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O caso do ônibus e a seletividade dos penalistas – Por Camila Cardoso de Mello Prando

Saiu no site EMPÓRIO DO DIREITO:

 

Veja publicação original: O caso do ônibus e a seletividade dos penalistas – Por Camila Cardoso de Mello Prando

 

Desde a divulgação do caso do homem que ejaculou no rosto de uma mulher em um ônibus, a velocidade de produção de discursos sobre o fato se multiplicam. Parte desses discursos vem discutindo o enquadramento penal da ação deste homem, e a consequente possibilidade de punição.

 

Alguns deles emergem com a força de quem sente, percebe e representa este ato como violência inaceitável. Em geral mulheres, elas vêm apontando para o horror deste ato. Esse não é um discurso para ser desconsiderado em nome da “boa técnica dogmática”. Ao contrário, este é um discurso que produz pistas importantes para situar o lugar da “boa técnica dogmática”. Desprezá-lo é sinal de incompreensão sobre os processos de construção das categorias dogmáticas que visam o controle e o mínimo de racionalização do processo decisório.

 

Outros dos discursos sociais veiculados partem de pessoas autorizadas pelo campo a dizer sobre o direito penal. Eles carregam consigo o argumento da defesa da liberdade e – em um sentido muitas vezes precário – do garantismo penal. Em nome da “boa técnica dogmática” a sentença está dada: se os elementos do tipo penal do art. 213 exigem a argumentação e comprovação do constrangimento de alguém “mediante violência ou grave ameaça”, qualquer imputação típica que não apresente tais elementos não é válida. Sentença que me põe de pleno acordo com todos esses autores. Tampouco eu abro mão dessas lentes, uma vez que compreendo que o papel das categorias dogmáticas é garantir que o processo decisório não seja o lugar do puro arbítrio, que a regra seja liberdade e o campo do proibido seja a exceção.

 

Ocorre que essas lentes de interpretação dos elementos do tipo penal não são auto-evidentes. Os enquadramentos do que se nomeia como violência ou grave ameaça não estão dispostos em lei. São parte de um processo de construção do discurso jurídico, do qual participam doutrinadores e atores do sistema de justiça criminal. Se os autores desse discurso social afirmam que a grave ameaça não pode ser sustentada e argumentada nesta cena, é porque também o enquadramento desta cena está informado por grupos de casos que de antemão foram, ao longo da história punitiva, selecionados. São os casos de violência de rua, de violência entre homens, postos sobre a lente racializada, que informam e informaram o sentido de grave ameaça hegemônico. O roubo, a briga no bar, são informantes não ditos que enviesam, desde o princípio, o enquadramento do que é violência ou grave ameaça.

Assim se enquadra o tipo de roubo. A arma de fogo, a faca, a ameaça declarada verbalmente passível de ser realizada. São as representações sociais traduzidas para “ boa técnica dogmática”.

Este não é o primeiro caso que provoca o campo a pensar sobre suas categorias. Não para realizar a criticada expansão punitiva. Crítica esta, muitas vezes, precariamente informada por um liberalismo penal organizado a partir dos vieses raciais patriarcais.

A crítica contundente ao sistema de justiça criminal, à qual me filio, deve ser capaz de fazer mais do que dizer que o sistema penal é produtor de violências. Deve ser capaz também de identificar as violências produzidas pelo discurso do campo penal. Inclusive as violências produzidas pelos gritos em defesa da liberdade e das garantias. Esse grito não é universal, seus enquadramentos não são neutros.

 

A dimensão da violência de gênero não consegue ser explicada pelas categorias produzidas a partir dos grupos de casos acima citados. A ameaça num ciclo de violência doméstica não consegue ser enquadrada pela mesma interpretação da ameaça entre dois homens desconhecidos numa rivalidade da rua. As ricas discussões dogmáticas produzidas em torno do debate sobre violência doméstica, e insistentemente ignoradas pelos autorizados a falar em nome do direito penal, têm contribuído muito para a compreensão destes vieses e para a produção de categorias orientadas à racionalização do processo argumentativo decisório.

 

O caso divulgado ontem nos faz pôr a trabalhar sobre isto que escapa à dogmática de hoje. Não olhar para ele, não olhar para os discursos sociais que manifestam com dor a violência, qualifica-los como lixo a ser simplesmente desprezado é parte de uma postura não confiável para quem pretende pensar seriamente em um campo de liberdades. Olhar não significa aderir, olhar seria melhor traduzido aqui em saber escutar. Há algo neste caso que nos provoca a problematizar e não a dar respostas simples.

 

Consideremos que a vítima, neste caso, não estivesse dormindo – o que parece ter sido o caso  e o que, de alguma forma, resolve o incômodo dos “garantistas”. Porque em se tratando de vítima que não pode oferecer resistência, o tipo penal do artigo 217, A, par.1, retira a exigência da argumentação do constrangimento “mediante grave ameaça”.

 

Mas não gostaria de dar a questão por resolvida, porque, de fato, não está. Se retirarmos este fato concreto da vítima ter estado dormindo quando o autor ejacula em seu rosto, e fizermos o exercício de uma cena em que ela estivesse acordada, onde estaria o constrangimento mediante grave ameaça? Segundo o viés da definição hegemônica doutrinária e jurisprudencial, isto estaria ausente. Onde está a faca? Onde está a arma? Onde está a ameaça grave passível de ser executada? Se a vítima olhou impassível um homem se masturbando em sua frente, enquanto estava sentada confortavelmente em um banco de ônibus; se a vítima ali permaneceu sem manifestar desagrado, sem mudar de lugar, sem gritar ou mandar aquele homem descer do ônibus, talvez nem se possa falar em constrangimento, não é? Quanto mais um constrangimento produzido com grave ameaça.

 

Os termos da audiência de custódia são estes, aliás: “na espécie entendo que não houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”.

 

O que este viés não é capaz de enquadrar na interpretação da “grave ameaça”, e que só pode ser acessado se compreendermos a dimensão da violência de gênero – absolutamente ignorada por uma ignorância (estruturalmente constituída) do campo penal – é que o ato de um homem se masturbando em pé na frente de uma mulher sentada durante sua viagem de ônibus tem a possibilidade de ser constituído como um constrangimento com grave ameaça. Este argumento está ao alcance da cena. Não é um ato de desejo, como imaginam inocentes (?) penalistas, não é um ato de nojo. O pau deste homem é a faca no pescoço da mulher.

E isto só se pode ver se há um mínimo de compreensão de como se estruturam as dinâmicas de violência fundadas nas hierarquias de gênero. E isto já é um outro capítulo. Um capítulo de um livro que no campo penal os penalistas – ditos assim no masculino – deliberadamente se recusam a abrir.

 

Não faço este esforço de diálogo para que se puna mais, para que o sistema de justiça criminal se expanda. Não aceito o título de “esquerda punitiva”. O esforço que faço aqui é dialogar com a violência do discurso dos penalistas.

 


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

 

 

 

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