independentemente da posição da mulher na organização/indústria – base ou chefia – verifica-se que o assédio sexual objetifica e reduz as mulheres a objetos sexuais, o que pode pôr em causa o poder (organizacional) previamente adquirido pela mesma (Quinn 2002:392). Estudos também indicam que o isolamento social e que a falta de mulheres em certas áreas profissionais – como é comum em posições seniores – aumenta a probabilidade de um homem assediar uma mulher para pô-la “no seu lugar”, e que a mesma o mantenha em segredo para preservar o seu trabalho (McLaughlin, Uggen e Blackstone 2012:642). Outros dados interessantes indicam ainda que o assédio sexual é principalmente dirigido a mulheres que não sigam ideais femininos – ou seja, que apresentam caraterísticas desviantes das associadas ao seu género – com personalidades consideradas masculinas (assertivas, dominantes e independentes), sugerindo assim que, o assédio sexual em contexto profissional, tem menos a ver com desejo sexual e mais com controlo e dominação (Berdahl 2007a, 2007b).

 

Homens muito doentes ou produto do sistema?

Alguns dos homens acusados foram já despedidos, demitidos e excluídos, mas é uma vitória com sabor amargo. Quando Harvey Weinstein ou Kevin Spacey se dizem prontos para se submeter a uma terapia que cure o seu vício por sexo, o que está a acontecer é a desculpabilização dos crimes que cometeram invocando a falta de livre-arbítrio. A rehab nestes casos é uma solução muito mais apetecível que a prisão, pois depreende que o indivíduo voltará a exercer as funções assim que estiver “curado” e, claro, apenas acessível a homens com um estatuto socioeconómico elevado que “não conseguem evitar fazê-lo”. A audácia de apelar à sensibilidade do público com argumentos como estão a “batalhar contra a dependência” e a “enfrentar os seus próprios demónios”, dá forma à narrativa que a escritora Laurie Pennie descreve como “a linguagem da loucura”. Pois, a sociedade está a chegar aos limites da negação da opressão e violência de género estrutural nela existentes, criando novos mecanismos, como a desculpabilização destes comportamentos – são homens muito doentes – para fazer sentido de uma realidade perturbadora. Continuamos a ignorar o caráter sistemático do assédio sexual em contexto laboral (e não-laboral), encaramo-lo como um acidente, um desvio à norma. “Há qualquer coisa de errado com aquele homem”, dizemos confortadas/os pela ideia. Alheias/os à possibilidade de que se o sistema produz o mesmo resultado vezes sem conta nos mais variados espaços e contextos talvez o resultado seja o pretendido, talvez o sistema esteja a produzir exatamente o que foi desenhado para produzir.

 

O estigma da mulher mentirosa e manipuladora

Muitos críticos da cultura call out e do politicamente correto não deixaram de partilhar a sua preocupação que a torrente de acusações contra homens poderosos possa trazer eventuais esquemas vingativos para arruiná-los. Bastante comum quando se debate o caráter endémico dos crimes sexuais contra as mulheres, é o estigma da mulher mentirosa e aproveitadora que não mede meios para atingir o fim – a completa ruína social do acusado. Constata-se uma elevada desproporção entre a preocupação com eventuais fabricações de acusações de violação e a percentagem real de falsas acusações. Um estudo de 2011, na Irlanda, indica que 40% dos inquiridos acredita que as acusações de violação são frequentemente falsas. Enquanto um estudo de 2005 encomendado pelo British Home Office, investigou milhares de casos de acusações de violação e verificou que 2.5% eram falsos (67 em 2.643 acusações). Estudos internacionais apontam para um consenso global entre 2 a 8% das acusações de violação não serem verdadeiras. Investigadores afirmam que apesar de a percentagem de acusações falsas ser a mesma que a percentagem de acusações falsas de outro tipo de crimes, não existe outro crime em que as vítimas sejam tão escrutinadas para provar a sua inocência. Esta tendência, indica um preconceito pessoal e societal enraizado em relação às vítimas. Estudos globais indicam ainda que é muito mais provável que as mulheres não brancas sejam vítimas de abuso sexual, mas é muito menos frequente que se acredite nas suas denúncias, devido a estereótipos de serem menos vulneráveis a ataques sexuais, resultantes de séculos de hipersexualização e desumanização.

 

De acordo com o jornal britânico, The Guardian, a indústria do cinema foi abalada por este movimento de denúncias de assédio e abuso sexual, e “há medo em todo o lado”, com todos a questionar-se: quem será o próximo? As agências de atores e relações públicas são pagas para manterem possíveis histórias fora da imprensa e redes sociais, enquanto assistentes e executivas/os juniores admitem confidencialmente estar perplexos com o facto dos seus antigos chefes ainda não terem sido denunciados. O movimento #MeToo já está nas ruas. Algo está a mudar. Talvez sejam os números arrebatadores de vítimas (mortais) de violência doméstica, talvez seja a forma gratuita com que termos pejorativos contra as mulheres passaram a fazer parte do vocabulário mainstream dos media em 2016, ou mesmo a discussão na arena pública sobre a ausência de mulheres em cargos de liderança e na participação política, mas estamos a assistir a uma gradual consciencialização da real falta de liberdade das mulheres nas sociedades onde estas têm mais direitos. Woody Allen, que foi acusado há anos de abusar sexualmente da filha adotiva, afirmou que é preciso ter cuidado com as acusações para não criar um “ambiente de caça às bruxas”, ao que, a comediante e escritora, Chelsea Handler respondeu que se trata de facto de uma caça com bruxas, pois diz-se bruxa e pronta para caçar. E a caçada não se limita aos holofotes da fama, como se explora na segunda parte deste artigo: “Não é só em Hollywood”.

 

 

REFERÊNCIAS

 

Berdahl, J.L., 2007a. Harassment based on sex: Protecting social status in the context of gender hierarchy. Academy of Management Review, 32(2), pp.641-658.

Berdahl, J. L. 2007b. The sexual harassment of uppity women. Journal of Applied Psychology, 92(2), 425-437

McLaughlin, H., Uggen, C. and Blackstone, A., 2012. Sexual harassment, workplace authority, and the paradox of power. American sociological review, 77(4), pp.625-647.

Quinn, B.A., 2002. Sexual harassment and masculinity: The power and meaning of “girl watching”. Gender & Society, 16(3), pp.386-402.

 

Susana Mourão escreve em ‪http://aquelagajafeminista.blogs.sapo.pt/ 

 

 

 

 

 

#MeToo

#BastaDeAssédio

#EspaçoPúblicoCorpoPrivado

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