Saiu no site M DE MULHER:
Veja publicação original: “Apoio familiar na vida de uma pessoa transgênero vale ouro”
Victor Namur, psicólogo e homem trans, faz um paralelo entre o processo de aceitação de Ivan, de “A Força do Querer”, e sua experiência com a transição.
O episódio da última terça-feira (29) em “A Força do Querer” foi marcado pelas cenas em que Ivana (Carol Duarte) se assume como um homem trans para sua família. Portanto, por ter se assumido como homem, irei trata-lo pelos pronomes e nomes corretos.
A comparação das cenas da novela com minha própria história foi inevitável, então logo nos primeiros momentos tive duas impressões despertadas: logo me lembrei que aquilo se tratava de uma novela da Globo e, como tal, regada a dramas. Logo que a personagem começa a gritar desesperadamente “este corpo não é meu, foi um engano”; “eu não sou uma menina, eu sou um homem, eu nunca fui uma mulher”, o pensamento que me veio foi: “migo seu louco, calma, explica direito isso aí!”.
Pela maneira como Ivan expôs as coisas, aos gritos e com falas que pareciam um pouco aleatórias, ao ver a cena, era possível pensar que ele estava mesmo tendo um surto psicótico, o descontrole em sua fala era marcante, mas ao mesmo tempo isto faz sentido se considerarmos que trata-se de alguém que há pouquíssimo tempo não entendia o que se passava consigo. Vale lembrar aqui que minhas impressões têm a ver com minha vivência, e a minha opinião de forma alguma reflete a totalidade da comunidade trans.
Mas a segunda impressão foi um pouco menos baseada no meu olhar de psicólogo e mais visceral: senti tristeza e frustração pelos comentários dos familiares de Ivan. Ainda me magoa muito saber que a primeira reação das pessoas é associar a não-conformidade com o gênero de nascimento a uma doença mental, à loucura (como quando Ruy, interpretado por Fiuk, sugeriu chamar um psiquiatra), a um surto psicótico induzido por drogas (como Eugênio, interpretado por Dan Stulbach sugeriu), ou algo do gênero.
Também é triste ver como a família nestas situações tende a olhar mais para o próprio sofrimento do que para o sofrimento da pessoa que está explicando o que se passa dentro deles (mais uma vez, reflexo da visão de que aquele ser que lhes fala é ou está doente e, portanto, sua fala não merece créditos).
Ivan ainda tentou fazer sua mãe compreender minimamente como ele se sentia pedindo para que ela imaginasse como seria sua vida se ela tivesse nascido homem. Tentativa fracassada, infelizmente. Depois de soltar tudo o que devia estar engasgado há muito tempo ele simplesmente faz a pergunta que é a pergunta mais importante de todas: se a família o aceita.
Esta é a pergunta mais importante ao meu ver pois, dificilmente uma pessoa cis, que nasceu com um determinado gênero e se identifica com ele, vai entender como uma pessoa trans se sente e porque se incomoda com as coisas com as quais se incomoda. Mas o respeito deve vir em primeiro lugar e, no caso da família, a aceitação é algo muito almejado por nós, pessoas trans. Sabemos que a sociedade já não é muito aberta para a diversidade, mas a família, especialmente o núcleo familiar, aqueles com quem mais convivemos, costuma representar um porto de amparo para nossas dificuldades ao longo da vida, então perder este apoio significa muitas vezes “perder o chão”.
Bem, a partir daí é só tragédia. Ruy dispara duas gafes que, infelizmente, são gafes recorrentes na vida de uma pessoa trans:
1 – Quando Ivan diz que nunca foi uma mulher Ruy me solta um: “então você está assumindo que é lésbica?”. Oi, desculpa, não sabia que lésbicas não eram mulheres, esta é novidade pra mim.
2 – Quando Ivan diz que está tomando testosterona Ruy diz: “Você quer virar homem também?”. Este é um erro de fala muito comum na sociedade: “ele quer ser mulher” (para mulheres trans), ou, “ela quer ser homem” (para homens trans).
A grande questão é que Ivan, assim como eu, sempre fomos homens, porém nunca reconhecidos como tal por não apresentar o estereótipo de “homem” da nossa sociedade, como se antes fossemos mulheres. Aos olhos da sociedade infelizmente era isto, mas este tipo de fala é uma falácia, afinal a identidade de cada um é algo invisível aos olhos, parafraseando Antoine Saint-Exupéry “o essencial é invisível aos olhos”.
Depois, Ivan comenta sobre o fato de que irá retirar os seios, porém a forma como ele o faz é muito descuidada e descontrolada. Este assunto deve ser abordado de maneira calma e cautelosa, pois muitas pessoas ainda enxergam a mamoplastia masculinizadora, ou, mastectomia (procedimento para a retirada dos seios) como uma mutilação.
Minha própria mãe ainda não entende muito bem, por mais que eu tente lhe explicar da maneira mais didática sobre o caráter restaurador e libertador que este tipo de procedimento tem para muitos homens trans, ela ainda tem dificuldade de processar tal informação. Agora imaginem ouvir esta informação berrada em cima de você? Realmente é assustador para qualquer familiar.
Apesar disso, confesso que a fala de Ivan dizendo que já nasceu mutilado em resposta à fala da mãe me arrepiou inteiro. Creio que muitas pessoas trans pensam assim, eu mesmo pensei por muito tempo.
Prosseguindo na tragédia, a mãe de Ivan, Joyce, interpretada por Maria Fernanda Cândido, terá que passar pelo processo de luto pela perda de sua tão querida princesinha que ela idealizou. Este talvez seja um dos maiores sofrimentos para Ivan.
Se tem algo que nos assusta quando vamos nos assumir é a rejeição dos parentes, em especial da mãe. Mesmo que não tenhamos a melhor das relações, a figura da mãe é muito importante em nossas vidas, esperamos sempre ser motivo de orgulho e merecedores do amor desta pessoa que nos deu a vida. Então imaginem que horror quando somos motivo de sofrimento para esta pessoa.
A cena em que Ivan corta o cabelo, para mim, demonstrou perfeitamente este momento. A cada tesourada em seus cachos loiros, uma tonelada caia de suas costas. Sim, este é o peso de performar um papel que não nos pertence: toneladas de incômodo, raiva, tristeza, frustração, todos em uma amálgama emocional prestes a se dissolver em ações que podem nos ser danosas fisicamente ou psicologicamente. No caso desta cena isto foi uma libertação.
Eu mesmo me identifiquei muito, pois me lembro perfeitamente da sensação de bem-estar ao cortar meus cabelos sozinho no banheiro no início de 2009. Na época, eu ainda nem sabia que era um homem trans, mas aquilo me foi uma libertação que nunca vou esquecer, quase como um prólogo do que estaria por vir.
Enfim, eis que entra a mãe no quarto de Ivan e vê aquela cena. Aquele momento em que ele nunca se sentiu mais ele na vida foi o mesmo momento que trouxe tanta tristeza para sua mãe, uma das pessoas que ele mais ama no mundo. Como conciliar a alegria de ser você mesmo com a tristeza de causar sofrimento para a mãe? Só lagrimas definem. Não foi à toa que ambos desabaram na cama.
A ferida em Ivan não foi somente pelo fato de fazer a mãe sofrer (tanto que ele lhe pede desculpas), mas também pelo fato de ver que, pelo menos neste primeiro momento, não houve aceitação, não houve a busca pela compreensão, não houve apoio. Esta é uma ferida gigantesca, pois você se sente não pertencente a um lugar que você considerava como um refúgio e ainda passa a se sentir como um incômodo, um fardo a ser carregado.
Eu realmente espero que o apoio familiar esteja por vir, pois este é um fator crucial na vida de uma pessoa que está neste momento de descoberta e início de transição. E na verdade creio que todos nós gostamos de receber apoio quando precisamos e saber que temos com quem contar. Na vida de uma pessoa transgênero isto é fundamental, vale ouro.
Também espero que o Ivan encontre um psicólogo bacana, pois o episódio de hoje mostrou claramente como ele precisa de um apoio para processar todas estas emoções e também ter paciência para lidar com a família, que também precisa ter seu tempo para processar todas estas informações que ele despejou no episódio de hoje.
Antes de terminar, me permitam humildemente fazer um adendo para as pessoas que ainda creem que mulher é aquela que tem vagina, útero e seios e homem é aquele que tem pênis. Peço para que pensem um pouco em alguns casos: mulheres que nascem sem útero são menos mulheres por isto? Homens que têm seus pênis mutilados em acidentes (sim, isto acontece, os procedimentos de faloplastia – cirurgia plástica para colocar um pênis – surgiram após a segunda guerra pois muitos soldados – homens cis – tiveram seus membros inferiores explodidos por minas). Eles deixaram de ser homens? Pessoas que nascem com a genitália ambígua – se joga par ou ímpar para decidir que sexo colocar no registro?
Então por que ainda hoje em dia faz-se tão importante definir a pessoa por seus genitais?
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