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Veja publicação original: Ela fugiu da violência doméstica e é acusada de sequestrar a própria filha
“Qual foi meu crime? Foi me recusar a continuar apanhando e ter procurado outro lugar para morar”, diz a psicóloga e professora universitária Valéria Ghisi, 39, ao contar sua história ao UOL. Ela se relacionou com um homem francês por quatro anos, com quem teve uma filha. Vítima de violência doméstica, decidiu voltar ao Brasil com criança, com a permissão do pai.
No entanto, ele a denunciou por sequestro internacional. A justiça brasileira determinou a volta da menina e de Valéria à França, onde perdeu a guarda da filha e vive há um ano, sem poder trabalhar, para ver a menina em finais de semanas intercalados.
Valéria ainda aguarda julgamento de seu recurso no Brasil e na França, mas não tem muitas esperanças. Ela acusa a Advocacia-Geral da União de ignorar a questão da violência doméstica durante seu processo e também de descaso com a segurança de sua filha. “Diziam que eu o caluniava. Tudo que eu digo é mentira e tudo que ele diz é verdade”.
Como último recurso, ela lançou um abaixo-assinado para pressionar a justiça brasileira, no dia 16 de outubro. Em três dias, já recolheu quase 12 mil assinaturas a seu favor.
Procurado através de sua advogada, o ex-companheiro de Valéria não quis comentar o caso. Já a Advocacia-Geral da União diz, em e-mail ao UOL, que não agiu em defesa do pai e “apenas cumpriu seu papel institucional de observar a aludida convenção [de Haia], levando em consideração o objetivo maior do acordo internacional que é preservar o melhor interesse da criança”.
O órgão explica, ainda, que “pautou-se nos estritos limites éticos e de legalidade e de respeito ao bem-estar da criança, sendo certo que todos os atos ocorreram em estrito cumprimento a decisões judiciais e após o criterioso acompanhamento do Ministério Público Federal”.
Sobre a queixa de que teria ignorado os documentos ligados à violência doméstica sofrida por Valéria, a AGU respondeu que em nenhum momento houve prova de que tenha acontecido, mas o UOL teve acesso à prisão em flagrante e medida protetiva de Valéria em Paris. Leia o posicionamento completo aqui.
“Ele exigiu que eu abortasse”
A história começou em 2010, quando ela foi fazer seu doutorado em Paris e conheceu seu ex-companheiro. Começaram a sair e no início de 2011 a relação ficou séria. Tanto que ela concluiu o doutorado, voltou para o Brasil para apresentar sua tese, e logo retornou à França, para ficar com ele.
“Eu queria engravidar, ele sabia que tinha parado de tomar anticoncepcional”, diz ela, ao contar que, dois meses após seu retorno, engravidou e teve a primeira grande briga com o “ex”. “Falei que estava grávida e ele disse que não sabia se queria. Eu disse que voltaria para o Brasil, então”. A reação dele, porém, não foi boa, segundo ela: ele a agrediu, xingou e escondeu seu passaporte.
“Ele queria que eu abortasse e só me devolveu o documento quando marquei o procedimento”. Na França, o aborto é legalizado e Valéria conta que, ao chegar na clínica, passou por uma psicóloga, que percebeu que não era voluntário e a orientou a prestar queixa contra o pai.
Valéria não registrou a queixa, mas contou isso a ele. “Aí, ele mudou de papo, disse que estava muito nervoso e que queria uma família. Meu maior arrependimento foi ter acreditado e não voltar grávida para o Brasil”.
Abusos físicos, psicológicos e prisão em flagrante
Os primeiros três meses da gravidez, segundo ela, foram tranquilos. Logo depois, os abusos psicológicos e físicos recomeçaram. “Dizia que eu estava ficando louca, que os hormônios me faziam inventar coisas. Cuspia muito e me batia”.
É curioso, porque não sou uma pessoa passiva. Mas eu estava completamente isolada. Não era minha língua, não tinha amigos, família, ninguém.
Em janeiro de 2013, o bebê nasceu. “Passei 15 dias sozinha na maternidade, ele dizia que era desconfortável”, fala Valéria. Quando voltou para casa, ela afirma não ter podido contar com a ajuda dele, tendo de cuidar da filha sozinha.
“Tudo que eu fazia era errado. Não tinha apoio para nada e a violência continuava”. Conforme a menina foi crescendo, Valéria começou a falar de voltar para o Brasil.
“Eu não aguentava mais. Meu diploma de psicóloga não é válido aqui, então eu não podia nem trabalhar”. Ela não sabia o que fazer, até um dia em que uma discussão cresceu.
“Ele me ofendeu e me colocou para fora de casa aos chutes. Fui direto para a delegacia”, conta. Enquanto prestava queixa, ele foi atrás dela e acabou preso em flagrante. Passou 24 horas na cadeia.
A volta ao Brasil e a batalha na justiça
A partir daí, foi movida uma ação contra ele e Valéria entrou com um pedido de guarda e medida protetiva. “Na véspera da audiência sobre a violência, ele autorizou a ida da minha filha para o Brasil em troca de eu retirar a queixa”.
A negociação do acordo foi feita pelos advogados dos dois, via e-mail, e está registrada no processo.
O então marido de Valéria assinou a autorização de passaporte da filha e ela voltou para Curitiba, em meados de 2014, com a promessa de fecharem um acordo definitivo de guarda, em dois meses.
“Eu comecei a pressioná-lo sobre o tal acordo, mas ele ficou mudo. Comecei a perceber que era problema”.
Valéria entrou com um processo de guarda na justiça do Paraná. Um ano depois, porém, ele a denunciou por sequestro internacional, de acordo com a Convenção de Haia, e o processo na justiça federal se sobrepôs ao estadual. Iniciou-se, então, a batalha de Valéria na justiça pela permanência da filha no Brasil.
O que é a Convenção de Haia
A Convenção de Haia é um tratado de cooperação internacional que determina um caminho rápido para repatriação de crianças, em casos de sequestro internacional. Pela convenção, a mulher tem direito a assistência do Brasil quando é vítima de violência no exterior.
Mas a Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) orienta a não voltar com filhos para o país antes de conseguir a guarda, para que o caso não vire, como o de Valéria, uma questão de sequestro internacional.
“Quando você está em outro país, apanhando do marido, e tem autorização dele para voltar, o que você faz? Você volta. O texto da convenção é duro, mas falta interpretação. A mulher fugiu para não apanhar”, diz Marcus Pereira, advogado de Valéria.
Durante o correr do processo, Valéria solicitou da justiça francesa todos os documentos que comprovavam a violência sofrida no exterior, que foram enviados. Mas não adiantou.
Retorno a França sem garantias
Em novembro de 2016, foi determinado que a criança fosse enviada de volta para a Franca. A juíza que decidiu o caso definiu que a volta só aconteceria se fossem cumpridas condições que assegurassem a segurança dela em Paris, inclusive que a menina deveria ficar sempre com a mãe, que teria direito a pensão e não seria julgada por sequestro na França enquanto fosse decidida a guarda.
No entanto, a juíza saiu de licença maternidade e seu substituto determinou a volta imediata da garota, sem que as garantias fossem cumpridas.
Recebida pela polícia em Paris
Assim que desembarcou no aeroporto de Paris, Valéria se deparou com policiais que a esperavam. Havia uma ordem de busca e apreensão da filha. “Fui levada para uma juíza de instrução [equivalente a um delegado, no Brasil]. Eu tinha o documento da prisão em flagrante dele e a sentença da juíza brasileira na bolsa”, conta Valéria, que convenceu a autoridade francesa a deixá-la livre.
Ficou determinado que a filha deveria ficar com o pai, e a mãe teria permissão de vê-la durante duas horas todos os dias. Em alguns meses, uma audiência foi realizada e a guarda foi dada definitivamente ao pai, pela justiça francesa. Hoje, Valéria tem autorização de ver a filha em fins de semana intercalados e às quartas-feiras.
Morando na França e sem trabalhar, Valéria está passando por dificuldades. “O que me deixa revoltada é que ele usa minha filha para continuar me atingindo”.
Ela é o instrumento que ele tem para continuar fazendo comigo o que sempre fez.
No início, a menina não falava francês, e teve uma fase difícil de adaptação à nova vida. Em licença da universidade brasileira onde dá aula e sem ter seu diploma validado para atuar na França, Valéria não pode trabalhar.
“Faço uns bicos de babá ou cuidadora de animais. Mas não tenho como ficar. Vendi meu carro no Brasil, minha família fez vaquinha para que eu vivesse esse ano aqui. Mas, ano que vem, minha licença acaba, e vou ter que voltar”.
A pensão estipulada pela juíza brasileira foi paga uma vez pelo ex-companheiro de Valéria. “Isso é pavoroso. Estou deixando minha filha em um lugar que não é bom para ela. E eu não posso fazer nada”.
As outras Mães de Haia
O medo de Valéria é que, ao voltar para o Brasil, não possa mais ver a filha. Mas, considerando o processo criminal, do qual aguarda julgamento do recurso, ela tem poucas esperanças de que a justiça de qualquer um dos dois países a ajude.
Valéria entrou com uma queixa na OAB do Paraná, criou o abaixo-assinado e procurou o senador Álvaro Dias, que se pronunciou no dia 11 de setembro no Senado como forma de pressionar as autoridades jurídicas responsáveis pelo caso.
Além disso, ela encontrou outras mulheres que passam por situação semelhante. O grupo “Mães de Haia”, hoje, tem 15 mulheres que se organizam no WhatsApp e em uma página do Facebook para tentar se ajudar e dar visibilidade à questão. Todas alegam ter sido vítimas de violência doméstica no exterior e, posteriormente, acusadas de sequestro internacional.
A OAB Paraná está analisando o caso de Valéria e de algumas dessas outras mães, para verificar se houve violação de direitos humanos ou alguma irregularidade na atuação da Advocacia-Geral da União. O parecer ainda não saiu.
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