Saiu no site JORNAL DE BRASÍLIA:
Veja publicação original: Tentativas de feminicídio crescem 288%
Por Jéssica Antunes
Era tarde do último domingo quando uma fumaça dissipada por uma janela chamou a atenção dos vizinhos. Dentro do apartamento no Riacho Fundo II, uma mulher era alvo de álcool e fogo enquanto estendia roupas. Não foi a primeira vez. Dizem que ali o bate-boca e as ameaças de morte são constantes. Em uma noite, a coação foi com uma faca, e a vítima, de camisola, pediu socorro aos gritos pelo prédio. “Ela acreditava que ele mudaria”, diz uma vizinha. Desta vez, o desfecho foi no hospital: aos 32 anos, com 40% do corpo queimado, ela ficará internada por pelo menos um mês. O suspeito estava desaparecido até o fechamento desta edição.
A mulher, que terá a identidade preservada, é vítima de tentativa de feminicídio, crime que cresceu 288% no primeiro semestre de 2017 em comparação ao mesmo período do ano passado. Entre janeiro e julho, 35 mulheres quase foram mortas pelos próprios companheiros – contra nove em 2016. O número é o mais alto desde março de 2015, quando essa tipificação começou a ser contabilizada. O Riacho Fundo está entre as três regiões administrativas com maior índice.
Segundo o relato de testemunhas, a vítima estendia roupas quando foi surpreendida e atacada pelas costas. O short grudou nas pernas, o cabelo preto e longo, as costas e o lado esquerdo do corpo foram atingidos. Ontem, a mulher passou por cirurgia. Embora a Secretaria de Saúde se negue a informar o estado de saúde dela, a irmã da vítima, M., diz que a situação é estável.
“Foi um choque. Estamos todos revoltados. Já sabemos que ela ficará pelo menos 30 dias internada para tratar das queimaduras, que são de 1º grau no rosto e de 2º no resto do corpo”, detalha.
Socorro
O síndico do condomínio acudiu a mulher na hora do crime. Túlio Monteiro, 42 anos, conta que eram por volta de 16h30 quando o próprio marido abriu a porta do apartamento, no momento em que os vizinhos se preocuparam com a fumaça. Eles se mudaram para o endereço há cerca de uma ano.
“Ela (a vítima) já estava molhada, tinha tentado apagar o fogo. Ele negou que tivesse sido o responsável, disse que era acidente. As discussões eram constantes, mas nunca presenciamos vias de fato”, lembra. Enquanto a mulher era socorrida, o suspeito fugiu de carro. Desde então não foi encontrado. Existe desconfiança sobre uso de drogas.
Vizinhos relatam brigas constantes
O casal estava junto desde 2012. Desta vez, o filho da mulher, de 12 anos, estava no pátio do condomínio quando tudo aconteceu. Mas, segundo a vizinhança, ele sempre acompanhou as confusões dentro de casa. Agora o jovem, assustado, está com a tia. “Ela já correu pelo condomínio, de camisola, dizendo que ele estava ameaçando-a com uma faca. Várias vezes ele falou que iria matá-la”, revelou uma moradora, que pediu para não ser identificada.
“Ele aparentava ser uma pessoa calma, fria. O filho sempre via e chorava. Ela acreditava em mudança porque gosta dele. E ele prometeu mudar, pediu perdão. Ela costuma desabafar, mesmo que ninguém pergunte nada. No fim daquela tarde, ouvimos muitos gritos e não teve um que ficou sem chorar nesse lugar”, revela outra vizinha, de 29 anos, que mora no prédio há dois anos.
Violência contra a mulher
Os casos de feminicídio consumado diminuíram no DF no primeiro semestre do ano. Segundo dados da Secretaria de Segurança, nove mulheres perderam a vida por razões da condição do sexo feminino. No mesmo intervalo de tempo do ano passado, os casos somavam 11.
Por sua vez, os delitos enquadrados na Lei Maria da Penha tiveram aumento de 4%: em média, 33 casos foram registrados diariamente. Todos os autores das 7.119 ocorrências foram identificados e, em quase 6% houve reincidência. A violência física esteve presente em mais da metade das ocorrências, que acontecem com mais frequência entre 18h e 21h do fim de semana.
PONTO DE VISTA
“Muitas vezes, apesar de todas as pessoas ao redor perceberem a situação de risco, a vítima não se dá conta. A complexidade da violência doméstica tem que ser encarada dentro do patamar da psicologia”, afirma Soraia da Rosa Mendes, coordenadora nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher. De acordo com ela, o feminicídio está vinculado a um ciclo. “É o ápice de um conjunto de violências. Nesse sentido, nos casos que já se iniciam, é preciso dar a maior possibilidade para que a vítima encontre abrigo”, avalia. Para a especialista, que também é doutora em Direito, as medidas protetivas precisam ser efetivas para que não sejam consideradas como um mero discurso que fica no papel.