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Veja publicação original: Carta aberta a Roger Abdelmassih
Morris Kachani
Por Teresa Cordioli
“Você matou a menina que havia dentro de mim”
Há dois meses, quando soube que o ex-médico Roger Abdelmassih, de 73 anos, tinha conseguido o direito de prisão domiciliar, só pude pensar uma coisa: eis aí um homem privilegiado e protegido pelo sistema jurídico. Apesar de ser protagonista do mais rumoroso caso de violência sexual da história do Brasil, ele pode viver hoje tranquilamente ao lado da mulher Larissa Sacco e dos filhos gêmeos de seis anos em um confortável apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Por conta de uma determinação da presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Laurita Vaz, que ratificou uma decisão de primeira instância, da 1aVara de Execuções Criminais de Taubaté, ele tem grandes possibilidades de cumprir o restante de sua pena em casa.
Abdelmassih está condenado por 48 estupros de 37 pacientes e mesmo com todo estardalhaço midiático e comoção social que rendeu seu caso, ele cumpriu, até agora, só três anos e quatro meses da pena de 181 anos em regime fechado que lhe foi fixada, o que não é quase nada. É certo que sua reputação foi para o buraco e que nunca mais poderá exercer sua profissão. Mas nessa altura ele não parece muito preocupado com isso.
Abdelmassih nunca admitiu responsabilidade por nenhum dos crimes que lhe foram imputados e ficar em casa para ele é quase como estar livre.
Sua prisão domiciliar foi concedida sob a alegação de que está com a saúde debilitada e a penitenciária do Tremembé, onde estava preso, não teria condições estruturais para o seu tratamento.
Desde setembro do ano passado, o ex-médico vinha tentando, por meio de seus advogados, um indulto humanitário por causa de seus problemas de saúde. Médicos contratados pelo próprio Abdelmassih atestaram que ele tem doenças cardíacas e poderia sofrer um infarto ou um derrame.
O indulto ele não conseguiu, mas o benefício da prisão domiciliar monitorada com uma tornozeleira eletrônica acaba tendo o mesmo efeito. Muitos presos brasileiros sofrem com doenças muito mais graves e a imensa maioria deles não recebe semelhante benefício.
Os privilégios para Abdelmassih não são de hoje. Escrevi um livro sobre seu caso chamado A Clínica, a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih que desvenda a rede de proteção que garantiu longas décadas de impunidade para o ex-médico.
Ao longo de sua carreira, ele foi protegido pelos colegas médicos, que faziam vista grossa a seu comportamento desviante, pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), por amigos poderosos e por advogados competentes. Foi pego tardiamente – só em janeiro de 2009 as acusações que o atingiam se tornaram públicas – porque as denúncias contra ele nunca prosperavam. Eram sempre inibidas na origem. Passou décadas cometendo atos de assédio sexual sem ser flagrado por qualquer tipo de fiscalização. Foi denunciado no Cremesp ainda nos anos 1990, mas nunca houve uma investigação séria sobre seu comportamento no consultório. Abdelmassih cometia seus atos perversos contra suas pacientes à luz do dia e um obsequioso silêncio o protegia.
O caso Abdelmassih era, até agora, um divisor de águas na penalização da violência contra a mulher, além de ser o maior caso de assédio sexual da história do Brasil, tanto pelo número de vítimas como pelo tamanho da pena. É também uma história do inconsciente coletivo, que mobiliza feministas e produz um salto de evolução social. Até ele ser acusado, julgado e condenado o que se viu foi um processo impecável e rigoroso com um desfecho que atendeu os anseios da opinião pública.
Pela primeira vez, um grande número de mulheres superou a vergonha e o medo e se mobilizou contra um homem poderoso que cometia ataques sexuais em série. Quando foi desmascarado, o ex-médico vivia seu momento de glória e era considerado o maior e mais inovador especialista em reprodução assistida do país.
Entre as vítimas que o denunciaram estava Teresa Cordioli, que se destaca por ser o caso de abuso sexual mais antigo cometido por Abdelmassih, ainda na década de 70. A imensa maioria dos casos de assédio que o levaram para a cadeia aconteceram entre os anos de 1995 e 2006. Teresa é uma espécie de elo perdido que comprova que o médico tinha um comportamento perverso desde a juventude. E sua opinião sobre a prisão domiciliar, expressa agora numa carta aberta, é a mesma compartilhada por todas as vítimas – trata-se um privilégio e de uma flagrante injustiça. Não se trata apenas de um retrocesso judicial na luta pelos direitos da mulher. O status atual de Abdelmassih é um trauma a mais com o qual suas vítimas precisam aprender a lidar a esta altura.
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Segue a Carta aberta a Roger Abdelmassih, encomendada por este blog, redigida pela Teresa e editada por mim.
Caro Roger,
Meu nome é Teresa Cordioli, tenho 66 anos, sou viúva, mãe, avó e sogra, formada em direito, poetisa, voluntária em várias entidades beneficentes, como o Projeto Soprando a Vida, em Indaiatuba, e a Casa Apoio, do Hospital Estadual de Sumaré, além de vítima de Roger Abdelmassih, porque assim me intitularam.
No início, tudo era estranho, machucava, doía na alma ver minha vida exposta, minhas feridas abertas, meu rosto estampado em todos os canais de TV, jornais, revistas, inclusive no jornal da minha cidade, onde sou muito conhecida, Em uma edição me surpreendi com minha foto tomando a primeira página inteira e com a manchete “Mulher Sumareense foi Estuprada”.
Costumo dizer que as denúncias feitas por nós vítimas contra você nos custaram muito caro. Para mim foi terrível – na época outras vítimas eram mais jovens e eu já, uma senhora. No início passei a ouvir críticas, senti descrédito. Tive o respeito de muitos jornalistas e o desrespeito da imprensa marrom, que, sem autorização, transcrevia besteiras em suas matérias sensacionalistas.
Ouvi e li muitos comentários terríveis que denegriam minha pessoa, alguns me achavam velha para falar de estupro, outros que você, desde sempre, teve bom gosto, como se a beleza de uma pessoa dava o direito de alguém estuprá-la. Havia aqueles que diziam que só queríamos dinheiro, indenização e mostramos que apenas queríamos justiça.
Mas toda vergonha, humilhação e exposição que sofremos valeram a pena, temos consciência que abrimos portas com nosso exemplo de coragem, força e determinação e, hoje, o número de mulheres que passaram a denunciar todo tipo de abuso é bem maior.
Diariamente se vêem notícias de mulheres denunciando estupradores, mas infelizmente a justiça ameniza os crimes hediondos. Temos recentemente o exemplo do delinquente que “apenas ejaculou no rosto” de uma passageira de ônibus. Pergunto às autoridades, qual a diferença entre uma ejaculação e uma facada? Para uma mulher machuca tanto quanto.
Diego Ferreira de Moraes, que foi solto, é tão inocente que, em 24 horas, voltou a molestar mulheres como de costume. Ele não tem medo de abusar de mulher, e você Roger, também não tinha esse medo. Pelo contrário, nos colocava em situações de perigo constante com ameaças, como foi no meu caso.
Por esse motivo não podemos ficar caladas, deixar você solto, com mordomias e internado em hospitais de primeiro mundo ou na própria casa. Tenho certeza de que, como Diego, na primeira oportunidade, você molestará uma mulher que sobrar indefesa diante dele ou fugirá, como já fugiu.
Atacar mulheres é seu vício, algo que você faz desde que era jovem e que nunca vai perder. Você é um bicho. Tenho amizade com vários médicos que estudaram com você e conhecem sua índole desde a faculdade. No hospital em que você me atacou também fez muitas outras vítimas que não tiveram interesse ou coragem de se expor publicamente. Seu prazer é a violência, a força, é submeter a mulher à sua vontade.
E além de ter certeza de que você repetirá seus crimes, temo também que fuja mais uma vez. As autoridades estão lhe dando muita liberdade, como sempre deram. Agora você está em casa, vivendo com conforto, mas quem está te vigiando? Não acho que apenas a tornozeleira eletrônica seja o suficiente para controlar você. Em algum momento você vai tentar fugir.
Não podemos silenciar sobre esse caso, pois ainda existem milhares de vítimas no anonimato por vergonha e medo.
Diante da “injustiça brasileira”, do prende e solta, diante da insensibilidade de ministros, ministras, juízes e juízas, nós, suas vítimas, decidimos procurar nossos direitos fora do Brasil, na Comissão Interamericana dos Direitos Humanos.
O advogado, Gustavo Polido, que cuida do caso, prepara uma representação junto à Comissão, que será feita ainda neste ano, para mostrar que você goza dos benefícios da prisão domiciliar sem cumprir nenhum requisito para ter esse direito. Vamos pedir que sejam apurados eventuais privilégios no seu caso.
A Comissão de Direitos Humanos preconiza que as vítimas de qualquer crime têm direito à tranquilidade emocional e isso só é possível quando vêm seu algoz efetivamente punido. E não é isso que está acontecendo.
Os 181 anos de pena que você recebeu, não podemos esquecer, lhe foram imputados por apenas um tipo de crime já julgado, o de estupro. A pena é grande, mas poderá ser elevada quando você for julgado por outros tantos crimes de manipulação genética, por exemplo, que, um dia, talvez, mereçam maior atenção da Justiça e que correm a passos lentos a espera da prescrição.
Sua soltura, após três anos e quatro meses de reclusão, foi uma provocação às vitimas. Não acredito em sua doença no coração, inclusive tenho mais problemas desse tipo do que você. Minha vida poderia ter tido um desfecho diferente, se não tivesse passado pela experiência que passei, a menina que eu fui não teria morrido, eu não teria meus medos, meus traumas, não sofreria, até hoje, com as sequelas que me maltratam psicológica e fisicamente.
Passei por 13 intervenções cardíacas -cinco cateterismos, três angioplastias, três colocações de stents e duas cirurgias para ponte mamária- que se agravaram por eu não fazer acompanhamento médico de rotina, não ir às consultas que marco para controlar meus problemas de saúde. Não vou às consultas porque tenho crises de pânico e descontroles de pressão arterial. Só vou no médico quando estou passando muito mal e preciso fazer uma cirurgia. Não vou em ginecologistas, ortopedistas e fiquei quatro anos sem ir no cardiologista. É um trauma que você me deixou.
Quando estive internada no hospital Irmãos Penteado, em Campinas, em 1970 e era apenas uma menina semianalfabeta, menor de idade, você abusou de mim. Eu era muito inocente, nunca havia dado sequer um beijo num homem, não sabia nada sobre sexo. Sentia dores atrozes por causa de pedras nos rins e fui seguidamente molestada, tocada, beijada, lambida e tive que ouvir suas palavras obscenas no meu ouvido. Você se regozijava com meu desespero e me molestava duas, três vezes por dia, colocava sua mão na minha boca para que eu não gritasse e ameaçava me matar se falasse alguma coisa para alguém. Nunca mais me recuperei do medo que senti.
Tenho pavor de jalecos brancos, seja de médicos ou dentistas.
O que mais me machuca é quando dizem: Esqueça isso, já foi há tanto tempo!
Voce esqueceria a morte de um filho seu? Você esqueceria o nome do assassino dele? Pois é, eu não consigo esquecer o nome de quem matou a menina que havia dentro de mim.
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