Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Lidia Aratangy | Por que tanto ódio?
A psicanalista discute violência e solidariedade
Life is very short, and there’s no time for fussing and fighting.
Fico chocada com a violência de alguns comentários postados na internet a propósito de artigos ou entrevistas. De onde vem tanto ódio, tanta violência?
É verdade que a agressividade faz parte do humano. Também é fato que nossa cultura favorece e incentiva a violência. Os meios de comunicação dão destaque às figuras de criminosos, raramente dos heróis que salvam vítimas. A primeira página de jornais e as capas de revista ostentavam, por exemplo, a imagem do rapaz que invadiu uma escola do Realengo, no Rio, e matou muitas crianças, mas nem uma imagem do guarda que entrou sozinho na escola, para deter o criminoso. Locutores esportivos referem-se à partida de futebol como uma batalha, na qual guerreiros vão buscar vingança por uma derrota sofrida.
Mas, se olharmos para os primórdios da nossa espécie, veremos que não foi a agressividade que permitiu nossa sobrevivência. Nossos antepassados pré-históricos não eram dotados para se defender da ameaça dos predadores: não tinham garras, nem braços fortes, nem mandíbulas poderosas. Também não estavam aparelhados para fugir, com a precária marcha bípede. O que permitiu à nossa espécie sobreviver aos perigos foi a capacidade de controlar a agressividade, que tornou possível viver em grupo, o que deu a cada um, mais recursos para se defender. Foi o que deu origem à solidariedade.
Esse atributo não está perdido. As situações de catástrofe nos mobilizam e nos unem. Pense no terrível acidente sofrido pelos jogadores da Chapecoense, que nos comoveu a todos. Vimos políticos sisudos e contidos chorando como crianças desamparadas, assistimos a gestos de solidariedade dos jogadores de todos os times, os profissionais de saúde do mundo todo se dispuseram a prestar socorro. Isso se repete em todas as tragédias que nos atingem em qualquer lugar do mundo. Tsunamis, terremotos, incêndios – tudo isso mobiliza a todos nós. Ninguém presta ajuda anonimamente a estranhos para ganhar fama e fortuna. São gestos de pura solidariedade.
O que acontece então com essas pessoas sensíveis e prestativas ao se deparar, na Internet, com uma opinião com a qual não concordam? O que faz com que indivíduos cordiais e generosos se expressem com palavras raivosas e preconceituosas? Que poder transformador a internet exerce sobre nós?
Com a sensação de insegurança que cerca nossa vida, buscamos, como nossos antepassados, a proteção do grupo. Mas hoje o grupo humano é vasto demais para nos acolher. Formamos, então, grupos de pertinência que agreguem os que pensam da mesma forma, ainda que com critérios preconceituosos. Somos do grupo dos brancos (ou dos roxos, ou dos amarelos, ou dos verdes), ou dos que acreditam em Zeus, e não em Jesus ou Maomé. Até aí, esses grupos são apenas excludentes. Mas basta um passo para taxar nosso grupo de “grupo do bem” e todos os outros de “grupos do mal” – portanto inimigos a serem combatidos e odiados. Se, para exprimir virulentamente esse ódio, é suficiente apertar anonimamente algumas teclas, está encontrado o canal para ferir o “inimigo” sem correr riscos. O manto do anonimato permite expor sentimentos primitivos e mesquinhos, sem medir as consequências. Daí também a liderança que o grupo exerce: uma torcida organizada é capaz de violências que nenhum de seus membros, isoladamente, cometeria. Para preservar a sensação de segurança que vem de pertencer ao grupo de iguais, fica proibida a empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro e entender seus sentimentos e valores. E sem empatia é impossível solidariedade.
Talvez as pessoas, diante do poder concedido pela impunidade e pelo anonimato, se dispam da sua identidade humana e passem a ser apenas um canal para o ódio e a intolerância. Mas o homem não é lobo do homem. O homem é irmão do homem.
Há mais de cinquenta anos um jovem poeta nos dizia que “a vida é muito curta não há tempo para resmungos e brigas”. Sábias palavras de Paul McCartney, na letra de We can work it out (Nós podemos nos entender, em tradução livre). O disco foi lançado em 1965.