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As quebradeiras do Babaçu

Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:

 

Veja publicação original:  As quebradeiras do Babaçu

 

Elas amarraram-se às palmeiras, fugiram de espingardas e de chicotes para impedir que fazendeiros derrubassem os babaçuais para transformá-los em pastos. Depois de vencer uma sangrenta batalha, um grupo de mulheres comanda hoje a associação que colhe e vende dezenas de toneladas do fruto e briga para manter, dessa forma, a flora da região

 

maranhense Diocina Lopes dos Reis tinha 30 anos, em meados da década de 80, quando presenciou a cena que, durante anos, lhe surgiria à mente ao fechar os olhos. Já era noite na comunidade de Ludovico, no interior do Maranhão, quando sua casa se transformou em chamas. “Na hora eu só pensava em correr com as crianças. Virei um leão”, diz. Seus inimigos haviam colocado fogo no pequeno casebre de taipa e, em poucas horas, acabado com tudo o que ela tinha. O crime foi um dos atentados que Dió, hoje com 64 anos, sofreu naquela época. Agricultora e quebradeira de babaçu, um fruto nativo da região, ela encabeçava um movimento de mulheres que tentava recuperar o acesso às palmeiras da fruta, bloqueado ilegalmente por fazendeiros nas décadas de 60 e 70. Tradicionalmente, eram elas que extraíam a castanha e o óleo do babaçu – usados na culinária e no preparo do carvão, respectivamente – como parte do sustento das famílias. Vivendo ainda hoje no mesmo município, ela enumera as intimidações que sofreu na briga pela terra. “Fugi de tiros de espingarda dos capatazes, rasgaram as minhas costas com golpes de chicote quando nos colocavam pra correr, passei fome e, depois do incêndio, tive que dormir no chão da casa dos parentes”, lembra. O gesto mais emblemático dessa luta foi, ela lembra, o dia em que as mulheres da comunidade se amarraram às palmeiras para evitar que fossem cortadas.

 

 

O ritual da quebra do fruto na comunidade de São Manuel (Foto: .)

Depois de inúmeros conflitos, perseguições e mortes, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reorganizou, em 1988, a documentação dos terrenos e
acabou com a posse ilegal na região central do estado do Maranhão, onde o cultivo do babaçu é realizado. Os moradores, reunidos, formaram a cooperativa (Coopalj) que botou ordem nos negócios e fez com que as atuais 99 famílias associadas conseguissem se manter com a extração do fruto desde então. Os homens encabeçavam a parte burocrática, enquanto as mulheres se dividiam na quebra do coco. “Naquela época, tinha muito machismo nas comunidades. Quando eu saía para as reuniões da associação, tinha que ouvir coisas do tipo: ‘Essa aí é sem-vergonha, só quer saber de ficar fora de casa’ ou ‘que reu­nião que nada, vai é para o bordel’”, diz Dió, que garante nunca ter dado a mínima para os comentários atrozes. Com o tempo, elas ganharam poder na instituição.
Hoje aposentada, mas ainda na labuta, tem o importante papel de empoderar as mulheres com quem convive. “Digo sempre que não podem ser submissas ao marido e que temos que ocupar todos os lugares. Somos guerreiras!”, diz.

Quebra do fruto (Foto:  )

Comércio justo O santo graal do babaçu é o óleo extraído das amêndoas. Em 1995, a gigante de cosméticos inglesa The Body Shop, que acaba de ser adquirida pela Natura, identificou no óleo seu potencial hidratante e passou a ser uma das principais compradoras da matéria-prima, que hoje está presente em mais de 100 de seus produtos. Só no ano passado, a empresa comprou 120 toneladas de óleo. Mas monopolizar a produção está longe dos objetivos da marca – as quebradeiras também vendem para a americana Aveda e a brasileira Beraca, ambas fabricantes de cosméticos. “O que queremos é fortalecer as comunidades a manterem seus próprios negócios e continuar pagando um preço justo”, afirma Mark Davis, diretor global de pesquisas da The Body Shop.

 

 

A Maranhene Dôra e os materiais usados no trabalho (Foto:  )

Um ritual ecológico O expediente das quebradeiras começa às 7 da manhã, enquanto o sol ainda não castiga a pele. Algumas delas conseguem garantir uma boa colheita a poucos metros de casa, outras precisam percorrer quilômetros a pé, de moto ou de jegue para encontrar árvores mais carregadas. De volta para casa, cerca de 11 da manhã, levando os cestos de palha cheios, tratam de cuidar do almoço e, à tarde, começam a quebra do babaçu para retirar as amêndoas. Sentadas em roda, elas repetem o rito: entoam cantos próprios enquanto rompem as frutas com golpes de cunha e machado.

 

 

A principal preocupação dessas mulheres, hoje, é manter a integridade dos babaçuais, ameaçados pelo avanço da pecuária na região. “Nossa realidade é bem melhor do que a de nossos pais, mas ainda trabalhamos insistemente por políticas públicas que ajudem a manter as palmeiras em pé”, diz Maria das Dores Vieira Lima, a Dôra, 46 anos. Nascida e criada na comunidade de São Manuel, ela lidera a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MTR). Dôra, que quebra babaçu desde os 8, relembra a infância enquanto recebe a equipe de Marie Claire diante da mesa farta, com arroz, feijão, galinha caipira, peixe, salada e, claro, cuxá (molho típico maranhense à base de gergelim, coentro e farinha de mandioca). “Muitas vezes meus pais dormiam de barriga vazia para alimentar a mim e aos meus irmãos”, conta Dôra. “Hoje, graças a Deus, temos essa variedade na mesa, mas naquela época era preciso quebrar 10 quilos de babaçu em troca de um pacote de arroz.” Cada mulher quebra hoje, em média, 50 quilos do fruto por semana, o equivalente a R$ 125.

Os frutos do Babaçu, moradora da comunidade de Ludovico e quebradeira carrega cesta com a colheita (Foto: Marcio Scavone)

Novas gerações A quebra, uma herança local, tem sido cada vez menos executada pelos mais jovens. “Nossos filhos vão para a escola, têm outros objetivos”, diz Dôra, que acredita que as novas gerações podem continuar a tradição de maneiras diversas. “Eles podem nos ajudar na administração, na busca por políticas públicas e na divulgação do trabalho. Cada um tem sua vocação”, completa. É o caso da estudante Clemilda Silva, de 16 anos, que mora com a mãe, Francisca, em São Manuel, e ajuda na quebra desde os 5, mas pretende trabalhar em outras frentes. “Quero fazer biojoias, que são brincos, colares e pulseiras com sementes, fibras e frutos secos.” Já Daiany Miranda, 17 anos, que se forma este ano no ensino médio, deseja estudar ciências contábeis para ajudar na administração da cooperativa. “Tenho muita consciência da luta dos nossos pais, mas quero ajudar de outra forma”, conta a menina, que mora com a família em Lago do Junco, outra comunidade da região. Ela conta que nem todos os colegas pensam assim. “Muita gente da minha escola tem vergonha de falar que a mãe é quebradeira. Acho uma besteira. Tenho orgulho de saber que lutaram para que a gente tivesse uma vida melhor.” O desafio agora é lutar para que os filhos de Daiany também tenham.

 

 

 

 

 

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