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Veja publicação original: Vanessa Henriques — Assédio sexual nas universidades
Como estudante universitária, não foram poucas as situações em que ouvi falar do tema “assédio sexual” — quase sempre aos sussurros – pelos corredores das instituições pelas quais já passei. Na maior parte dos casos, os autores do assédio seguiram suas carreiras impunemente, sem qualquer advertência institucional, confortáveis para continuar atrapalhando a trajetória acadêmica de alunas e alunos universitários.
Para começo de conversa, é difícil que as vítimas de assédio exponham publicamente os casos e tomem as medidas legais cabíveis dentro e fora da universidade. Tal dificuldade é consequência do medo que se tem de sofrer represálias e perseguições do funcionário assediador (seja ele professor ou técnico), sobretudo porque as experiências pregressas de assédio informam que existe um forte “corporativismo” dentro das instituições, que acaba por proteger e acobertar situações inaceitáveis que ocorrem no espaço acadêmico.
Isto posto, tenho como objetivo utilizar-me deste espaço para alimentar o debate público em torno da questão do assédio sexual nas universidades e relatar um caso recente em que alunas assediadas decidiram pôr fim a uma situação de abuso sistemático que há anos vinha se arrastando na instituição.
Em 2015, um grupo de bravas estudantes do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (polo de Campos dos Goytacazes) decidiu se reunir para denunciar as práticas de um professor de Ciência Política que há muito já era conhecido na instituição por seu notório comportamento assediador. Com o apoio jurídico da professora e advogada Semirames Khattar, que se sensibilizou com o caso, o grupo decidiu quebrar o silêncio em torno do assunto e levar a cabo uma denúncia perante a Ouvidoria da universidade. Depois de alguns meses, a UFF instaurou uma comissão de investigação formada por um grupo de professores e técnicos do polo Campos. Mais de dez alunas foram ouvidas durante esta investigação e a comissão concluiu em parecer que a Corregedoria da UFF deveria realizar a abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o referido professor. Até meados do corrente ano as alunas ainda permaneciam sem uma resposta da instituição, quando então foram surpreendidas por uma intimação: descobriram que estavam sendo processadas pelo próprio professor por calúnia, injúria e difamação.
Chegou-se às conclusões e sugestões que são expostas ao final do relatório a partir dos depoimentos detalhados de vinte pessoas ouvidas — alunos, atuais professores e uma ex-professora da UFF — e através de registros de conversas travadas entre o professor e as vítimas através de redes sociais. Durante a investigação, apurou-se que uma professora da instituição também fora vítima de assédio por parte do acusado e chegou-se a outra ex-professora, que em seu depoimento afirma ter abandonado o vínculo com a universidade devido ao medo que sentia das ameaças do professor e, assim como aconteceu às alunas, devido à ausência de proteção institucional.
“Considero o caso bastante grave porque os relatos de assédio por parte do professor remontam há vários anos, desde o início de sua atuação profissional na UFF-Campos. Há, inclusive, informações que eu não consegui confirmar oficialmente, de que o referido docente ingressou no polo da UFF em Campos por já ter tido ‘problemas de relacionamento’ com alunas do campus de Niterói. Sendo assim, me parece que se trata de uma conduta reiterada do professor e o caso é sobretudo grave porque as alunas assediadas por ele comumente eram muito novas, nos seus 18, 19 anos, meninas recém saídas da adolescência, iniciando a vida adulta. Meninas em sua maioria vindas de outras cidades para estudar em Campos, vivendo sua primeira experiência fora da casa dos pais, tentando se adaptar à nova rotina do ambiente universitário, portanto em situação de fragilidade”, afirma o delegado Paulo Cassiano Júnior.
A juíza da 2ª Vara Federal de Campos a quem coube deferir ou não os pleitos da Polícia Federal, negou-os todos, baseando-se em uma interpretação doutrinária que compreende que o artigo 216-A do Código Penal só poderia ser aplicado a casos em que exista uma relação especificamente laboral entre acusado e acusador. Em sua decisão, a juíza afirma que neste caso “não existe relação de subordinação, tampouco superioridade ou ascendência” e que “não está configurada a seriedade da ameaça”. A magistrada conclui sua decisão apontando que compete à UFF, através do Processo Administrativo Disciplinar que foi aberto quase que ao mesmo tempo em que a Polícia Federal foi envolvida no caso, decidir qual será a punição do professor.
“O pressuposto do crime de assédio sexual é que exista uma condição de superioridade hierárquica ou de ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função. Dessa forma, uma parte da doutrina jurídica se posiciona no sentido de que esse crime apenas poderia ocorrer no âmbito de uma relação laboral, seja na iniciativa pública ou privada. Contudo, outros doutrinadores têm se posicionado no sentido de admitir o crime de assédio sexual de professor em face de aluno porque não se pode negar que haveria uma posição de domínio ou de sujeição também nessas relações. Inclusive, já há diversas condenações nesse sentido”, comenta a professora de Direito e doutora em Sociologia, Sana Gimenes.
“Entendo que realmente existe essa subordinação porque creio na existência de uma ‘ascendência funcional’ de um professor sobre um aluno. A hierarquia é clara, visto que houve alunas que optaram por mudar de turma ou por trancar a matrícula para se verem livres do professor. Houve uma aluna que decidiu atrasar a graduação em um semestre para que não precisasse ser aluna dele; outras alunas desistiram dos projetos de pesquisa por terem sido assediadas por ele. Portanto, me parece que que o professor, em relação ao aluno, ocupa uma posição privilegiada, uma posição hierárquica, uma posição que proporciona a ele conforto para retaliar as alunas que não desejem se relacionar com ele”, posiciona-se o delegado da Polícia Federal que conduziu a investigação.
Paulo Cassino continua: “A magistrada acabou adotando uma posição doutrinária mais conservadora e, em minha opinião, acabou não fazendo justiça ao caso. Os fatos investigados são tão graves que a própria universidade, por meio da comissão de sindicância composta por três professores da casa, venceu o corporativismo que é típico do ambiente universitário e decidiu pelo afastamento provisório do professor, justamente para prevenir que ele continuasse trazendo prejuízo às alunas. Se a própria universidade venceu o corporativismo para tomar essa medida drástica, é porque ela entendeu a gravidade dos fatos. Contudo, sempre respeito muito as decisões judiciais”.
As denunciantes agora aguardam os desdobramentos do processo administrativo em curso na UFF e esperam que ao menos o professor seja exonerado da instituição para que outras alunas e professoras não precisem vivenciar situações como as que elas já vivenciaram. Longe de querer fazer deste texto uma peça que sirva a linchamentos morais de um indivíduo cuja vida acadêmica foi marcada por comportamentos inconvenientes e lascivos reiteradas vezes, penso que a conduta mais eficaz para prevenir outras situações similares passa pela criação de mecanismos de proteção por parte das instituições universitárias. As universidades precisam ser espaços seguros e precisam ser capazes de criar condições favoráveis que permitam que possíveis vítimas de assédio sexual e moral possam sentir-se confortáveis para falar sobre o assunto e buscar ajuda para pôr fim às situações de abuso.
Espera-se que a Universidade Federal Fluminense seja suficientemente corajosa para pôr fim a esse tipo de violência no interior de seus campi.
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