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Veja publicação original: DIVAS, DEUSAS URBANAS E DAMAS DA NIGHT
Assucena Assucena e Raquel Virgínia falam do lançamento do segundo disco de As Bahias e a Cozinha Mineira, Bixa
Desde que a banda As Bahias e a Cozinha Mineira lançou seu primeiro disco, Mulher, no final de 2015, muita coisa aconteceu. Elogiadas pela crítica, as bahias Assucena Assucena e Raquel Virgínia, ao lado da cozinha mineira Rafael Acerbi, se destacaram dentro de uma nova cena da MPB que reverencia outras formas de vida não normatizadas pelos padrões de gênero e sexualidade. Hoje, quase dois anos depois, a banda apresenta o novo álbum Bixa, produzido por Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, que já trabalharam com Criolo. Mais dançante, descontraído e até mesmo purpurinado que o trabalho de estreia, elas não querem só falar de transgeneridade. Elas querem é cantar e fazer os outros dançarem.
Se antes a pegada era tropicália, hoje isso se mantém somado a um pop com batidas eletrônicas. “Bixa é um disco muito urbano”, conta Assucena. “Se Mulher vinha do rural, agora trazemos essa pegada urbana inclusive por ser bixa e falar da contradição entre a nossa natureza mais genuína perante a criação de uma outra natureza”, continua. A cantora também diz que o segundo álbum começou a surgir logo depois do primeiro, em um momento de “efervescência criativa” da banda. Nesse meio tempo, elas já estiveram na TV, nos jornais e prêmios de música e se destacaram como um grande nome da MPB. Mostrando que deve e está começando a existir um lugar de visibilidade para artistas LGBTs como artistas e criadores de cultura que são, independente de suas identidades pessoais.
Tpm encontrou com as cantoras durante a São Paulo Fashion Week, prestes a subirem ao palco para um pocket show em que apresentaram duas músicas deste novo disco, Um doido caso e Dama da night. Leia abaixo entrevista sobre o álbum recém-lançado e a atual cena de música que abrange diversos artistas que desconstroem padrões de gênero.
Por que o segundo disco se chama Bixa, enquanto o primeiro se chama Mulher?
Assucena: A banda nasceu a partir do momento em que a gente sentiu a necessidade de gravar um disco cujo as canções se interseccionavam em torno de uma temática. E só um substantivo comum dava sentido a isso, mulher. Além de ser uma palavra que me toca intensamente, me transpassa e me constitui. Foi meio que uma autobiografia e não, entendeu? Mulher aparece em uma fase de transição tanto minha quanto da Raquel. Ao passo que as canções de Mulher apareciam uma outra temática começou a surgir, com um elenco de animais dentro das nossas canções. Nós tivemos o insight de dar o nome de Bicho para o segundo disco em homenagem ao disco de Caetano Veloso. E aí veio o insight: bicho não. Bixa. É uma palavra muito poderosa, que existe enquanto apropriação daquilo que nos envergonhava, que nos imaculava, da nossa própria natureza. As travestis, os viados, os bissexuais e as lésbicas se apropriaram de um conceito que seria pejorativo. Entretanto, mesmo que o disco seja isso, também não é. É a dignificação do A como universal. É uma homenagem a ela, à natureza, e a nossa dignidade enquanto ela.
Raquel: A gente entendeu que a narrativa trazia esse nome, e escolhemos fazer Bixa com X e com A no final justamente para ter essa ligação com a questão do feminino. E a ironia também, porque tem uma questão irônica muito presente colocada nesse segundo álbum.
Desde o primeiro disco, surgiram diversos artistas trans e travestis que também abordam a questão de gênero na carreira. Querendo ou não vocês acabam sendo colocados dentro de uma mesma cena. Como enxergam isso?
Assucena: Quando a gente fez o disco, saímos nos principais jornais do país, fizemos diversos programas na televisão, tivemos uma expressão crítica muito boa a nosso favor em um momento que não sabíamos que apareceria uma cena tão forte, uma cena que não se delineava pela musicalidade — já que são estilos diferentes. O que as Bahias têm a ver com Linn da Quebrada? Com Liniker? Com Rico Dalasam? Com Jaloo? Com Pablo Vittar? Nada a ver! O que nos intersecciona é uma esfera comportamental do imaginário que a gente mexe. Estamos mexendo com signos de uma maneira contracultural. Se existe a normatividade cis, branca, masculina e patriarcal, a gente está indo contra esses valores e não para negá-los, apenas, mas para modificá-los. Em comum queremos acabar com o machismo e com a imposição social perante os nossos corpos, que serve para controlar nossas vivências e quem somos. Essa cena se intersecciona nesse sentido, o que é maravilhoso né?
“Ser drag queen é uma coisa, ser travesti é outra. Não podemos confundir essas coisas porque prejudica a luta”
Raquel: Talvez a gente nem tenha a dimensão total, o amadurecimento vai trazer isso melhor… Mas é óbvio que, se uma cantora puxa a outra, a cena fica mais forte. Isso independe de ter a musicalidade parecida. De alguma forma a gente é entendido como uma mesma cena pela imprensa e pelo público e precisamos agir como uma mesma cena artística, acho isso ótimo. Acho ruim apenas quando pautas políticas se misturam. Por exemplo, ser drag queen é uma coisa, ser travesti é outra. Não podemos confundir essas coisas porque prejudica a luta. No geral é difícil, porque fica tudo muito confuso com o público. Mas fico superfeliz quando colocam a gente na mesma cena.
O que vocês acham que mudou do primeiro disco para esse?
Assucena: Muita coisa. Fomos adquirindo uma experiência muito grande pelo caminho, o que melhorou a qualidade do show, o entrosamento da banda… Mudou muita coisa, inclusive a proporção da discussão de transgeneridade, da discussão sobre o que é o feminismo e o machismo e o que são as contradições das relações de gênero. Na novela das nove a discussão sobre transgeneridade está acontecendo, veja só! Claro que tem discussões intelectuais que a gente discorda, mas é algo que está adentrando os lares, impactando as famílias. Isso é essencial para a discussão. Se estávamos no espaço da invisibilidade, agora estamos ganhando a discussão para passar a sermos visíveis.
Raquel: A gente tem um bastidor muito mais sólido. Isso faz com que o trabalho apareça mais maduro para o público. Musicalmente é óbvio que houve todo um preparo, mas nos bastidores também houve essa relação de amadurecimento. Acho que essencialmente a gente amadureceu a nossa relação de olhar para a música e entender que ela está longe de ser uma brincadeira. Mesmo que seja, às vezes, também é um papo sério, precisa ter uma equipe, organização, estratégia. Pessoalmente, sou uma cantora melhor, conheço mais o meu corpo. Tenho mais responsabilidades como cantora… Sou uma artista em desenvolvimento, me sinto imatura e madura ao mesmo tempo.
“Existe uma situação estrutural que precisa ser quebrada e por isso é importante que a nossa imagem esteja na televisão”
Assucena, você comentou sobre a discussão de gênero estar aparecendo na TV. As Bahias também apareceram na TV algumas vezes, estão aqui hoje encerrando a noite na São Paulo Fashion Week. Embora existam críticas perante a essa postura, você acredita que é preciso ocupar esses espaços?
Assucena: Claro! Vou quantas vezes me chamarem. Embora existam discordâncias políticas, são espaços de troca. Se não nos relacionarmos, a gente continua dentro de um gueto, de um lugar invisível. Existe uma situação estrutural que precisa ser quebrada e por isso é importante que a nossa imagem esteja na televisão. As questões colocadas aqui não são as discordâncias políticas, entende? É preciso ocupar a televisão para oxigenar tudo que já existe com rostos como o da Raquel, o da Liniker… A gente precisa estar lá. Quantas cantoras incríveis tiveram seus talentos suprimidos por conta dessa invisibilidade? Quantas escritoras incríveis? Médicas, publicitárias, jornalistas? Estamos mostrando que é possível estar, e queremos normatizar nossas vidas. Eu quero cantar, quero falar de amor, estar na televisão. Como todo mundo. Que diferença eu tenho de outras mulheres? Nenhuma.
O single de lançamento de Bixa, Doido Caso, leva a reflexão acerca da responsabilidade afetiva. Como vocês acham que isso se diferencia na vivência como trans e reflete no disco?
Raquel: Nossa afetividade é muito mais difícil. O que a gente vive não é normativo, as nossas questões afetivas são mais complexas. Ao mesmo tempo que o disco traz o que é uma questão específica das causas LGBTs, ele também é amplo e vai para questões universais da humanidade. Como a própria ironia, as questões filosóficas. Tanto que Universo fala sobre beijo, que é algo super universal nesse sentido. A forma e conteúdo do disco traz essa liberdade e esse romantismo que dá essa asa de liberdade. Eu enxergo o disco como um espaço muito fértil pra refletir essas questões.