Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Como se proteger da agressão sexual: jornalista relembra trauma
A jornalista paulistana Viviane Duarte relembra o dia em que um homem gozou nela em uma viagem de trem e as estratégias que as mulheres criam para evitar a agressão sexual
Desde pequena a gente é condicionada a fechar as pernas e sentar ‘como uma menina’, certo? Passei minha infância ouvindo meus tios gritarem em alto e bom som nos churrascos de família: – prendam suas cabritas, que meus bodes estão soltos!
Isso irritava profundamente minha mãe e ela sempre falava pra gente: vocês podem brincar do que e como quiserem. Tomem cuidado, mas não vou prender vocês num quarto só porque são meninas. E ouvir isso era libertador. Mas enquanto minha mãe nos ensinava a seguir em frente e encarar os desafios de ser uma menina em uma família tradicionalmente machista, toda a sociedade gritava em nossos ouvidos: – isso não é coisa de menina, se comporte!
Enquanto meus primos e seus amigos sentavam de pernas abertas e se orgulhavam do que carregavam no meio delas, eu era forçada a acreditar que deveria me esconder, me proteger, tomar cuidado. Eu era a presa. Meninas crescem assim: se escondendo e protegendo . O tempo todo. E quando a gente cresce e se torna adulta? E quando a gente se torna uma mulher? Nada muda: continuamos tendo de nos proteger, de ficar atentas, de não vacilar.
Me lembro de quando tinha 15 anos e havia comprado com meu salário de vendedora de loja de moda, a extinta Canal 27, meu primeiro look – com meu dinheiro! Eu também tinha comprado uma daquelas botinhas country que faziam sucesso nos anos 90, sabe qual?
Estava feliz pegando o trem até a minha casa, quando senti algo quente em minha perna.
Achei que alguém tinha derrubado algo e quando me virei assustada, vi um homem branco, suado e nojento, guardando seu pênis na calça. Eu comecei a gritar e a chorar. Ele tinha ejaculado em mim. E eu estava ali: exposta e sozinha. Ninguém se compadeceu. Ninguém quis pegar aquele sujeito medonho. No meio do caos a única pessoa que falou algo foi uma senhora de uns 60 anos: – Tem que ficar esperta, minha filha!
Tudo o que uma mulher tinha para me dizer era exatamente o que ela aprendeu em toda sua vida: se proteja, você é uma mulher!
Eu voltei para casa arrasada e joguei minha calça fora – todo meu look. Tomei um banho de horas e nunca mais esqueci a cara daquela coisa. Passei a perceber que a liberdade que eu havia aprendido a ter em casa, com minha mãe, era perigosa pra mim e então, comecei a desenvolver uma série de estratégias ao sair para a rua. Sempre em alerta. Presa.
No outro dia, dividi esta situação humilhante na loja em que trabalhava e recebi diversos depoimentos de garotas que haviam passado pela mesma coisa. Todas, com suas dicas.
Todas de alguma forma se culpando por um ato nojento que não diz respeito ao comportamento delas, mas de um homem que enxerga a mulher como um pedaço de carne.
Fecha as pernas. Não cochile. Não relaxe. Encoste sempre num encosto. Coloque a bolsa na frente. Coloque a bolsa atrás. Olhe sempre para ver se vem alguém. Faça sinal para outra mulher. Não respire. Não relaxe. Não sorria. Não dê motivo. Tem que ficar esperta, minha filha!
Corta para 23 anos depois e ainda vivemos o mesmo cenário de horror por sermos mulheres, por acharem que nosso corpo é público e que não temos o direito de circular livremente nas ruas. Ainda vemos homens sentados no transporte público com suas pernas abertas, relaxados. Enquanto a nós, resta a atenção em triplo, o cuidado, a tensão de sermos quem somos, na luta por ocupar espaços públicos e sermos respeitadas como gente.
Até quando vamos ser vistas como seres domésticos e públicos? Até quando teremos de nos proteger por sermos mulheres e teremos de criar milhares de artimanhas para não sermos atacadas por bossais que nasceram ouvindo seus pais dizerem: meus cabritos tão soltos, prendam suas cabras!? Até quando leis do século passado continuarão em vigor, mostrando que nós mulheres não temos nenhum valor e que servir de depósito de esperma de um total desconhecido não é constrangimento?
Enquanto a gente luta para responder à estas perguntas com iniciativas positivas para tentar estancar esta ferida aberta, outras mulheres estão sendo assediadas e oprimidas. Muitas que não têm voz para chegar à grande mídia. Muitas que se culpam por terem “vacilado” e ousado sair de casa em tal horário ou com aquela roupa.
O machismo escarra em nossa cara e revela o pior de uma sociedade que o protege, banalizando a importância de falarmos sobre a educação sobre igualdade de gênero nas escolas, dentro de casa, na propaganda.
Todos nós somos responsáveis pelo o que nos transformamos, ou pelo o que ainda continuamos a ser. Quando você incentiva seu filho a mexer com uma mulher na rua, você está criando um canalha. Quando você ensina sua filha a não fazer alguma coisa porque ela é menina, você está criando uma mulher sem voz e submissa. Quando você cria uma propaganda que coloca a mulher num comercial como um pedaço de carne, você está sendo conivente com tudo isso e ajudando a reproduzir o sexismo e machismo entre todos.
Quando você se cala, está sendo conivente com tudo isso. Por isso, não se cale. Grite.
Porque somos mulheres e nosso corpo é só nosso e de mais ninguém.”
Viviane é jornalista e fundadora da Plano Feminino, consultoria que ajuda a construir campanhas publicitárias sem estereótipos e com diversidade. É também idealizadora do projeto social Plano de Menina – com foco em construir um futuro de mulheres protagonistas de suas histórias.
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